Capítulo 17

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     Sem sonhos agitados, apenas acordando no meio da noite certificando se ainda estava viva, Raquel dormiu tranquilamente. Quando acordou, nem Ana e nem Sofia estavam no quarto, levantou para ir ao banheiro.
   Ouviu a televisão ligada na sala enquanto andava pelo corredor.
   No banheiro, olhou se no espelho, procurava marcas de possível abuso, não achou.
   "Nem sei como são..."
   Lavou o rosto e foi para a sala.
   _Boa tarde... -disse se espreguiçando.
   Sofia que estava na cozinha sorriu corrigindo a.
   _Bom dia, né! 
   _Sério? Pensei que já era tarde.
   _São... -olhou o relógio na parede- 11:10h da manhã ainda...
   _Humm... desculpe, não estou acostumada a levantar cedo... -Raquel olhou para os lados procurando por Ana- onde ela está?
   _Na escolinha, chega só 13:00h.
   _Hum...
   _Fome?
   _Isto foi uma pergunta ou foi para me lembrar que tenho que comer? -sorriu chegando na cozinha.
   Sofia balança a cabeça pensativa.
   _Acho que é um pouquinho de cada! -sorriu.
   Raquel sentou à mesa servindo se de um copo de suco e algumas bolachas.
   _Eu não tenho fome de manhã. -disse mordendo o biscoito.
   _O café da manhã é o mais importante.
   Raquel revirou os olhos bebendo o suco.
   _Será que eu podia ficar aqui por uns dias?
   Se assustou com as palavras saindo apressadas de sua boca, Raquel não queria ter falado isto em alto e bom som, estava só pensando na possibilidade de pedir a Sofia para ficar alguns dias, enquanto bebia o suco, só até a poeira abaixar.
   _Ai desculpe, eu não queria ter falado isto... -disse envergonhada.
   _Não, quê isso, não precisa se desculpar... é claro que pode ficar aqui -Sofia olhou em volta- a casa é pequena mas a gente se aperta.
   _Eu prometo que não será por muito tempo... é só... é só até as coisas se esfriarem, sabe?
   Sofia segura a sua mão sorrindo amigavelmente para Raquel.
   _Fique o tempo que precisar!
   _Ok!
   Raquel a agradeceu mais umas três vezes por ter a deixado ficar depois se levantou lavando o copo. Estendeu a cama e ajudou Sofia a guardar os brinquedos e a bagunça de Ana.
   O seu celular não parava de tocar, rejeitava todas as chamadas e apagava as mensagens sem olhar quem era, por fim, colocou o celular no 'modo avião' para não ser mais incomodada.
   Sofia que assistiu a tudo, diz:
   _Você quer... -deu de ombros- quer conversar, sei lá...?
   Raquel sabia que esse negócio de 'você quer conversar?' era furada, Bruna veio com este mesmo papinho de querer conversar e olha a onde Raquel está agora.
   _Melhor não, não agora -forçou lhe um sorriso.
   _Tudo bem, como quiser... Quer me ajudar a preparar o almoço?
   Raquel faz uma careta.
   _Eu não me dou muito bem com a cozinha...
   Sofia sorri.
   _É só cortar algumas coisas pra mim.
   _Ok ok ok!
   _Estou pensando em fazer bolinho de carne moída, que tal? -pergunta Sofia indo para a cozinha.
   Raquel ia atrás dela.
   _Ótimo!
   Na cozinha, Sofia lhe dava as instruções de o que pegar na geladeira, cortar as cebolas, o pimentão, descascar o alho e lavar isto e aquilo para não deixar a cozinha bagunçada.
   Raquel cortava as cebolas quando os seus olhos começaram a arder.
   _Não, não coça, vai arder mais! -disse Sofia rindo de Raquel que estava com os olhos fechados- vem cá!
   Sofia a pegou pela mão e a guiou até o pequeno banheiro.
   _Não ri... está ardendo de verdade! -disse Raquel também rindo.
   _Eu não estou rindo... vai, lava o rosto... -disse abrindo a torneira e levando as mãos de Raquel até a água que caía da torneira.
   Raquel lavou o rosto e Sofia lhe entregou a toalha para se enxugar.
   _Abre os olhos aos poucos... -disse soprando o seus olhos.
   _Está vendo, eu te disse, eu não me dou bem com a cozinha.
   Sofia ri.
   _É, deixa a cebola comigo.
   Voltando para a cozinha, Raquel passou longe da cebola. Sofia a pediu para misturar a carne moída com a farinha de trigo mais dois ovos.
   _Com a mão? -perguntou espantada.
   _É, com a mão.
   _Mas isto é nojento!
   _Mas não é nojento quando você come, né?
   _Não!
   _Já estou colocando o óleo para esquentar...
   Relutante, Raquel começou a misturar os ingredientes com a mão, o ovo com a farinha grudavam entre seus dedos.
   _Mistura com vontade! -disse Sofia despejando a cebola picada na massa.
   A massa já no ponto certo, Sofia ensina Raquel a enrola-la até virar uma almôndega. Feito tudo isto, Raquel foi lavar a sua mão, havia resto de carne até debaixo de suas unhas.
   Raquel começou a gostar de Sofia, antes achava ela intrometida, agora, não mais. Sofia não insistia no mesmo assunto duas vezes, se Raquel desconversava, Sofia mudava de assunto como se não tivesse tocado no outro assunto. Até no silêncio que surgia entre elas, não era aquela coisa constrangedora, era um silêncio bom, um silêncio de paz.
   No meio daquele silêncio todo, Raquel se perdia em seus pensamentos.
   _Prova o que você fez... -disse Sofia depois de fritar e deixar os bolinhos esfriarem.
   Partiu um pedaço e colocou na boca de Raquel e comeu o outro pedaço.
   _Humm...
   Aquilo foi estranho para Raquel.
   Não se conheciam, nunca se viram na vida e nem tinham intimidades uma com a outra e Sofia já vem logo colocando o bolinho em sua boca.
   Raquel nunca foi de demonstrações de afeto em publico, mal demonstrava afeto por conhecidos quem dirá por um desconhecido, uma desconhecida.
   _Boom! -disse.
   Sofia balança a cabeça concordando.
   _Vem cá, você não está dando em cima de mim não, né? -pergunta Raquel brincando. Tinha medo da resposta.
   Desde quando acordou a um dia atrás, Sofia vem lhe dado muita atenção para uma desconhecida, poderia ser só o seu jeito de querer ajudar, como vive dizendo para ela, mas achou estranho o modo como sorriu quando a viu entrar no bar, achou estranho ela a chamar para dormir em sua cama, achou estranho elas no pequeno banheiro, Sofia a sua frente a poucos centímetros do seu rosto soprando os seus olhos ardidos e achou mais estranho ainda, Sofia lhe dar comida na boca.
   Sofia quase engasga.
   _O quê? Não! Deus me livre, não, credo! Por que pensa isto? -pergunta seria.
   _Não sei... sei lá, é que... essa atenção toda comigo...
   Sofia sorri gentilmente.
   _Não é isto bobinha, é que... -abaixa a cabeça desmanchando o seu sorriso- é que... eu já passei por isto... eu sei como se sente...
   Raquel demorou a entender do que estava falando.
   "Ela sabe como estou me sentindo? passou por isto? fora enganada por alguém, feita de idiota assim como eu? Ou..."
   Aos poucos a sua fixa ia caindo, na primeira vez no bar, Sofia viu seu pulso marcado quando entregou lhe a bebida.
   "Ela acha que alguém me bateu?" pensou segurando o seu pulso.
   Raquel queria rir com esta ideia absurda de Sofia, mas não riu.
   "Alguém já te bateu?"
   Tentava imaginar alguém batendo nela.
   "O pai da Ana?"
    Pediu desculpas por ter falado aquilo de Sofia querer dar em cima dela.
   "Como você é burra!!"
   _Então, já podemos comer? -pergunta Raquel forçando um sorriso amigável para Sofia.
   _Hum, claro, vamos!
   Raquel não sabia o que falar depois disto, do jeito que falava as coisas sem pensar, era provável dizer outra asneira.
   Comeram a comida em silêncio. Agora aquele silêncio era constrangedor, Raquel queria saber se era o que estava pensando mas não tinha coragem de perguntar.
   Sofia tirou a sua dúvida sem que perguntasse.
   _Eu o conheci em uma festa de confraternização da universidade -disse com a voz rouca- eu estava no primeiro ano de pedagogia e ele no último ano de administração, nos apaixonamos logo de cara... Um mês depois estávamos morando juntos -sorriu ao lembrar- meus pais não foram com a cara dele, diziam que ele não era pra mim, eu não dei ouvidos e continuei com ele.
   Sofia respira fundo.
   _No começo é tudo um mar de rosas, declarações, surpresas em sala de aula... morria de vergonha. Quando fiz 19 anos, nos casamos escondidos, ele estava com 24. Meus pais descobriram e briguamos feio... eu tranquei a minha matricula na universidade a pedido dele, ele dizia que mulher dele não trabalhava, que eu teria uma vida de rainha e tudo do bom e do melhor. Fomos mudando de cidade em cidade devido ao seu trabalho, cada vez mais longe da minha família, mas não me faltava nada, tudo que eu queria ele me dava... Ele me fez sentir a melhor mulher do mundo durante dois anos de casados, mas aí começou os ciúmes...
   Raquel ouvia sem piscar.
   _Começou com a implicância com as minhas roupas, depois com alguém me olhando torto ou eu olhando para alguém. Tudo na cabeça dele era que eu estava o traindo, se eu demorava a atender o celular, eu estava lhe traindo... brigávamos dia e noite por conta do seu ciúmes, até que um dia ele me deu o primeiro tapa -balançou a cabeça- não aceitei que ele me batesse, terminei com ele e juntei as minhas coisas, mas como estávamos em outra cidade longe da minha família e eu não conhecia ninguém aqui, eu nao tive para onde ir. Queria voltar para a minha cidade, não para a casa dos meus pais, eu era orgulhosa demais, mas tinha amigos que poderiam me acolher. Mas eu não tinha dinheiro e ele escondeu os meus documentos para eu não ir, jurou não fazer mais isto, até chorou em meu colo... eu o perdoei mas o ameacei se fizesse isto outra vez eu iria embora de vez. Ele ainda continuava com seus ataques de ciúmes, discutíamos e discutíamos, até que a empresa onde ele trabalhava entrou em crise e despediu metade dos funcionários, ele estava no meio... passamos a ficar 24h juntos, brigando, discutindo...ele me forçava a ter relações... depois começou a não parar mais em casa, passava as noites fora e só voltava no outro dia cheirando a bebidas e cigarros... um dia fui atrás dele e o peguei com uma vad... uma vagabunda, aprontei o maior barraco, ele me deu dois tapas na cara dizendo que pra primeiro de conversa eu não deveria estar ali, aquilo me deu uma raiva aí partir pra cima dele e ele veio para cima de mim...
   Fez uma pausa.
   _Você deve estar se perguntando o por que eu ainda estava com ele, né? -olhou para Raquel- eu poderia ter colocado ele para fora de casa, ter ido embora, ligado para os meus pais... mas não, eu continuei com ele... não era mais amor, talvez fosse lá no fundo, mas, eu ainda tinha esperanças de tudo voltar a ser como era antes, quando ele era aquele cara por quem eu me apaixonei um dia...
   Fez outra pausa limpado os olhos.
   _Em meio aos abusos, eu já não tinha o prazer de me deitar com ele, ele me forçava... aí me veio uma esperança, uma oportunidade de voltarmos a sermos como éramos antes, ele vivia dizendo que queria a nossa casa cheia de filhos, então... eu descobri que estava grávida. Pra mim, eu achava que ele ia se endireitar, voltar a trabalhar para sustentar a criança que eu estava esperando, fui contar pra ele...
   Raquel parou de respirar para prestar mais atenção.
   _Ele surtou, disse que o filho não era dele, começou a jogar as coisas no chão e... e me fez perder o bebê com um soco na barriga, naquela hora eu não vi mais nada, acordei no hospital com ele do meu lado... Ele disse aos médicos que eu havia caído da escada -inspirou fundo lutando contra as lágrimas que queriam escorrer- eu deveria ter dito que foi ele que me bateu quando o médico disse que eu havia perdido o bebê, mas não disse. Ele estava com uma cara tão triste de arrependimento que eu não disse nada. Ele jurou nunca mais encostar a mão em mim, ele parecia estar muito arrependido, me pediu desculpas...  alguns dias depois, disse que havia arranjado um emprego mas não me deu detalhes do que era, ficamos bem por uns meses até eu descobrir que ele estava metido com drogas, o trabalho dele era este, drogas! Bom, ele tinha parado de beber, não brigávamos mais, então, mais uma vez eu deixei pra lá! Até que ele começou a levar drogas para dentro de casa e uns caras esquisitos entrar em minha casa sem pedir licença.
   Olhou imdignada para Raquel.
   _Ele deixou um desses caras encostar a mão em mim e não fez nada! Disse que devia dinheiro para esse cara e para pagar metade dessa dívida, ele... ele deixou que o cara fizesse o que quisesse comigo... depois disso, eu tomei vergonha na cara e disse pra mim mesma, 'chega, não dá mais, você é melhor do que isto!'. Decidida, juntei as minhas coisas e sai de casa deixando um bilhete dizendo 'ACABOU!!'
   Pigarreou.
   _Eu fui perambulando pelas ruas até que a dona Jô que trabalhava na padaria perto da minha casa, me encontrou passando mal na rua, ela me levou para a sua casa e cuidou de mim, aí descobri que estava grávida de novo, entrei em pânico, queria tirar aquela criança da minha barriga o mais rápido possível com medo dele descobrir a minha grávidez e tirasse ele mesmo ela de mim, a dona Jô não deixou eu tira-la. Fez bem ela não me deixar tirar!
   Sorriu olhando para Ana na foto grudada na geladeira.
   _Desde então ela me ajuda... mas aí ele me encontrou, estava furioso por ter o abandonado, ele veio para cima de mim mas a dona Jô o impediu dizendo que eu estava grávida, eu não contei pra ela do ocorrido a alguns meses atrás... eu achei que ele ia me matar por estar grávida, mas não, ele pediu para voltar para casa com ele para ele cuidar da criança, ele parecia tão convincente, gentil... eu iria na mesma hora se a dona Jô não tivesse se colocado na minha frente dizendo que eu não ia a lugar algum... as últimas palavras que ele disse olhando nos meus olhos foram "eu ainda voltarei, esta criança ainda será minha!!'... dias depois que a Ana nasceu, eu soube que ele foi morto numa troca de tiros com a polícia, parte de mim ficou aliviada por nunca mais vê-lo mas a outra parte não queria que ele morresse, que o meu marido morresse... apesar de tudo o que passamos... sei lá.
   Sofia continua depois de respirar fundo outra vez.
   _Mesmo depois de ter se passado cinco anos da sua morte, até hoje eu acho que ele vai entrar pela aquela porta querendo ver a Ana, as vezes eu acordo no meio da noite achando que ele está no quarto a vendo dormir...
   Respirou fundo limpando o rosto, olhou para o prato de Raquel e disse.
   _A sua comida vai esfriar.
   Raquel já não sentia mais fome, o seu estômago revirava com o que Sofia acabara de contar. Preferia ouvir de Sofia um 'sim, eu estou dando em cima de você. Até que em fim percebeu!' e depois a beijaria, poderiam até transar ali na mesa da cozinha ou na bancada, isso era melhor do que descobrir sobre o seu doloroso passado.
   _Me desculpe... -disse Raquel com a voz baixa.
   Pedia desculpas por Sofia ter passado por tudo aquilo como se a culpa fosse sua. Pedia desculpas por não querer comer mais. Pedia desculpas por Sofia achar que ela passara pela mesma coisa, quase a mesma coisa que ela passou.
   E de repente, Raquel percebeu que já não fazia mais sentido ficar se remoendo, se martirizando por aí pelos cantos pelo fato de Marina ter feito ela de idiota, porque ser feita de idiota, não era nada comparado com o que Sofia enfrentou.
   Sentia vergonha de si mesma por ter pensado aquelas coisas horríveis de Sofia. Sentia vergonha de si mesma por achar que Sofia estava dando em cima dela. Sentia vergonha de si mesma por dizer aquelas coisas para a sua mãe na hora da raiva. Sentia vergonha por suas brigas com Marina. Sentia vergonha de si mesma por se ofender com Bruna quando ela abriu a boca para Marina, afinal, Raquel em momento algum disse para Bruna não contar a ninguém.
   Agora entendia o que Sofia queria dizer com 'tentar ajudar da melhor maneira possível', agora entendia a sua preocupação, a sua atenção com ela, Sofia queria que Raquel não se sentisse sozinha, que poderia contar com ela sempre que precisasse.
   Raquel não sabia como agir agora, não sabia o que dizer nestes momentos delicados e se dissesse alguma coisa errada?
   Olhou para o relógio em cima da cabeça de Sofia.
   "12:50h"
   _É quase uma da tarde, a Ana já deve estar chegando.
   Sofia olha para trás acima de sua cabeça para olhar as horas.
   _Nossa, -pegou o seu último bolinho de carne moída e o jogou na boca se levantando- nem vi o tempo passar!
   Pegou o seu prato da mesa e o levou para a pia para lava-lo.
   _Quando acabar de comer, lave o seu prato! -disse para Raquel enquanto ia para o quarto.
   _Sim senhora!
   Raquel sorriu, Sofia não fazia nenhuma cerimônia quando queria.
   "Você não é uma boa anfitriã!"
   Seu sorriso se desfaz ao lembrar do que passou.
   _Eu vou lá embaixo esperar por ela -disse Sofia aparecendo novamente- e aproveitar para pagar o cara da van. Termine de comer!
   Sofia destrancou a porta e saiu fechando a atrás de si, não deu chance de Raquel dizer nada.
   Raquel até tentou terminar de comer, mas estava sem fome, a comida já não tinha o mesmo gosto de antes. Por um tempo ficou pensando no que Sofia tinha contado, começou a entender o porquê das cortinas na janelas, tampava o interior de sua casa para que ninguém o visse pela janela.
   "Mas estamos no segundo andar?"
   Mas mesmo assim.
   "Deve ser horrível viver com a sensação de estar sendo observada, sendo assombrada pelo fantasma de seu marido!"
   Notará também que Sofia, de hora em hora, verificava se a porta estava trancada.
   "Que triste!"
   Estava lavando seu prato quando a porta se abre, perdida em seus pensamentos, deu um pulo para trás de susto.

NÃO É A MINHA CULPA SER ASSIM!!!  (Volume 1)Where stories live. Discover now