Albuquerque-Amélia

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- Foram ouvidos tiros no estádio – disse Florenzi. – Parece que tentaram matar aquele garoto.

A sala de Albuquerque estava quente, ele abriu a janela. Parecia que o ar condicionado não estava funcionando. O homem suava sob o terno negro. Acendeu um cigarro.

Florenzi entregava uma pilha de papel onde estavam escritos tudo que ele pôde conceber das cenas entre Eduardo Coimbra e o outro rapaz. Era tudo muito pouco, mas ele desconfiava de algumas coisas. As armas, tratadas na conversa, ficaram rodeando a sua mente. Além dos tiros que algumas pessoas disseram ter ouvido, vindos do estacionamento do estádio. Tudo podia ter sido confundido com os fogos que esses jogos sempre têm, mas ele tinha certeza de que aquele jovem era peça crucial no desenrolar dos casos.

- Já temos informações sobre ele – disse Albuquerque. Virou para Florenzi e tragou a fumaça do cigarro, depois soltou. – O CII trabalhou bem.

Na noite anterior ele fora jantar com a senhorita Amélia Coutinho, mais por motivos pessoais que profissionais. Aquela mulher estava lhe tirando o sono mais do que qualquer negro ligado à prostituição. Ela era linda e inteligente e estava vestindo um longo e negro vestido, com os cabelos presos num coque meio despojado. Sua pele branca contrastava com o batom absurdamente vermelho.

“Você deve ter uns trinta ternos”, ela disse ao se sentar à mesa reservada para eles e sorriu.

Ele assentiu.

“Quem dera”, respondeu, “o salário de detetive não paga tanto”. Ele ficou a fitá-la, com um olhar atento, inocente, mais de admiração que de desejo e sorriu-lhe; ela lhe devolveu  o sorriso vivo. O coração bateu forte.
Deu-lhe uma pasta.

“Aqui estão as informações sobre os rapazes das fotos. Seus nomes são Gregório Monteiro, Larry Devito, Filipo Venturini e, o rapaz de Fedora, Daniel Cosini. Ele parece ter tomado o lugar de ‘capo’ da gangue Os Senhores… tão jovens. Bem, eles têm a mesma mentalidade dos antigos homens que lideraram a gangue, um deles era o pai de Daniel, Sílvio Cosini, não aceitam de maneira alguma as drogas no Celeste”.
Albuquerque torceu a boca.

“Acha que o fato de repudiarem as drogas está ligado ao fato de os outros terem sido assassinados?”, perguntou já sabendo da resposta. Isso era óbvio. Nas semanas anteriores os registros de tráfico aumentaram de um modo absurdo para os padrões antigos. Ao que parecia, todos os grupos que comandavam o submundo estavam ligados na rede de venda de drogas ilícitas. Se os Senhores se mantiveram fora disso, até mesmo combatendo a venda em seu bairro, eles seriam um alvo.

Amélia fez que sim com a cabeça.

“Creio que sim, e não espero que eles vão deixar barato”, ela disse pegando o cardápio. “Eu nunca fui fã de comida francesa, aceitei só porque me chamou”, sorriu novamente. “ Você é sofisticado”.

Ele negou com a cabeça. Os cabelos bem penteados, puxados para trás.

“Chamei por que achei que gostaria de vir”, falou de modo tímido, “eu não tenho nada de sofisticado, fui criado na cidade, mas vivo como um caipira. Vou à missa aos domingos, leio livros, prefiro velas à luz elétrica. Mamãe me contava sobre a vida de seus avós em Portugal, no norte, em Braga. Era tudo que eu gostaria de ter, três alqueires e uma vaca. Gosto de carros antigos, mas seria melhor andar”, então sorriu. “Já estou aqui falando de mim, desculpe. Que vai querer?”.

Ela pôs sua mão sobre a dele, pousada sobre a mesa.

“Continue falando”, disse, “eu gosto de ouvir histórias”. Fitou o cardápio e depois olhou para ele sem conseguir segurar o riso. “Não percebo nada de comida francesa, o que pedir para mim está bem”.

Ele assentiu. Chamou o garçom.

“Coq au vin, para nós”, disse. “Traga um vinho tinto também”.

O rapaz concordou e recolheu os cardápios.

“Como dizia”, ele prosseguiu a conversa, “sou bisneto de portugueses tanto da parte de pai quanto de mãe. Nada raro”, sorriu. “A parte de mamãe é de Braga, a de papai é lisboeta. Eles vieram para cá no tempo em que os socialistas ainda eram uns bocós opositores e não os chefões que criaram tudo o que temos hoje… de ruim. Meu bisavô materno, Pedro Henrique Matoso era um camponês atrás de uma vida além de seus alqueires. Monseleste parecia o lugar ideal, aqui havia um sentimento de que por ser uma nação nova, tudo poderia ser novo. Os sonhos de Pedro foram por água abaixo, encontrou uma Bellum cheia de movimentação, como toda cidade grande, onde as coisas já estavam consolidadas e nem todo mundo conseguia se dar bem. Ele havia vendido as suas terras e o dinheiro deu para comprar uma quinta de onde ele tirava o sustento, as terras eram baratas, ao menos. O filho dele, João Matoso, sempre quis estudar, tornou-se advogado e fez a propriedade do pai  crescer, minha mãe, Sofia Aleixo Matoso é professora, para desespero de vovô. Ele queria fazê-la advogada, mas ela preferiu dar aulas. Creio que tenha feito o certo”.

Fez silêncio.

Olhou os olhos curiosos de Amélia. Eram de um castanho profundo, pequenos, cheios de alegria. A boca pequena, de lábios finos, desenhava um sorriso no rosto, fazendo as lindas covinhas aparecerem embaixo do lábio inferior.

“Por que parou?”, perguntou ela, “Ainda há os Albuquerque”.

Ele assentiu.

“Bem, meu bisavô Teodoro José da Almada Albuquerque era um empresário lisboeta do ramo têxtil. Ele decidiu que tinham de expandir os negócios para além-mar, e viu que no reino tinha mão-de-obra barata e mercado consumidor. As empresas A.A Merkaet eram dele, ele vendeu depois de os socialistas tomarem o poder, e quis ir de volta para Portugal, meu avô era o filho mais novo dele. Frederico da Almada Albuquerque, ele morreu tem três anos. Ele quis ficar em Monseleste, estava apaixonado por uma das moças que trabalhavam na fábrica. Teodoro foi, Frederico ficou, mesmo o pai deixando nada para ele e o fazendo viver apenas de seu trabalho como advogado. A moça se chamava Teresa, e ela veio a ser minha avó. As coisas eram difíceis para ele, nem sempre havia casos para vovô assumir e os socialistas deixavam claro que os contrários ao partido pereceriam. Havia muita arbitrariedade e supressão de direitos. Então o governo caiu e ele conheceu o meu avô João, que lhe deu emprego no seu escritório. Foi assim que meu pai, Henrique Pereira da Almada Albuquerque, conheceu mamãe. Num dos encontros de advogados do Escritório de Advocacia Matoso e Advogados. Ele é contador. Eu segui os passos dos meus avôs e estudei Direito na Universidade de Bellum, mas preferi seguir carreira policial. E aqui estamos”, sorriu.

O garçom pôs os pratos sobre a mesa e abriu o vinho.

Amélia olhava fixamente para Francisco.

“E você, de onde vem?”, perguntou ele.

Ela olhou para o prato.

“Da próxima vez, leve-me a um restaurante italiano”, disse e riu. “Como que se come este diabo? Onde estão os talheres? Cadê a massa?”.

Ele riu também.

“Desculpe”, disse ele. “Próxima vez? Então terá próxima vez?”.

“Eu tenho certeza que sim”, ela respondeu. “Bem, minha família veio para cá no tempo da colonização, não sei ao certo do mais antigos. Sou tão ibérica quanto você. Eram todos do Minho, no norte também de Portugal. Quando chegaram aqui, as famílias foram para lados opostos. Os Ferreira, povo de mamãe eram ferrenhos defensores do regime de colônia, eram fizeram dinheiro ajudando a coroa, mas os Coutinho eram do lado de Dom Afonso, que proclamou a independência. A família Coutinho era ligada à política, e todos os primeiros filhos foram senadores até o golpe de Estado. Papai e mamãe se conheceram na universidade, ela estudava Medicina, ele Engenharia. Eu estudei Direito e fui indicada para o CII, talvez o peso da família. Bem, não sei contar histórias como você”.
Ele sorriu.

“O que a faz ser mais suportável que a minha pessoa”, disse ele.
Ela riu.

Agora ele observava pela janela, como vinha fazendo, a rua lá fora. As pessoas que perambulavam sem saber como a cidade estava para ser tomada pelo crime. Eles estavam prestes a viver momentos de anarquia completa. A polícia pouco podia fazer, mas fariam esse pouco.

Ruas De SangueWhere stories live. Discover now