Capítulo 3

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"Posso ficar com ele?"O pai jogou o soldadinho de volta para Peter."Claro."O menino o colocou no parapeito da janela ao lado da cama, o rifle deplástico apontado para fora em uma satisfatória demonstração de defesa, masnão se passou nem uma hora e Pax o pegou. Peter riu. Assim como ele, Paxtinha que ficar com o soldadinho.Peter largou o brinquedo de volta na lata e estava prestes a colocar a tampaquando viu ali no meio a ponta de uma foto amarelada.Ele puxou a foto. Era do seu pai, talvez aos dez ou onze anos, com um dosbraços em volta de um cachorro. Peter achou que era uma mistura de collie comumas cem outras coisas. Parecia um bom cão, do tipo que lembramos paracontar aos nossos filhos.— Eu nunca soube que papai teve um cachorro — disse ele, estendendo a fotopara o avô.— Duke. A criatura mais burra que já nasceu. Sempre no meio do caminho.— O avô olhou para a foto com mais atenção e depois para Peter, como seestivesse vendo algo pela primeira vez. — Você tem o mesmo cabelo preto doseu pai. — Ele passou a mão pela penugem grisalha que circundava o alto dacabeça. — Eu também tinha, muito tempo atrás. E, olhe, ele também eramagrelo, assim como você, assim como eu, e com orelhas de abano. Os homensda nossa família... acho que é como diz o ditado: as maçãs não caem longe daárvore, não é mesmo?— É.Peter forçou um sorriso, mas não durou muito. No meio do caminho. Omesmo que o pai tinha dito."Não tem como seu avô ficar com essa raposa, toda hora no meio docaminho. Ele já tem certa dificuldade em caminhar. Você também, presteatenção, porque ele não está acostumado a ter uma criança por perto."— Bem, quando veio a guerra, eu também servi, como meu pai. E, agora,como o seu. O dever chama, e nesta família nós respondemos ao chamado. Não,senhor, as maçãs não caem longe da árvore. — Ele devolveu a foto. — Seu pai eaquele cachorro... Eles eram inseparáveis. Eu tinha esquecido isso.Peter colocou a foto de volta na velha lata de biscoitos, fechou bem a tampa ea empurrou para debaixo da cama, onde a tinha encontrado. Olhou pela janelade novo. Não podia arriscar falar de animais de estimação naquele momento.Não queria saber de dever. Muito menos queria ouvir sobre maçãs, sempre àsombra das árvores que pairavam inclementes acima.— As aulas aqui começam que horas? — perguntou ele, sem se virar.— Oito. Pediram que você chegasse cedo, para se apresentar à professora.Sra. Mirez ou Ramirez... alguma coisa assim. Já arranjei alguns materiais paravocê.O avô entregou a ele um caderno de espiral, uma garrafinha térmica velha ealguns cotocos de lápis presos com um elástico grosso.Peter foi até a mesa e guardou tudo na mochila.— Obrigado. Pego um ônibus ou vou a pé?— A pé. Seu pai estudou naquela escola e ia a pé. É só seguir a Ash até o finale virar à direita na Rua da Escola e você vai ver: um prédio grande de tijolinhos.Rua da Escola, entendeu? Saindo às sete e meia, dá tempo de sobra.Peter assentiu. Queria ficar sozinho.— Entendi. Então, tá. Acho que vou dormir.— Ótimo — respondeu o avô, sem se dar ao trabalho de disfarçar o alívio, esaiu, fechando a porta com firmeza, como se dissesse: Você pode até ficar nestequarto, mas o restante da casa é meu.Peter se aproximou da porta e ouviu o avô se afastar. Depois de um minuto,escutou o ruído de pratos na pia. Imaginou o avô na cozinha apertada em quehaviam jantado um ensopado, a cozinha em que o cheiro de cebola frita era tãoforte que ficaria entranhado ali até muito depois de o avô morrer. Mesmo se umadezena de famílias a limpasse ao longo de um século, aquela casa ainda teriacheiro amargo. Peter ouviu os passos arrastados do avô cruzando o corredorrumo ao quarto, depois o leve ruído elétrico da televisão ao ser ligada, o volumediminuindo, um agitado comentarista de notícias quase inaudível. Só então tirouos tênis e se deitou na cama estreita.Seis meses, talvez mais, morando ali com um avô que parecia sempre prestesa explodir. Certa vez, anos antes, Peter perguntara ao pai com que o avô seirritava tanto."Com tudo. Com a vida", respondera o pai. "Ele piorou depois que sua avómorreu."Peter notava que o pai vivia em constante tensão desde que a mãe morrera.No começo, houve apenas um silêncio assustador, mas, com o tempo, o rostodele foi endurecendo até assumir uma permanente ameaça de expressãodesgostosa. As mãos estavam sempre fechadas com força, como se ele torcessepara que alguma coisa o fizesse explodir.Peter aprendeu a evitar se tornar essa coisa. Aprendeu a ficar fora docaminho do pai.O cheiro de gordura velha e de cebola se insinuou até ele, escorrendo dasparedes e até da cama. Ele abriu a janela.Uma brisa de abril muito gelada entrou no quarto. Pax nunca tinha ficadosozinho lá fora, exceto no cercado. Peter tentou tirar da memória a últimaimagem que tinha de sua raposa. Pax não devia ter seguido o carro por muitotempo, mas a lembrança do bichinho se deixando ficar no acostamento decascalho, confuso, era pior.Peter sentia as emoções se agitando. Durante todo o dia, por todo o percursoaté ali, a ansiedade vinha se revolvendo, se enroscando dentro dele como umacobra — só esperando para dar o bote, para rastejar pela coluna, sibilando aprovocação de sempre: Você não está onde deveria estar. Alguma coisa ruim vaiacontecer, porque você não está onde deveria.Peter rolou para a borda do colchão, puxou a lata de biscoitos de sob a cama epegou a foto: o pai com o braço em volta do cachorro preto e branco, como senunca tivesse tido medo de perdê-lo.Inseparáveis. Não escapara ao menino o tom de orgulho do avô ao dizer isso.Claro que ele tinha orgulho: havia criado um filho que sabia o que era lealdade eresponsabilidade. Um filho que sabia que um menino e seu animal de estimaçãodevem ser inseparáveis. De repente, a palavra em si pareceu a Peter umaacusação. Ele e Pax: o que eram, então? Separáveis?Não. Às vezes, na verdade, Peter tinha a estranha sensação de que ele e Paxeram um só. A primeira vez foi quando ele o levou, ainda filhote, para passear.Pax viu um pássaro e começou a forçar a coleira, tremendo como se estivesserecebendo uma carga elétrica. E Peter viu a ave pelos olhos de Pax: o incrívelvoo veloz como um raio, em liberdade e velocidade absurdas. Peter sentiu aprópria pele se inflamar, o corpo inteiro tomado por arrepios, os ombros ardendocomo se ansiassem por asas.E tinha acontecido de novo naquela tarde. Sentira o carro se afastando comose fosse ele a ficar para trás. Em pânico, seu coração tinha disparado.As lágrimas arderam nos olhos de novo. Peter as limpou, frustrado. Era ocerto a fazer, dissera o pai."Logo estaremos em guerra. Todos devem fazer sacrifícios. Eu vou ter queservir, é meu dever. E você vai ter que ir embora."De certa forma, ele já esperava por isso, é claro. Dois amigos seus já tinhamfeito as malas e partido com a família quando começaram os rumores deevacuação. O que ele não esperava era aquilo... a pior parte."E aquela raposa... Bem, já está mesmo na hora de devolvê-la à natureza."Um coiote uivou, tão perto que fez Peter pular de susto. Um segundo coioterespondeu, e, depois, um terceiro. O menino se ergueu na cama e fechou ajanela, mas era tarde demais: os ganidos e uivos, assim como seus significados,já estavam na cabeça dele.Peter tinha apenas duas lembranças ruins da mãe. Por outro lado, tinha muitasboas, às quais sempre recorria em busca de consolo, embora tivesse medo deque se apagassem por conta de exposição excessiva. As duas lembranças ruins,ele enterrara bem fundo, e fazia de tudo para mantê-las enterradas. Agora, oscoiotes ladravam na mente dele, desenterrando uma das lembranças ruins.Quando tinha uns cinco anos, Peter encontrara a mãe ao lado de um canteirode tulipas vermelhas, triste. Metade das tulipas estava intacta, mas a outra metadeestava no chão, as flores esmagadas."Foi um coelho. Deve achar os talos uma delícia, o diabinho."Quando anoiteceu, Peter e o pai montaram uma armadilha."Não vamos machucar ele, né?""Não. Vamos só pegá-lo e deixá-lo na cidade vizinha. Ele que coma as tulipasde outro."O próprio Peter foi quem colocou a cenoura na armadilha, como isca. Depois,implorou ao pai que o deixasse dormir no jardim, para ficar atento. O pai nãodeixou, mas o ajudou a programar o despertador para que ele fosse o primeiro aacordar. Quando o alarme soou, Peter correu até o quarto da mãe; queria elepróprio levá-la para ver a surpresa lá fora.A armadilha estava caída de lado no fundo de um buraco recém-aberto naterra, com pelo menos um metro e meio de largura. Dentro, um filhote decoelho, morto. Não havia nenhuma marca no corpinho dele, mas a gaiola tinhamarcas de mordidas, e todo o solo em volta fora arranhado."Coiotes", disse o pai, se aproximando. "Devem ter tentado entrar eacabaram matando o bichinho de medo. E nem acordamos."A mãe abriu a armadilha, pegou o corpinho sem vida e o levou à bochecha."Eram só tulipas. Só algumas tulipas."Peter encontrou a cenoura com a ponta mordida e a jogou o mais longe queconseguiu. Em seguida, a mãe colocou o filhotinho nas mãos de Peter e foibuscar uma pá. Com o dedo, Peter traçou o contorno das orelhas do bichinho, quese abriram como uma folha de samambaia desabrochando, e as patas, tãominúsculas, e o pelo macio do pescoço, molhado das lágrimas da mãe.Quando voltou, ela tocou o rosto de Peter, que ardia de vergonha.— Está tudo bem. Você não sabia.Mas não estava tudo bem. Depois disso, ele passou um bom tempo vendocoiotes toda vez que fechava os olhos. Revolvendo a terra com as patas,mordendo o ar. Peter se transportava para onde deveria ter estado naquela noite:no jardim, alerta. A todo momento via a si mesmo fazendo o que deveria terfeito: levantando-se, pegando uma pedra e a jogando nos coiotes. Via ospredadores fugindo para a escuridão e se imaginava abrindo a armadilha parasoltar o coelho.A lembrança fez a serpente da ansiedade atacar com tanta força que omenino ficou sem fôlego. Tanto na noite em que os coiotes mataram o coelhoquanto agora, Peter não estava onde deveria estar.Ele respirou fundo e se sentou abruptamente. Rasgou a foto no meio, depoisrasgou outra vez, e jogou os pedaços embaixo da cama.Abandonar Pax não era o certo a fazer.O menino se levantou de um pulo — já tinha perdido muito tempo. Pegou damala uma calça cargo, uma camiseta de manga comprida com estampacamuflada e um suéter de lã, além de algumas meias e cuecas. Amarrou osuéter na cintura e colocou o restante das roupas na mochila. Um canivete nobolso da calça. Carteira. Hesitou por um minuto, decidindo entre as botas e ostênis; escolheu as botas, mas não as calçou.Olhou ao redor, torcendo para encontrar uma lanterna ou qualquer coisa queservisse como equipamento de camping. Aquele quarto tinha sido do pai de Peterquando garoto, mas estava claro que o avô havia tirado dali todas as coisas dele,deixando apenas alguns livros nas prateleiras. Peter notara a surpresa do avô coma lata de biscoitos encontrada debaixo da cama — um esquecimento. Passou osdedos pelas lombadas dos livros.Um atlas. Ele o pegou, maravilhado por ter dado aquela sorte, e o folheou atéencontrar em um mapa o trajeto que havia feito com o pai."São menos de quinhentos quilômetros de distância", dissera o pai algumasvezes durante o percurso, quebrando o silêncio. "Se eu for liberado um dia, venhovisitar você."Mas Peter sabia que isso nunca aconteceria. Não havia dias de folga durante aguerra.Além do mais, a saudade que ele sentia não era do pai.Então ele notou: a rodovia serpenteava ao redor de uma extensa cadeia decolinas. Se atravessasse direto as colinas em vez de seguir pela rodovia, elepouparia bastante tempo e ainda reduziria o risco de ser pego. Estava prestes aarrancar a página para levar na viagem quando se deu conta de que não podiadeixar uma pista tão óbvia para o avô, então apenas estudou o mapa com muitaatenção e recolocou o atlas na prateleira.Menos de quinhentos quilômetros. Seguindo pelo atalho, provavelmente jácruzaria mais de cem, então restariam uns trezentos. Se ele conseguissecaminhar ao menos cinquenta por dia, chegaria em uma semana, talvez antes.Tinham deixado Pax no início da estrada que levava a uma fábricaabandonada. Peter fizera questão de que fosse aquela estrada, porque quaseninguém passava por ali (Pax nunca conhecera o trânsito) e porque haviabosques e campos por toda a área ao redor. Dali a sete dias, ele voltaria eencontraria o bichinho lá, à sua espera. Recusava-se a pensar no que poderiaacontecer com uma raposa domesticada nesses sete dias. Não: Pax estariaesperando na beira da estrada, no mesmo ponto em que o haviam deixado.Estaria com fome, claro, e provavelmente com medo, mas estaria bem. Peter olevaria para casa. Ficariam lá, os dois. E, dessa vez, eles que tentassem obrigá-loa ir embora. Aquilo era o certo a fazer.Ele e Pax. Inseparáveis.O menino olhou ao redor de novo. Precisou resistir à tentação desimplesmente sair correndo, pois não podia se dar ao luxo de esquecer nada. Acama — puxou o cobertor, remexeu nos lençóis e amassou o travesseiro até quedesse a impressão de que alguém tinha dormido ali. Abriu a mala, pegou a fotoda mãe que, em casa, deixava sobre a cômoda — a que fora tirada no últimoaniversário dela, segurando no alto a pipa que Peter tinha feito e sorrindo comose nunca tivesse recebido presente melhor — e a enfiou na mochila.Em seguida, pegou as coisas dela que, em casa, escondia na gaveta dacômoda. As luvas de jardinagem, ainda sujas da terra em que ela mexera pelaúltima vez; uma caixa do chá preferido dela, que já não tinha mais o mínimocheiro de hortelã; as grossas meias listradas que ela usava no inverno. Tocou cadaitem, desejando poder levar tudo aquilo de volta para casa, que era o lugar a quepertenciam, mas colocou na mochila, junto com a foto, apenas o menor deles:uma pulseira de ouro com um pingente de fênix esmaltado, que ela usava todosos dias.Peter observou o quarto uma última vez. Seu olhar se demorou na bola e naluva de beisebol, até, enfim, ir até lá e enfiar ambas na mochila. Não pesavammuito, e ele sabia que ia querer usá-las em casa, sem contar o simples fato deque o faziam se sentir bem. Por fim, abriu a porta devagar e foi de fininho até acozinha.Pousou a mochila sobre a mesa de carvalho e, à luz fraca da lâmpada acimado fogão, começou a guardar mantimentos. Uma caixa de passas, um pacote debiscoitos salgados e um pote de manteiga de amendoim já pela metade —manteiga de amendoim faria Pax aparecer de onde quer que estivesse. Dageladeira, pegou um naco de queijo e duas laranjas. Encheu a garrafa térmica erevirou as gavetas até encontrar fósforos, que embrulhou em papel-alumínio.Debaixo da pia, fez duas belas descobertas: um rolo de fita adesiva reforçada eum pacote de sacos de lixo resistentes. Teria sido melhor se fosse lona, mas secontentou com dois sacos e fechou a mochila.Por fim, pegou uma folha de papel do bloco que ficava ao lado do telefone ecomeçou a escrever um bilhete: QUERIDO AVÔ. Depois de um minuto olhandopara aquelas palavras como se fossem de algum idioma estrangeiro, amassou opapel e começou outro. SAÍ CEDO. QUERIA COMEÇAR A ESCOLA COM OPÉ DIREITO. NOS VEMOS À NOITE. Ele também olhou para esse papel porum tempo, perguntando a si mesmo se o recado transmitia a culpa que estavasentindo. Finalmente, acrescentou: OBRIGADO POR TUDO. PETER. Colocou obilhete embaixo do saleiro e saiu.Chegando ao caminho de tijolos, vestiu o suéter e se abaixou para amarrar ocadarço das botas. Então, levantou-se e botou a mochila nos ombros. Parou porum momento para olhar em volta. A casa, às suas costas, parecia menor do quequando ele chegara, como se já estivesse ficando para trás. Do outro lado da rua,nuvens deslizavam pelo horizonte e uma meia-lua surgira em pouco tempo,iluminando a estrada que se abria à frente.


PAXTahanan ng mga kuwento. Tumuklas ngayon