Capítulo 22

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Peter esfregou o cabo do formão com um chumaço de palha de aço lubrificada,tentando controlar a imensa vontade de lançar longe a ferramenta.A manhã tinha sido boa. Ele andou de muletas pelo campo e pelo bosque,sobre lama e cascalho, subindo colinas e descendo áreas rochosas, pulandopequenos muros de pedras e passando por baixo de cercas. Forte, incansável equase tão rápido quanto se estivesse com os dois pés no chão. Ao meio-dia, eledisse a Vola que se sentia pronto para ir, e estava mesmo. Mas ela o ignorou,como sempre fazia, e mandou que ele fosse descansar no celeiro. Até ficou comas muletas como garantia."Pé para cima. Vá polir algumas ferramentas. Sentir nas mãos."O olhar dele pousou na escultura quase pronta sobre a bancada. A raposa nãoestava bem-acabada, mas parecia viva, e ele via nisso um sinal de queencontraria Pax ileso. Embora achasse perigoso ter esperanças, permitiu-seimaginar a cena. Chamaria Pax no ponto onde o havia deixado, e seu bichinhosairia correndo do bosque e provavelmente o derrubaria de tanta felicidade. Osdois iriam para casa juntos.— Você vai arrancar esse cabo de tanto polir, garoto.Peter deu um pulo de susto.— Não ouvi você entrando.— Não deixe a mente divagar quando estiver usando uma ferramenta.Vola se sentou em um barril ao lado dele e pegou uma lima e um panoembebido em óleo.— Eu estava pensando no Pax.Peter colocou na bancada o formão, que agora brilhava de tão polido, e pegoua escultura. Entregou-a para Vola quando ela estendeu a mão.— Parece que ele quer pular da mão. Você está preocupado com ele?— Estou. Mas, na maior parte do tempo, acho que ele pode estar bem. Asraposas são animais inteligentes, muito inteligentes. Lá em casa, tínhamos quetrancar a porta da cozinha, porque Pax sabia abrir todos os armários. Uma vezele mastigou o fio de um ventilador que tínhamos acabado de colocar no meuquarto. Meu pai morreu de raiva. Mas, quando ele estava tentando consertar,descobriu que o motor estava em curto-circuito. Teria pegado fogo. Acho que, dealguma forma, Pax sabia que estava me protegendo. Então por que ele nãoaprenderia a caçar? Você acha que ele pode sobreviver?— Acho — disse Vola.Peter pegou de volta a escultura e olhou no rosto da raposa.— Tem mais uma coisa — continuou. — É que... eu saberia se ele tivessemorrido.Então ele contou a Vola o que nunca contara a ninguém: que às vezes tinhauma conexão única com Pax; que às vezes não só sabia o que ele estava sentindocomo também sentia ele próprio. Prendeu a respiração ao se dar conta de queaquilo devia parecer coisa de maluco.Em vez de rir, Vola disse que ele tinha sorte.— Você sabe como é viver "dois, mas não dois".— Tem essa frase no seu quadro. "Dois, mas não dois". Eu não tinhaentendido.— É um conceito budista. A não dualidade. Tem a ver com unidade, comcoisas que parecem separadas mas que na verdade são interligadas. Não háseparações. — Vola pegou de volta a raposa esculpida. — Isto não é só umpedaço de madeira. Aqui tem também as nuvens que trouxeram a chuva queregou a árvore, os pássaros que fizeram ninho nos galhos e os esquilos que sealimentaram de suas nozes. Tem a comida que meus avós me deram e que metornou forte o suficiente para cortar a árvore, tem o aço do machado que eu usei.E tem também o convívio que você teve com sua raposa, o que permitiu que aconhecesse bem e a esculpisse. Isto é a história que você vai contar aos seusfilhos quando der esta escultura a eles. São vários elementos diferentes, mas quesão também um só. Entende?— Dois, mas não dois. Inseparáveis. Bem... antes de ontem eu tive certeza deque Pax tinha encontrado comida. Eu senti. E ontem, quando vi a lua, eu soubeque Pax estava vendo o mesmo que eu naquele momento. Você acha que, se eusinto Pax vivo, ele está mesmo vivo?— Acho.Aquelas palavras fizeram crescer as esperanças de Peter. Vola nunca dizianada em que não acreditasse. "A verdade: essa é a regra aqui." Ela tinha dito issomilhares de vezes.Foi quando, de repente, se deu conta de como era importante ter uma pessoasincera com quem contar. Quantas vezes na vida ele tinha desejado apenas isso?Para quantas perguntas precisara de uma resposta sincera e só recebera umsombrio silêncio do pai?Então, antes que perdesse a coragem, fez a pergunta que o atormentava:— Você acha... você acha que, se alguém tem uma parte selvagem, essaparte da pessoa pode ser domada? Se for da natureza dela, herdada?Vola olhou para ele com seriedade. Peter sabia que ela devia estar achandoque a pergunta se referia a Pax. Ele não a corrigiu, só pegou o formão de novo,colocou-o no colo e ficou olhando, segurando o cabo com força, enquantoesperava a resposta.— Você sempre foi assim? Sempre pediu para os outros tirarem suasconclusões por você? Hein? Isso não funciona, garoto.Peter respirou aliviado, porque assim que fizera a pergunta, percebera quenão queria ouvir a resposta. Talvez jamais se sentisse pronto para isso.Vola apalpou o bolso do macacão e franziu a testa.— Já ia esquecendo.Ela pegou um muffin enrolado em um guardanapo e o ofereceu a Peter. Eletinha comido quatro daqueles no café da manhã, mas Vola nunca achava que erasuficiente.Peter desembrulhou o muffin. Estava meio amassado, mas, assim como nosoutros, a noz-pecã estava centralizada com perfeição na cobertura de açúcarmascavo. Vola tinha ficado acordada até tarde preparando aqueles muffins, ePeter a ouvira cantando em uma língua que não reconheceu. Uma música feliz.— Vola, por que você ainda mora aqui sozinha?— Eu já expliquei.— Mas vinte anos para descobrir quem você é? Sei lá... é tão difícil assim?— É. A verdade mais simples pode ser a coisa mais difícil de enxergar quandoenvolve a nós mesmos. Se você não quiser ver a verdade, vai fazer o que forpreciso para disfarçá-la.Peter colocou o muffin na mesa. Ela estava fugindo da pergunta.— Só que você sabe a verdade. Você conhece a si mesma. Então por que nãovai morar em um lugar que tenha pessoas? Diga a verdade. Não é essa a regraaqui?Ela olhou pela janela do celeiro. Seus ombros caíram e, quando ela se viroude volta, parecia cansada.— Muito bem, Peter Sem Taco. Talvez seja justamente porque eu meconheço. Talvez eu saiba que meu lugar não é junto de outras pessoas. Talvez euseja uma bomba.— Como assim, uma bomba?— Como você chamaria uma pessoa que um dia é uma menina comendopêssegos e vendo vaga-lumes e, no outro, uma mulher que mata um homem?Hein? Aquela menina teria cortado o próprio braço para não ter que machucarum único vaga-lume, mas, anos depois, matou um completo estranho. Euchamaria essa pessoa de arma. Sou uma arma imprevisível e letal. É melhor euficar escondida aqui, onde não posso machucar ninguém, nem por acidente.Ela levantou a mão e apontou os dedos para ele: bum! Mas, dessa vez, o gestoparecia triste em vez de ameaçador.— Você não me machuca — disse Peter.— E como sabe que não vou machucar?— Sabendo. — Ele deu um soco no peito e completou: — No coração.Vola bateu com as palmas das mãos na bancada e se levantou.— Guarde as ferramentas na ordem certa — murmurou ao sair.Da janela, Peter observou-a voltar para a casa. Parecia ter alguma coisadiferente no seu jeito de andar — como se aquela perna de pau tivesse ficadoainda mais pesada.Uma a uma, Peter guardou as ferramentas limpas nos respectivos estojos e,por fim, enrolou a lona. Sentiu a velha ansiedade se acumulando na base dacabeça. Estava preso ali fazia mais de uma semana. Já teria ido embora se nãofosse a terceira condição. Ele prometera, portanto devia aquilo a Vola, masnaquela manhã, quando perguntara sobre o palco, ela apenas dera de ombros,respondendo: "Uma hora eu faço."De repente, a solução surgiu, tão ridiculamente simples que ele riu alto.Sem as muletas, Peter voltou a ficar desajeitado e lento, mas conseguiu sairdo celeiro aos pulinhos. Foi até onde Vola deixava uma pilha de madeira eescolheu doze galhos compridos e retos, cada um da grossura do seu braço. Um aum, jogou-os na porta do celeiro, depois os colocou para dentro. Então, apoiou osgalhos no cavalete do serrote, cortou os ramos e começou a trabalhar.Duas horas depois, ele tinha um palco. Não era lá muito bonito — os cantosestavam meio desencontrados e presos com barbante, pedaços de madeira detamanhos diferentes presas na moldura para formar as paredes e o piso —, mas,quando ele colocou por cima um pedaço de aniagem, abriu um sorriso.— Moleza — Peter comentou com François, que tinha entrado e parado alipara farejar a construção do menino, em admiração evidente. — Moleza.— Eu fiz o palco. Está no celeiro.Vola parou de depenar a galinha que tinha nas mãos e ergueu o rosto. Olhoupara o galho no qual Peter estava apoiado e apontou para as muletas, apoiadas nabancada da cozinha.Peter pegou as muletas. Logo que as posicionou debaixo do braço, sentiu oconforto que lhe proporcionavam.— Já posso fazer o show de marionetes. Venha.— Tenho trabalho a fazer. Mas tudo bem: hoje à noite.— Depois disso eu posso ir embora, Vola. Sei que estou pronto.Ela colocou a galinha na mesa e suspirou.— Você não está pronto. Tem dormido dentro de casa, protegido e aquecido.Tem água limpa e comida pronta. Mas tudo bem, amanhã vou fazer um testecom você. Quinze quilômetros. Chegando à metade disso, você vai me mostrarque consegue montar um acampamento com uma perna só. Na volta a genteconversa.Vola pegou as penas da galinha e as guardou em uma bolsa. Naquelemomento, ao observá-la, ele percebeu: nada mudaria depois que ele fosseembora. Vola guardaria as penas, faria suas marionetes sozinha no bosque, maise mais marionetes, e contaria a história do soldado para ninguém.

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