Capítulo 13

26 0 0
                                    

— Você vai entrar ou estou segurando a porta para as moscas?Peter soltou a mochila, reequilibrou-se nas muletas e observou o chalé, todoconstruído com troncos de árvores.— Essas árvores cresceram aqui.Não foi uma pergunta, mas Vola fez que sim e apontou para a colina.— Abetos. Do alto das montanhas.Peter tocou um dos troncos. Como seria fazer uma coisa tão... tão grandiosa?Cortar a árvore e vê-la tombar do céu azul e limpo, ir rolando as toras até umaclareira, as mãos grudentas da resina cheirosa, depois posicionar os troncos,empilhados uns sobre os outros, as pontas encaixadas (como os brinquedos queele adorava montar no jardim de infância, as peças velhas guardadas em umacaixa grande de papelão) e, no final de tudo, ter construído uma casa.— Você que construiu?— Não. Foi antes da minha época. Agora, entre. Não tenho o dia todo.Peter continuou parado.— Quais são as condições? Você prometeu me dizer quando chegássemosaqui.Vola suspirou e recuou para o bloco de granito que formava o degrau deentrada, deixando a porta de tela se fechar. Ela pegou um vidro de sementes e foicercada por uma nuvem de pássaros que desceu das árvores. Depois de encher ocomedouro que ficava pendurado em um canto, voltou-se para Peter.— Número um: não quero que ninguém venha aqui. Se eu moro sozinha, é poruma razão. Escreva para seu avô. Invente qualquer coisa para que não apareçagente na minha porta. Sem contar que é no mínimo justo sua família saber quevocê não está morto em uma vala por aí.Peter recuou tão rápido que quase caiu. O movimento causou uma dorexcruciante, e ele teve que morder o lábio para aguentar.— Não. Ele viria me buscar. Não posso.— A condição número um não é negociável.Vola pegou um punhado de sementes e esticou a mão. Um chapim saiu docomedouro para pousar nos dedos dela e bicar as sementes. Vola o jogou no ar.Então, virou-se para Peter mais uma vez.— Número dois: você vai me contar por que está carregando aquela pulseira.Peter olhou para a mochila e sentiu o coração se contrair, como se tentasseproteger algo tão íntimo.— Por quê?— Porque estou curiosa. E dá para saber muito sobre um soldado pelo que eleleva para a batalha.— Mas eu não sou um soldado. Só estou indo para casa.— É mesmo? Pois me parece que você está indo lutar por alguma coisa emum lugar onde uma guerra está acontecendo. Mas, tudo bem, como quiser: vocênão é um soldado. A condição número dois ainda é que, quando eu perguntar,você vai me contar por que trouxe essa pulseira. Por que a pulseira,especificamente. E vai me contar a verdade: essa é a regra aqui. Fechado?Peter fez que sim. O pé direito estava latejando, a perna esquerda doía por terque sustentar sozinha o corpo, e a camisa estava encharcada de suor, por contado esforço de ir pulando do celeiro até ali, mas, apesar de tudo isso, ele semanteve firme.— E a número três?— Você vai me ajudar com uma coisa. Que cara é essa? Não se preocupe, ésó um projeto que precisa de uma segunda pessoa, só isso. Só que ainda nãoposso dizer o que é. — Vola pegou a mochila. — Vamos. Você precisa descansaresse pé. E deve estar com fome, sr. Não Exatamente Fugindo De Casa, ou apenasPeter Sem Taco.De repente, Peter se viu faminto, mas mesmo assim hesitou. Ele se virou eolhou para as colinas, que o sol tingia de um azul enevoado. Pax estava em algumlugar lá fora. Ainda muito longe.Vola apareceu atrás dele. Peter sentiu que ela tinha levantado a mão paratocá-lo no ombro, mas que desistiu.— Sei o que está pensando — disse ela. — Mas você ainda não está emcondições de ir.O interior da casa era bastante iluminado e cheirava levemente a fumaça. Volaindicou uma mesa de pinho, e Peter se sentou. Depois de colocar um cobertornos ombros do menino, ela saiu do cômodo e voltou com um saco plástico cheiode cubos de gelo. Apoiou o pé dele em uma cadeira e colocou o saco de gelo emcima. Com uma toalha, limpou o sangue da mão dele. Por fim, ofereceu aomenino um prato com um pedaço de pão e uma faca.Peter pegou o prato e o colocou na mesa.— Quanto tempo vai levar?— Depende de você. — Ela apontou para o pão. — Que foi, suas mãos estãoruins também? Corte logo esse diavolo.— Quanto tempo?— Você só vai poder ir embora quando estiver conseguindo andar de muletasem terreno irregular durante oito horas por dia. Duas semanas, eu diria. Seisfatias.— Você não entende. Ele não vai sobreviver!Vola abaixou a cabeça para encarar Peter. Em seguida, apontou com opolegar para a parede atrás dele.— Número onze.Peter se virou. Havia vários cartões de papel presos à parede com tachinhas.— "A Corrente do Golfo fluiria por um canudo se o canudo estivesse alinhadocom a Corrente do Golfo e não como contracorrente." — Peter leu aquilo em vozalta, do cartão que tinha o número 11 rabiscado. — O que isso quer dizer?— Quer dizer: alinhe-se, garoto.— Me alinhar?— Aceite as coisas como são. Você está com o pé quebrado. Quebrado. Nossoacordo é que você vai ficar aqui até eu dizer que pode ir. Como falei, minhaconsciência já atingiu o limite de peso. A escolha é sua: ficar aqui até eu afirmarque pode ir ou voltar para o seu avô agora. Quer mudar de ideia?— Não, mas...— Então você aceitou. Agora corte o diacho do pão.Peter pensou em discutir, mas desistiu. Estava decidido a ir embora antes dasduas semanas, mas era melhor se fazer de obediente.O menino baixou a cabeça e começou a cortar seis fatias grossas do pão,enquanto Vola jogava manteiga em uma frigideira de ferro e acendia o fogo.Sem se virar, ela apontou para uma prateleira em cima da bancada.— Pegue alguma coisa para comer.Três fileiras de vidros de conserva brilhavam como um arco-íris líquido emtoda a extensão da prateleira. Peter leu os rótulos, todos em letras de fôrma:CEREJAS, AMEIXAS, TOMATES, MIRTILOS, MAÇÃS, ABÓBORAS, PERAS,VAGENS, BETERRABAS, PÊSSEGOS. Ao lado da prateleira havia tranças dealho seco e de pimenta malagueta, penduradas.— Você planta isso tudo?Vola fez que sim, ainda de costas para ele.— As árvores ali perto do muro de pedra estão dando flores. São de quê? —perguntou Peter.— As mais próximas do muro? Pêssego.Ele apontou para um vidro que estava quase na ponta da prateleira.— Pêssego — disse. — Por favor.Vola abriu o vidro e lhe entregou um garfo.— Hã... tem um galho aqui, sei lá.A mulher enfiou a mão no vidro, levou o galho à boca, sugou a calda e o jogouna pia, por cima do ombro.— É canela. Anda. Come. — Então, com ar satisfeito, recolheu as fatias depão que ele tinha cortado. — Queijo cheddar ou suíço?— Acho que prefiro o cheddar.— Você acha, garoto? Não sabe?Peter deu de ombros e espetou o garfo em um pedaço de pêssego. O gosto eratão lindo e dourado quanto a aparência.Vola parecia estar pensando em mais coisas a dizer sobre a questão do queijo,mas ficou calada, se virou na ponta da perna de madeira e saiu pela porta dosfundos. Voltou trazendo um pedaço de queijo e começou a fazer sanduíches semdizer nada. Peter ouvia o chiado dos pães à medida que ela os colocava nafrigideira quente.Ele observou em volta. Embora não fosse uma casa grande, não dava asensação de ser apertada. O sol entrava abundante pelas janelas limpas, cobrindoas paredes de troncos com um brilho cor de mel. Havia duas poltronas listradasde azul e branco ao lado de uma lareira de pedra e, entre elas, um tronco cheiode livros que servia de mesa. Além das lamparinas penduradas nas vigas, outrasrepousavam sobre alguns barris pequenos.Havia fotos no mármore acima da lareira, alguns quadros nas paredes e umcesto de lã perto do sofá. Por uma porta aberta ao lado da lareira, Peter viu aquina de uma cama bem arrumada e coberta com uma aconchegante colchaxadrez amarela. Uma casa normal para uma pessoa maluca, mas ainda faltavaalguma coisa. Peter reparou que era tudo muito calmo ali. Um silêncio quaseabsoluto, na verdade, exceto pelo canto dos pássaros lá fora e pela manteigaestalando na frigideira. Mas não era esse o problema. Não exatamente.— Ei — disse ele quando se deu conta. — Você não tem eletricidade.Ela virou os sanduíches na frigideira.— Até onde sei, isso não é crime neste país. Pelo menos ainda não.Peter tentou pensar do que sentiria falta se não usasse luz elétrica, mas eramtantas coisas que ele perderia a conta se começasse. Pegou o último pedaço depêssego, o garfo batendo no vidro vazio. Ele aproveitou que a mulher continuavade costas e bebeu as últimas gotas da calda direto do vidro.— Espera aí. E o gelo?— Eu tenho uma geladeira. A gás. Assim como o fogão e o aquecedor deágua. Não preciso de mais nada.Ela colocou dois pratos azuis na mesa. Peter ficou com água na boca ao sentiro cheiro da comida, mas esperou. Percebeu que Vola não tinha terminado.— Tenho mais do que preciso — disse ela ao se sentar. — Aqui tenho paz.— Por causa do silêncio?— Não. Porque estou exatamente onde deveria estar e fazendo exatamente oque deveria fazer. Isso é paz. Coma.Peter deu uma mordida no sanduíche. O queijo estava quente e derretido, e opão, crocante e dourado.Por força do hábito, ele tirou uma pontinha do sanduíche. Já ia esticar a mãopara baixo quando lembrou: não havia raposa alguma esperando debaixo damesa. Imaginou se naquele momento Pax estaria sentindo tanta saudade quantoele.— Você não se sente sozinha aqui?— Eu vejo gente. Bea Booker, a bibliotecária. Robert Johnson, o motorista deônibus. Eu tenho... eu vejo gente. — Vola se levantou, pegou a frigideira ecolocou mais um sanduíche no prato do menino. — Coma.E Peter comeu, pensando no que ela tinha dito sobre paz. Quando terminou,lambeu dos dedos as migalhas cheias de manteiga.— O que você quis dizer quando falou que está fazendo exatamente o quedeveria fazer? Você trabalha?— É claro! O jardim tem dois mil metros quadrados e o pomar tem o dobrodisso. Vou plantar feijão e quiabo hoje. Talvez tenha que substituir a borracha dabomba do poço. Sempre tem muito a se fazer por aqui.— Mas você não tem um emprego, não ganha dinheiro? Como compra ascoisas? Aquelas ferramentas do celeiro, e os... e todas as suas coisas?Vola se sentou na bancada, esticou a perna de madeira e deu uma batidinhanela com a espátula.— O governo me dá um pouco de dinheiro todo mês, pela minha perna. —Ela jogou a espátula na pia e balançou a cabeça. — Um diavolo de um acordo.Pelo visto, minha perna não era tão valiosa para eles. Preferia que tivessem meavisado isso antes de me mandarem explorar um campo minado. Porque eugostava daquela perna. Era uma boa perna; não muito bonita de olhar, talvez,mas funcionava bem. Foi com ela que corri até a cidade vizinha, eu e DeirdreCallanan, e botamos fogo no depósito de madeira do pai dela, no sexto ano. Foicom ela que chutei o sorriso da cara de Henry Valentine no ano seguinte, quandoele tentou apertar minha bunda. E por aí vai. Uma perna é um preço muito alto ase pagar. Todo dia, todo santo dia, me dói não tê-la mais.— Por que você não colocou uma mais...?A mulher esticou a perna de novo e puxou a barra da calça para avaliar opedaço de madeira.— Ah, eles me deram uma prótese. Um negócio todo complicado, eu ficavamorrendo de medo toda vez que olhava para baixo. Então eu mesma fiz uma. Épesada e difícil de andar, mas eu fiz coisas terríveis na guerra, então acho quemereço arrastar essa coisa por aí.— E você jogou fora? Jogou fora uma prótese?Peter ficou imaginando a cara de susto do lixeiro.— Claro que não. Eu uso. Às vezes. No momento está lá no jardim, noespantalho. Parece que os corvos morrem de medo dela.Ela desceu da bancada e colocou na cabeça um chapéu de palha surrado,como se de repente tivesse lembrado que tinha um jardim.— Volto antes de escurecer. Tem uma casinha anexa logo depois dos doiscedros, com banheira e tudo. Tome um banho. A varanda é toda sua. Quer dizer,vai ter que dividir com François. Deixe a perna sempre no alto.— Quem é François?Mais uma vez, Peter levou um susto com a risada de Vola, que era quase umlatido curto. Ela apontou com a cabeça para a porta dos fundos, que levava auma ampla varanda cercada por tela.— Ele deve estar dormindo lá agora, o ladrãozinho preguiçoso. — Ela foi até aporta, olhou e fez um sinal positivo com a cabeça. — Venha ver.Peter se levantou da cadeira e pegou as muletas. Vola segurou a porta abertapara ele e indicou um cesto de madeira. O menino viu um par de olhos escuros oencarando. Inclinou a cabeça para ver melhor, e o guaxinim fez o mesmo.— François Villon, batizado em homenagem a um dos mais famosos ladrõesda história. O François original não só era ladrão como também era um poeta, etão encantador que, toda vez que o prendiam, alguma admiradora o libertava.Peter sorriu e se agachou para olhar melhor.— Ei, chuck-chuck-chuck — chamou Peter, baixinho, usando o mesmocumprimento que usava com Pax todas as manhãs.O guaxinim lançou um olhar preguiçoso para ele, mas logo se virou para ooutro lado e fechou os olhos, aparentemente o achando desinteressante.— Ele é selvagem ou domesticado?Vola afastou as palavras com um gesto, como se fossem mosquitos.— Eu deixo a porta aberta, e ele vem quando quer. É uma boa companhia.Até dou comida a ele, mas nem precisaria, porque ele consegue se manter bemgordo sozinho. Temos um acordo sobre o galinheiro: ele deixa as meninas empaz, e eu dou um ovo a ele de vez em quando. É uma companhia. Essa é amelhor palavra para definir.Vola apontou para a viga que sustentava o teto.— Amanhã você pode fazer algumas flexões na barra, mas hoje não force aperna e a mantenha no alto. Acima do nível do peito é melhor. — Ela apontoupara a geladeira e continuou: — Não deixe de pôr gelo de tempos em tempos.Quero que o inchaço diminua um pouco para eu colocar o osso de volta no lugar.Para a dor, você pode tomar uma colher de casca de salgueiro diluída em água,a cada três horas mais ou menos.— Tudo bem — disse Peter, e, exausto, se deitou em uma rede.Vola estava saindo, mas parou à porta, virou-se e cruzou os braços.— Que foi? — perguntou Peter.— Só estava pensando... sobre deixá-lo para dormir aqui na varanda. Seráque isso torna você o quê: selvagem ou domesticado?


PAXWhere stories live. Discover now