Capítulo 20

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Arrepiada tinha ido atrás de Pax, mas os saltos dele eram mais longos e elecorreu muito veloz a noite toda, a manhã toda. Só sentiu a presença de Arrepiadahoras depois, à tarde, quando chegou ao rio que passava em frente à fábrica.Entrou devagar e em silêncio em um trecho do rio cheio de juncos verdes,próximo ao local onde o corpo de Cinzento descansava. Baixou a cabeça parabeber água. Depois de matar a sede, empurrou os juncos para o lado.O campo estava deserto. Os veículos tinham desaparecido. Não havia sinaldos humanos, mas o cheiro deles estava fresco e até mais intenso do que antes.Estavam por perto, e estavam ansiosos. Pax seguiu na direção contrária à dacorrenteza, atravessou o rio na parte mais rasa e subiu para observar o local.Novas marcas no chão cortavam a encosta da colina atrás das ruínas dafábrica. Como uma matilha de raposas indo para as tocas, os soldados tinhamrecuado para as trincheiras: alguns ainda cavavam, enquanto outros mexiam emum e outro equipamento; outros, ainda, conversavam debruçados sobre gráficos.Os veículos também tinham sido colocados atrás dos muros.Pax refez os próprios passos: pelo topo da colina, cruzando o rio, pelamargem. Mais uma vez entrou na água entre os juncos e, olhando de lá, de novonão viu nenhum humano. Um aroma sombrio de eletricidade pairava pesado noar.O vento mudou de direção, trazendo fumaça. Pax sentira aquele cheiro duasvezes durante o caminho, mas agora estava mais denso, mais perigoso. Maisperto.Pax esperava ansioso pela segurança da noite.Mergulhou no rio e nadou só com a cabeça para fora da água, subiu amargem, sacudiu o corpo. Seguiu abaixado para o esconderijo mais próximo, umcarvalho com a base rodeada de brotos, a apenas alguns saltos de distância.De lá, avistou a vantagem de que precisava: onde o campo começava a ficarplano, um rochedo de granito roxo se projetava do chão. Vários fios passavampor cima da rocha até voltar a descer para a grama.Pax saiu com cuidado de seu esconderijo. O chão transmitia a suas patas amensagem de ameaça: havia mais caixas enterradas perto da margem e maisfios cruzando o campo. Desviando dos fios, ele avançou pela grama alta emmovimentos tão suaves que a vegetação mal se mexia.Na base do rochedo, Pax colou o corpo ao chão e esticou as orelhas, atentoaos sons que vinham do alto da colina. Pelo ritmo regular das vozes e dasferramentas, soube que os soldados não tinham se afastado das trincheiras. Abrisa continuava soprando de cima para baixo — ou seja, Pax saberia se oshumanos se aproximassem.Puxou um fio e começou a roer. Tinha quase arrancado a capa quando umafúria de dentes o atacou por trás, lançando-o com força na rocha, sem ar. Roloude lado para se levantar, e foi quando viu Arrepiada saltar por cima dele para oalto do granito.Daquela altura, ela estava na vantagem.Os corvos disseram que os humanos doentes de guerra estão se aproximando.A terra que explode, os fios de morte... deixe tudo isso para que eles encontrem.Embora maior que Arrepiada, Pax não era páreo para a determinação dela.Cada vez que tentava pegar o fio de novo, ela o impedia com mordidas rápidas.Pax contornou a rocha, chegando mais perto da fábrica do que gostaria, a fim dese aproximar dela por cima, mas, quando ia saltar, um movimento no riochamou a atenção dele.Arrepiada percebeu a mudança, mas manteve o olhar fixo nele.Os humanos chegaram?Pax detectou empolgação na pergunta dela.Não. Outra raposa, eu acho.Arrepiada se recusou a se distrair.Nenhuma raposa do vale se aventuraria fora do nosso território.Pax se ergueu nas patas traseiras para observar melhor. E viu mais uma vez:uma coisinha cor de cobre com a ponta branca, que subia e desaparecia, subia edesaparecia, correndo na margem do rio pelo mesmo caminho que ele tinhafeito para chegar até ali — o caminho que Arrepiada devia ter feito também,seguindo Pax.Na altura dos juncos, uma manchinha vermelha. Uma raposa pequenamergulhando na água. Pax a reconheceu.E gritou um alerta.Só então Arrepiada se virou para olhar. Era Miúdo, saindo com dificuldade daágua, no trecho perto do carvalho. No mesmo instante, Arrepiada pareceu dobrarde tamanho, se empertigando. De um pulo só, desceu do rochedo e voou colinaabaixo.Não! Volte para casa! Volte!Ela disparou como um raio pela grama alta, mas o pânico em sua voz só fezMiúdo continuar avançando, e com ainda mais energia: ele se levantou de novopara conferir onde Arrepiada estava agora e seguiu em saltos alegres na direçãoda irmã.Pax atacou o fio com voracidade, mas era tarde demais.Tinha acabado de arrancar a capa do fio quando um cheiro sombrio derelâmpago subiu da terra. Uma descarga elétrica fez em pedaços um de seusmolares, queimou o lábio inferior e a garganta e desceu rasgando a coluna.Logo depois, uma faixa de terra foi pelos ares. Pax foi lançado da rocha, e, aoatingir o chão, todo embolado em arbustos arrancados do solo pela explosão, omundo partido ficou mudo. O silêncio zunia em seu crânio. Petrificado pelochoque, ele viu a tempestade de terra quente, pedras, galhos e folhas cobri-lo atése reduzir a um véu de sujeira.Pax conseguiu se levantar, com dificuldade, e encheu os pulmões murchos dear queimado até clarear a mente. Então se ergueu nas patas traseiras parafarejar sinais de Miúdo e Arrepiada. Tentou encontrá-los em todas as direções,mas seu faro estava imprestável, os delicados nervos olfativos entorpecidos porcinzas e fuligem. Resolveu, então, uivar para os dois, mas o eco nos ouvidos aindaera o único som que escutava.Ele saiu do monte de sujeira e se sacudiu para se livrar do excesso. Um grupode soldados desceu a colina pela área ainda fumegante e mergulhou no rio.Quando passaram, Pax foi atrás. Cada movimento provocava um impacto de dornos ossos.Ele chamou de novo por Miúdo e Arrepiada, onde os tinha visto pela últimavez. Não houve resposta, mas ao menos ouviu a si mesmo — a princípio, muitobaixo, como se o som viesse de muito longe. Depois veio o barulho do vento, osestalos dos caules queimados conforme ele pisava nas plantas pelo caminho, osgritos ferozes dos doentes de guerra, que já voltavam para as trincheiras; e ograsnar de um bando de corvos nas árvores, expressando seu desprazer pelomundo destruído. Pax tinha voltado a escutar.Andou de lá para cá pelo campo por uma hora, chamando os amigosdesaparecidos. Quando veio o crepúsculo, ele enfim ouviu: o guincho fraco deArrepiada. Seguiu o chamado até a beira do rio. O carvalho estava caído namargem exalando fumaça, os galhos enegrecidos mergulhados na água.Encontrou Arrepiada encolhida embaixo da massa de terra e raízes da árvorecaída, a cabeça erguida e os olhos atentos, apesar do focinho coberto de sangue.O pelo de sua bela cauda tinha uma casca preta formada pela explosão. Paxencostou o focinho no dela. O sangue não era de Arrepiada.A raposa fêmea baixou a cabeça. Embaixo dela estava o corpo inerte eencolhido do irmão.Pax encostou a cabeça no peito de Miúdo, sentiu o movimento de subir edescer em pequenos espasmos e sentiu um grande alívio.Mas então Arrepiada se mexeu e ele viu: no lugar da perna traseira daraposinha, com a bela pelagem preta e a pata branca veloz, havia apenas umamassa vermelha sobre as folhas encharcadas de sangue.

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