Capítulo 8

26 1 0
                                    

Pax se retorceu todo de prazer ao sentir o calor e o peso de um corpoaconchegado ao dele. Ainda não tinha acordado de vez. Inspirou fundo,esperando sentir o cheiro reconfortante do seu menino, mas, em vez de humano,encontrou raposa.Despertou na mesma hora. Ali estava o irmãozinho da raposa fêmea,encolhido junto dele, roncando. Miúdo deu um gemido e jogou a cauda em cimado próprio focinho, ainda dormindo.Pax se levantou depressa. Não sabia como era agir como dominador, mas nãotinha escolha naquela situação.Volte para sua toca.Quando Miúdo tentou se aninhar de novo no peito dele, Pax o mordeu de leveno ombro.Miúdo acordou, sacudindo o corpo, e se levantou. Não baixou a cabeça emsubmissão e não deu sinal de que iria embora. Brincar, dizia sua postura.Fossem outras circunstâncias, Pax teria gostado de ter a raposinha simpáticacomo companhia, mas não queria se meter com Arrepiada de novo. Na verdade,não queria fazer nada, só voltar para seu menino.Pax pegou o soldadinho de plástico que tinha escondido, ofereceu-o comopresente e, mais uma vez, mandou Miúdo se afastar. Depois de um último olharde súplica, Miúdo pegou o brinquedinho. Pax o seguiu com os olhos até vê-loentrar em um buraco pouco mais à frente.Quando a tempestade caiu — breve mas violenta; rachaduras furiosas seabrindo em largos pedaços de céu —, Pax já havia entrado, por uma pequenaabertura, em uma toca abandonada, não muito longe daquela que Arrepiadadividia com o irmão. Passado o temporal, foi reconhecer o terreno em volta, aobrilho pálido da meia-lua.A encosta da colina era virada para o sul. Ali, as raízes das árvores pareciamagarrar o solo arenoso como dedos marrons em punhos fechados. Três entradasde tocas se espalhavam entre as árvores.No alto da colina, a floresta se abria nas direções norte e oeste,reaproximando-se da estrada, e, abaixo, um extenso vale gramado se estendia aperder de vista. Era o lugar perfeito: a encosta da colina deixava que possíveispredadores ficassem à vista, e as árvores no alto serviam de proteção contra osventos do norte. A campina exalava um cheiro abundante de vida.Enquanto Pax observava aquilo tudo, a tensão que sentia lá no fundo seacalmou. Foi assim que se sentiu quando, ainda filhote, já tinha empurrado oprato de comida três vezes até o canto mais distante do quarto do seu menino ePeter finalmente entendeu que era para deixar lá. Longe da parede fria e comvista para a porta, por onde o pai entrava (às vezes irritado). Seguro.Mas aquele lugar não era seguro para ele. Arrepiada o avisara de que naquelamesma campina morava uma raposa mais velha, com o companheiro. Como jáestava enfrentando um desafiador de fora, ele não toleraria mais um machosolitário. Pax notou um movimento mais abaixo, na colina: um macho alfa deombros largos e pelo preto e cinza surgiu do meio da vegetação, deixou suamarca em uma muda e começou a se limpar, mas, com a pata ainda na orelha,de repente levantou o focinho no ar. Pax subiu correndo a colina e se enfiou navegetação baixa da floresta.Foi fácil captar o próprio cheiro, mesmo tendo chovido muito. Parando apenaspara dar lambidas rápidas na água que se acumulara nas folhas, seguiu de volta ocaminho que tinha feito, para alcançar de novo a estrada.Lá, ele captou o resquício do odor da caravana de transporte militar do diaanterior, mas percebeu que nenhum outro veículo tinha passado desde então.Acomodou-se de novo no carvalho caído, para esperar.A manhã trouxe o zumbido vibrante de nuvens de insetos e o tagarelar depássaros recém-despertos, mas a estrada continuava em silêncio. Quando o solsubiu, quente e seco, evaporou as gotas de chuva que caíam de todos os brotosverdes.A fome se tornara forte, mas a sede estava ainda pior. Pax não tinha bebidonada desde que deixara a casa do seu menino. A garganta estava seca, a línguainchada e grossa. Sentia tontura cada vez que mudava de posição. Cem vezes umleve cheiro de água passou por ali, mas em momento algum ele pensou emabandonar seu posto para ir atrás da bebida. Seus humanos voltariam àqueleponto. Ele cravou as garras na madeira e ficou atento a algum som de veículo naestrada vazia. Uma hora se passou, e mais outra. Pax cochilou e acordou elembrou, cochilou e acordou e lembrou. Até que o vento trouxe a notícia de quealgo se aproximava.Uma raposa. O mesmo macho que ele vira, que Arrepiada mencionara. Ojeito de caminhar da raposa era deliberado, sem mostrar hesitação nemdesperdiçar energia. A maneira como o pelo cinza contornava o corpo anunciavaque era velho. Quando ele se aproximou, Pax viu que até os olhos eramencobertos por um tom cinzento, por causa da idade.Depois de oferecer seu cheiro, Cinzento se deitou na grama ao lado do troncocaído. Não deu sinal de que se levantaria, indicando que não oferecia ameaça.Você carrega o aroma de humanos. Já morei com eles, uma vez. Estão seaproximando.Uma esperança repentina reanimou Pax.Você viu meu menino?Pax descreveu Peter.Cinzento, porém, não tinha visto nenhum humano desde a juventude, quandomorara com alguns deles. E tinha sido em um lugar distante dali — uma terraseca e pedregosa de invernos prolongados e sol baixo.Os humanos que se aproximam estão trazendo guerra. Os corvos que os viramnão incluíram juventude na descrição que fizeram.A notícia fez Pax se sentir fraco. Ele ficou tonto e quase caiu do tronco.Você precisa de água. Venha comigo.Pax hesitou. Seus humanos podiam voltar a qualquer momento. Mas eleprecisava urgentemente se hidratar.Essa água fica perto daqui? De lá vou ouvir a estrada?Sim. O riacho passa por baixo da estrada. Venha comigo.O jeito confiante mas não ameaçador de Cinzento acalmou Pax. Ele desceude seu poleiro e o seguiu.Não demoraram a chegar a uma abertura profunda na terra, da qual subiamos aromas de água e de coisas que crescem na lama. Pax espiou pela beirada eviu um riacho prateado cintilando entre bambus verdes e flores roxas, cravejadode pedras pretas. Cinzento começou a descer, com cuidado. Atraído pelo cheirode água, Pax passou por ele e foi direto para a abertura, mas na metade dotrajeto se desequilibrou e foi escorregando o resto do caminho.Quando se levantou, olhou: a água passava por ele como se saísse de umatorneira enorme, muito maior que a da grande banheira branca em que seumenino tomava banho. Ele abaixou a cabeça. A água estava fria e tinha gosto decobre, pinheiro e musgo, correndo para dentro da boca dele como se estivesseviva. Fez doer os dentes e inundou sua boca e sua garganta. Ele bebeu e bebeu, esó se afastou quando a barriga estava inchada.Cinzento se aproximou, bebeu também e convidou Pax para descansar comele.Pax inclinou a cabeça para prestar atenção aos sons da estrada, que passavapor cima da galeria de água. Tão silenciosa quanto antes.Tenho que estar na estrada quando meus humanos vierem me buscar.Cinzento se deitou no chão e se espreguiçou.A estrada foi bloqueada ontem, pelos doentes de guerra.Pax pensou outra vez nos veículos que tinham passado no dia anterior, com omesmo cheiro das roupas do pai do seu menino. Era verdade que a estrada ficaravazia depois disso. Mas não importava.Meu menino vai me procurar lá quando voltar.Não. Os corvos disseram: a estrada está fechada.Pax andou de pedra em pedra, agitando a cauda enquanto pensava. A soluçãoveio:Vou encontrar meu menino. Na nossa casa.Onde fica essa casa?Pax deu uma volta para confirmar, embora não tivesse nenhuma dúvida:sentia a atração da casa vindo de uma única direção.No sul.Cinzento não demonstrou surpresa.Existem grandes colônias humanas lá. Quando os doentes de guerra chegaremaqui, minha família vai ter que se mudar para mais perto daquelas colônias ou irpara as montanhas, no norte. Me conte sobre os seus humanos. Como é viver comeles?Mais uma vez, o jeito da velha raposa tranquilizou Pax. Ele voltou e se sentou.Vi muitos de longe, mas só conheço dois.Eles agem com falsidade, como os que eu conheci?Pax não entendeu.Cinzento se levantou, agitado, e explicou a Pax como era o comportamentoque tinha presenciado: um humano dando as costas para um vizinho que passavafome, agindo como se não houvesse comida na despensa, quando na verdadeestava cheia; uma humana se mostrando indiferente ao parceiro que ela mesmaescolhera; outro humano que atraía uma ovelha do meio do bando com voz suavepara depois matá-la.Seus humanos não fazem essas coisas?Na mesma hora, Pax se lembrou do pai do seu menino o tirando do carro, avoz fingindo um arrependimento que era denunciado pelo súbito cheiro dementira que exalou.Pax se virou para o riacho. Quando a água fluía sobre algumas pedras, o fluxose dividia, para logo se unir de novo, uma trança líquida e prateada. Pax foisurpreendido por uma lembrança.Não muito tempo depois que seu menino o resgatou, quando ele ainda era umfilhotinho assustado, uma humana estranha apareceu na porta deles. De sob amesa, Pax viu o pai do seu menino receber uma mulher pequena que usava umatrança comprida e grisalha caindo sobre o ombro. O sorriso do homem mostravatodos os dentes, e Pax já tinha entendido que isso significava: Bem-vinda. Estoufeliz em ver você. Não vou lhe fazer mal. No entanto, por baixo do sorriso, o corpodele estava rígido de raiva e medo.Pax se lembrava de ter ficado confuso com aquele medo, pois a mulher sótransmitia gentileza e cuidado. Ela repetia a palavra que Pax já tinha associado aseu menino — "Peter" — em tom de súplica. O sorriso cheio de dentes dohomem continuou inabalado, mas, conforme ele respondia às perguntas damulher, a casa se enchia do cheiro amargo de enganação. Com o peito estufadoem ameaça, ele fechou a porta com força quando a mulher foi embora.Pax se virou para Cinzento.Eu vi coisas ruins. Não no meu menino, nunca nele. Mas no pai dele, sim.Cinzento pareceu envelhecer ao ouvir isso. Ele se sentou, fazendo um esforçovisível.Eles ainda são descuidados? Eram muito descuidados quando eu morava comeles.Descuidados?Quando aram um campo, eles matam os ratos que moram lá. Quando represamum rio, deixam os peixes morrerem. Eles ainda são descuidados assim?Uma vez, quando o pai de Peter estava prestes a cortar uma árvore, Pax viuseu menino subir para tirar um ninho dali e colocá-lo em outra árvore. Em diasfrios, Peter colocava mais palha no cercado de Pax. Antes de seu próprio meninocomer, ele sempre conferia se Pax tinha água e comida suficientes.Meu menino não é descuidado.A velha raposa pareceu aliviada com a notícia. Mas só por um momento.Quando a guerra chegar, eles vão ficar descuidados.O que é guerra?Cinzento hesitou.Tem uma doença que às vezes dá nas raposas que as faz deixar de agir demaneira normal e atacar estranhos. A guerra é uma doença humana parecida.Pax ficou de pé em um pulo.Os doentes de guerra vão atacar meu menino?Na época, a guerra chegou à terra onde morei com humanos. Tudo foidestruído. Fogo para todo lado. Muitas mortes, e não só dos doentes de guerra,que são os machos adultos. Crianças, mães, idosos da própria espécie delestambém. E todos os animais. Os homens que estavam com essa doença cuspiramcaos pelo caminho todo.O que está chegando aqui é a mesma coisa?Cinzento levantou a cabeça e soltou um uivo que chegou a transformar o arem tristeza.A oeste daqui, onde a guerra já está acontecendo, onde os humanos estãomatando uns aos outros, a terra está arruinada. Os corvos trazem as notícias. Riosrepresados, terra queimada; nem espinheiros crescem. Coelhos e cobras, faisões eratos... todas as criaturas foram mortas.Pax pulou para a estrada. Ia encontrar seu menino. Antes que a guerrachegasse.Cinzento foi atrás dele.Espere. Vou para o sul com você, procurar uma casa nova. Mas antes venhacomigo.Voltar para a campina? Não. A fêmea me avisou para não voltar.Ela nunca vai receber bem você, porque você morou com humanos.Pax imaginou, em um flash, a mesma cena que tinha visto ser passada entre araposa fêmea e seu irmão: um vento frio e uivante, duas raposas em grandedificuldade, uma gaiola com garras de aço, sangue manchando a neve. E então,abruptamente, nada.Mas ela não é dominante. Venha. Vamos voltar para descansar e comer.Partimos à noite.

PAXWhere stories live. Discover now