Capítulo 19

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teve vontade de dizer, mas só deu um suspiro profundo e fez uma careta.Vola não se comoveu.— Está indo bem nisso?— Acho que sim. Quer dizer, estou.Ele tinha treinado algumas vezes. E melhorado um pouco. As cordas não seembolavam mais, pelo menos. Só que de vez em quando os controles aindafaziam o contrário do que ele esperava, e o tempo todo as marionetes pareciamtremer, como se estivessem sendo eletrocutadas. Peter tinha perdido a paciência.— Vamos fazer logo esse show, Vola. Daqui a pouco eu vou embora daqui. —Ele levantou as muletas, que já sentia como se fossem extensões dos braços. —Ontem subi e desci duas vezes a colina. Fiz quase seis horas de treino. Teria feitooito, mas você não deixou, lembra? Estou pronto para ir — completou.Vola colocou um punhado de pregos em um bolso do macacão e um martelono cinto. Lançou um olhar desconfiado para ele.— Então me mostre como está se saindo com Simbad — disse ela.Peter deu outro suspiro, mas Vola o ignorou mais uma vez e pegou o Simbadda parede. Peter fez a marionete passar por cima de um fardo de palha e cairsobre o ovo de madeira dentro da grande tigela de metal pintada de modo queparecesse um ninho. Ele sabia que era desajeitado, mas lançou um olharesperançoso para a mulher.— Sério? — disse Vola, com ar de decepção. — Esse é o herói desesperado,arriscando a vida por uma chance de fugir da poderosa Roca?Vola pegou os controles dele, e na mesma hora a marionete pareceu setransformar em carne e osso.— Mentalize o que ele quer: fugir — começou ela, como se Peter tivessepedido uma aula. — Baixe os braços dele e use-os para direcionar o movimento,assim, veja, meio abaixado e sorrateiro. Faça Simbad se encolher no ninho, e,quando ele estiver escondido atrás do ovo, você pode soltá-lo para pegar a Roca efazê-la sobrevoar o ninho, vindo pelo outro lado. Pela direita, não esqueça, paraos fios não se embolarem com os do Simbad. Aí a Roca desce direto para o ovo,bem devagarzinho, até os ímãs das garras grudarem nos ímãs das mãos doSimbad.— Comigo eles não fazem assim. Por que você não coloca um espelho econta a história você mesma?Vola olhou irritada para ele.— É a terceira condição, e não é opcional. Venha cá — chamou ela, levandoa marionete até a bancada de trabalho. — Ele quer se mexer. Todas asmarionetes querem se mexer, porque eu as fiz dessa maneira. Você só precisamostrar a elas como. Dos seus músculos para os delas, dos seus músculos para osdelas.Vola tirou a capa de Simbad e, para a surpresa de Peter, soltou os fios. Então,pegou uma chave de fenda e o desmontou até a marionete virar um monte departes espalhadas. Por fim, estendeu a chave de fenda para ele.Peter segurou a muleta debaixo do braço e ergueu a mão.— Você viu o que eu fiz?— Sim, mas...— Só vim aqui pegar umas ferramentas. Volto em uma hora. Você não vai termais dificuldades depois que remontar essa marionete.Ela largou a chave de fenda na mão do menino e saiu sem dizer mais nada.Não foi tão difícil. Os joelhos e os cotovelos da marionete eram dobradiçassimples, e os ombros e quadris tinhas as articulações feitas de bolinhas demadeira, que permitiam um movimento maior. As mãos e os pés eram presoscom tiras de couro.Com os fios foi mais complicado, mas, depois de entender que as mãosprecisavam manipular o controle que se movia como uma libélula, Peterconseguiu entender o resto.Vola tinha razão: depois de remontar Simbad, ficou mais fácil movimentá-lo."Dos seus músculos para os delas." De fato, ele conseguiu transmitir do própriocorpo para o de Simbad os movimentos que a mulher sugerira.Mas não funcionou com a Roca. Peter flexionava os ombros e batia os braços,mas a ave dava algumas guinadas e logo despencava, como se tivesse levado umtiro. Os olhos cintilantes o encaravam com reprovação.— Me desculpe, pássaro, mas não sei o que você está fazendo na história.Quer comer o sujeito? Ou quer proteger seu ovo?E assim ele se interessou em saber a história da Roca, para entendê-la direito.Descobriu onde Vola guardava o livro de Simbad, mas, quando o puxou, ouviuum leve baque. Havia outra coisa no nicho, lá atrás.Puxou o objeto.Era uma lata quadrada, de um amarelo desbotado e com o nome SUNSHINEBISCUITS, as letras descascando. Ele a apoiou na palma da mão e se lembrou davelha lata de biscoitos que tinha encontrado na casa do avô, cheia de soldadinhosprotegendo a foto que o surpreendera.Tirou a tampa. Dentro havia uma pilha de cartões, com frases escritas nacaligrafia que agora ele já reconhecia. Peter soube na mesma hora que tinha nasmãos os segredos de Vola, os que ela escondia. Fechou a tampa bem rápido, poisnão queria invadir a privacidade dela, mas era tarde demais: tinha lido o cartãode cima.Eu teria sido uma boa professora.Não era uma confissão terrível e não parecia nem muito pessoal, mas mesmoassim ele lamentou ter visto aquilo. Empurrou a lata de volta para os fundos donicho e estava justamente guardando o livro quando Vola retornou.Ele apontou para as marionetes.— Agora eu peguei o jeito. Vamos lá.Mas Vola foi até a bancada de trabalho, jogou óleo em uma pedra de amolare disse:— Ainda não. Primeiro, precisamos de um palco. Vou montar alguma coisaquando tiver tempo.— Palco? Você não falou nada sobre palco!— Não dá para simplesmente botar as marionetes para se sacudirem emcima da palha. — Ela se virou e interrompeu o protesto de Peter com a mãoerguida. — Escute, garoto, quero assistir à história daquele soldado como deveser. Você vai ter que respeitar, pois isso é muito importante para mim, mesmoque você não entenda. Aliás, bem que devia entender, já que fica carregandoaquela pulseira por aí. É a mesma coisa. Você está contando a história da suamãe através daquele objeto.— Mas vai demorar tanto...— Não tem por que ter pressa. Você vai ficar aqui mais uma semana mesmo.Ela voltou à bancada, se sentou pesadamente e começou a escolherferramentas. Fim da discussão.Peter se jogou em um amontoado de palha, emburrado. Ia acabar ficandomaluco se passasse mais uma semana naquele lugar.A palavra "maluco" o fez parar. Não achava mais que Vola fosse louca.Ergueu um pouco o corpo, apoiou-se nos cotovelos e ficou vendo-a polir asferramentas, reparando como ela levantava e limpava cada uma com muitocuidado, colocando-a em seu devido lugar quando terminava. Nos movimentosdela havia uma determinação calma que agradava a ele. Uma previsibilidade.François entrou bocejando, subiu na bancada e começou a se limpar, até quecochilou. Peter ficou pensando que, assim como François, ele aprendera a ficar àvontade com Vola.O menino esticou o pescoço para ver o que ela estava fazendo. Um cabo.Tinha trazido uma enxada quebrada e estava produzindo um cabo novo para ela.Uma coisa simples, mas que parecia quase mágico. Como as muletas. Antes, eleestava impotente. Foi só Vola juntar alguns pedaços de madeira que agora elepodia percorrer quilômetros pelo campo, tranquilamente. Mágico.Ele encaixou com firmeza as muletas embaixo dos braços, sentindo o confortofamiliar da estrutura forte e firme, e foi até a bancada.— Também quero fazer. Você me ensina?Vola se inclinou para trás e o observou com atenção. Peter teve a sensação deque ela ficou assim por um minuto inteiro.— Bem, não faz sentido deixar seu cérebro apodrecer — disse ela,finalmente. — Você sabe alguma coisa sobre entalhar madeira?— "Empurre na direção oposta ao do seu corpo". Isso eu sei.— Melhor que nada. Mas não é disso que estou falando. — Vola pegou docesto um pedaço de madeira e a colocou no centro da bancada. — Quem mandaaqui?— Hã?— Quem manda: eu ou a madeira?Peter entendeu que era um teste. Olhou para a madeira ali parada, esperando,e olhou para as ferramentas em U, tão ansiosas para cortar que pareciam tremer.— Você. É você que manda.Vola fez que sim, concordando. Então, selecionou um formão de ponta curvae um martelo quadrado, depois observou o bloco de madeira com o mesmo olharde alguns minutos antes, como se estivesse tentando ler uma mensagem secretaabaixo da superfície. Bateu na madeira com o formão, e, com um estalo seco,uma lasca espiralada saiu voando para a bancada.— E agora? — perguntou Vola, virando-se para Peter. — Quem manda agora?O rosto da mulher não revelava nada, mas a madeira sim. O pedaço quefaltava era como uma pergunta pedindo resposta.— A madeira — respondeu o menino, com segurança.— Isso mesmo. A partir de agora, quem manda é a madeira. O artesãoobedece à madeira. Todos os artesãos são servos da arte. Quando você decide oque quer fazer, o projeto passa a ser o chefe. Você sabe o que quer fazer?A resposta veio na mesma hora:— Como se faz uma raposa?Assim que as palavras saíram de sua boca, Peter se preparou para a respostaque achou que ouviria: ele deveria descobrir sozinho. Mas Vola o surpreendeu.— Uma vez, perguntaram a Michelangelo como ele tinha criado uma de suasestátuas. Ele disse: "Eu vi o anjo no mármore e fui entalhando até libertá-lo."Pode ser uma boa forma de ver as coisas. Claro, se você vai tentar encontrar araposa na madeira, vai ter que começar com a madeira.Ela fez sinal para Peter segui-la.— Madeiras diferentes, resultados diferentes. A tília é fácil de entalhar, aceitabem os detalhes e é clara. Uso para as cabeças das marionetes. Esse pinho...— O freixo é bom para tacos de beisebol — disse Peter. — É bem duro.Em silêncio, Vola ficou passando o bloco de pinho de uma mão para a outra.— Falando nisso... É sério que você não tem um taco? Você adora beisebol,mas não tem um taco?— Sou interceptador.— E daí? Você espera rebaterem a bola e vai buscar? Isso é só reagir. Nãoquer rebater também?— Não é assim que funciona. Quando eu pego a bola, estou no controle. Nãoestou reagindo, estou fazendo escolhas. E eu rebato. O time tem tacos. Você nãoentende nada de beisebol.— Eu posso não entender de beisebol — ela jogou a madeira de volta nocesto, dando de ombros —, mas estou começando a entender você. E acho queprecisa de um taco.Peter se virou para o cesto e passou a mão pelos blocos de madeira. Naquelemomento, surgiu em sua mente a imagem de um vidro azul se estilhaçando emcima de rosas brancas. A imagem que, quando Peter estava em campo, taco namão, ele só conseguia afastar caso se concentrasse o máximo possível nosmovimentos do arremessador.Se tivesse um taco de novo, veria aquele vidro azul estilhaçado em cima dasrosas brancas toda vez que o pegasse. E seria doloroso demais.Ele levantou um pedaço de madeira cor de mel, do tamanho que Pax tinhaquando Peter o encontrara.— Que tal este? — perguntou ele, com a respiração tensa. — Tem umatextura ondulada, como se fossem pelos.Mordendo o lábio, Vola parecia estar se segurando para não continuar adiscussão sobre o taco.— Noz-branca — disse ela, enfim. — Bela textura. Bem macia. Estude essapeça, e amanhã começamos.Tarde da noite, quando estava prestes a se deitar na rede, exausto, Peter viu obloco de madeira escolhido, que tinha deixado no peitoril da janela. Quase nãopensara em Pax naquele dia. A culpa o invadiu. Estava se tornando um meninosem raposa, coisa que não era desde os sete anos.Tinha levado bem mais tempo (um ano e dezesseis dias, para ser exato) paraconseguir passar um dia sem pensar na mãe. Foi o dia em que ele viajou com afamília de um amigo para acampar. Andaram de canoa pela manhã, epescaram, nadaram e armaram barracas, e tostaram linguiças na churrasqueirapara fazer cachorro-quente. Só quando ele entrou no saco de dormir sob asestrelas é que se deu conta de sua deslealdade. Naquela noite, teve medo de serum menino sem mãe porque merecia.Pegou a foto na mochila. O aniversário dela, a pipa. Uma das melhoreslembranças. Naquele dia, a pipa nem chegara a voar. Ele tinha seis anos, e a pipanão passava do desenho de um dragão colado em palitos de picolé. Mesmonaquela idade, Peter sabia que se o pai estivesse lá, o fracasso da pipa teriaestragado a tarde. Mas o pai não estava, e a mãe apenas riu, depois estendeu umatoalha na grama para fazerem um piquenique com pé de moleque e suco de uva,e inventaram várias e várias histórias sobre aquele dragão de papel — que eraesperto demais para sair voando quando tantas outras aventuras o esperavam emterra.Peter colocou a foto no parapeito, ao lado do bloco de madeira. Fechou osolhos. Precisava reviver também algumas lembranças de sua raposa.Pax esperando na porta do cercado sempre que Peter chegava em casa,porque já reconhecia o barulho dos freios do ônibus escolar. Pax farejando amochila em busca de talos de maçã. Pax dentro do bolso do suéter de Peter, acabeça para fora, quando Peter o levou escondido para a escola; ele estava nosegundo ano e não pensou nas consequências para o filhote, só queria aproveitarem segredo sua companhia. Houve treinamento de incêndio, e o alarme deixouPax apavorado. Mandaram Peter para casa, e o pai ficou com raiva, mas averdadeira punição para ele foi ver Pax tremendo e choramingando.A melhor lembrança era silenciosa. O inverno anterior tinha sido muito frio,com longos períodos em que Peter não queria sair de frente da lareira para fazero dever de casa. Estava tão frio que o pai acabou cedendo e permitindo que Paxentrasse cedo na casa, para se deitar perto do fogo. Enquanto a raposa dormia, ofocinho e as patas da frente ficavam tão quentes que Peter verificava toda hora.Peter se lembrava de estar lendo o livro de história e afundar a mão no pelo dopescoço do bichinho. Paz.Ele abriu os olhos, pegou o bloco de noz-branca. E, à luz pálida da lua, viu araposa na madeira.

PAXWhere stories live. Discover now