Capítulo 16

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O sol brilhava em meio à nevoa da manhã. As duas raposas estavam viajandofazia algumas horas, mas Cinzento era lento e parava a todo instante paradescansar. Por isso, só agora tinham chegado à base do vale. Durante a maiorparte do trajeto, Pax acompanhava a raposa mais velha, em sinal de respeito,mas às vezes tomava a liberdade de sair correndo a toda velocidade por longos egloriosos minutos, até dar meia-volta.Ele nunca havia corrido antes, não de verdade. Já tinha disparado pelocontorno do cercado ou pelo jardim dos seus humanos, mas correr pelo vale eradiferente: as patas esticadas, já curadas da queimadura, tocando o chão de levesó para pegar impulso enquanto ele percorria trechos cada vez maiores dogramado.A refeição do dia anterior tinha apurado seus sentidos e fortalecido seusmúsculos, mas àquela altura já não restava nada dos ovos na barriga, e os cheirosdo vale quente despertaram nele uma fome violenta. Haveria comida onde oshumanos estivessem.Quanto falta?Dois dias de viagem. Cinzento descreveu um lugar de muros de pedra onde aterra tinha um cheiro leve de alcatrão e cânhamo, um lugar cercado por um rio.Vamos chegar quando o sol estiver se pondo. De lá, viajamos mais um dia echegamos aos povoados humanos.Pax não lembrava o que eram povoados humanos. Não lembrava o que eraum rio. De sua casa, ele se lembrava da porta enorme. Lembrava-se doscarvalhos ao redor, dos vestígios abandonados de um jardim em que ele nuncatinha permissão para entrar, dos sons de uma rua. Ele achava que outroshumanos moravam naquela rua, mas nunca os tinha visto. Essas lembrançasestavam ficando mais fracas, assim como a lembrança de ficar dentro de umcercado. Não lembrava mais como era o céu visto através dos buracoshexagonais da cerca.Mas do seu menino ele se lembrava. Dos olhos castanhos com as estranhaspupilas redondas, e que Peter, quando estava feliz, fechava os olhos, jogava acabeça para trás e emitia uma espécie de uivo. A raposa se lembrava do pescoçosalgado do seu menino, às vezes com cheiro de suor e outras vezes de sabonete, edas mãos sempre em movimento, com o aroma de chocolate (que Pax adorava)e do couro da luva de beisebol (que ele odiava).Durante a viagem, Pax refletia sobre o enigma do aroma do seu menino: oaroma que ficava embaixo dos outros. Ficava entre a dor e a saudade, brotandode um sofrimento forte por algo que Pax nunca conseguira definir.Às vezes, no ninho do seu menino, Pax sentia aquele cheiro de dor-saudadecom tanta intensidade que sufocava todos os outros, mas o menino não fazia nadapara conquistar o que tanto queria, fosse lá o que fosse. Sempre que captavaaquele odor, Pax saía correndo de onde quer que estivesse e encontrava Peterdeitado na cama, o rosto marcado por sulcos grossos, agarrado a objetos queficavam escondidos na gaveta de baixo da cômoda. Pax esfregava o focinho namanga da camisa de Peter ou começava a puxar as cortinas, depois fingia perdero equilíbrio e cair no chão — qualquer coisa que fizesse seu menino ir brincarcom ele. Mas quando o cheiro de dor-saudade ficava muito forte, nenhum dostruques dava certo. Nesses dias, Peter o expulsava do quarto e fechava a porta.Ao se lembrar disso, Pax teve vontade de correr de novo, mas não pelaalegria do movimento.Essa guerra que está chegando... Tem certeza de que vai destruir tudo nocaminho? Mesmo os jovens?Tudo. Vai destruir tudo.Pax cutucou o focinho de Cinzento, com urgência mas de forma respeitosa. Araposa mais velha observou a mais nova por um momento, depois saiu trotando.As duas atravessaram a extremidade pantanosa do vale e subiram os penhascos,agora lado a lado.Pararam quando chegaram ao alto. Cinzento estava ofegante. À frente,pinheiros muito altos prometiam extensas poças de sombra fresca, mas asmarcas onde estavam eram fortes: o desafiador caçava naquele território, ehavia uma ameaça inconfundível no cheiro dele. Quase de imediato, ouviramressoar no chão o leve staccato de patas correndo na direção deles. Pax eCinzento foram praticamente pegos de surpresa quando a raposa castanha saiu domeio da vegetação, o focinho repuxado em um rosnado e a cauda balançando.Pax se encolheu, mas Cinzento avançou com calma, o corpo abaixado paranão demonstrar agressividade.Só estamos de passagem.O desafiador ignorou o cumprimento pacífico e saltou sobre a raposa velha,atingindo Cinzento no flanco, com força, e imobilizando-o no chão enquantoafundava os dentes no pescoço fino dele.Ao ouvir Cinzento gritar de dor, os pelos de Pax se eriçaram e seus batimentosaceleraram. Os músculos latejaram com uma fúria que ele só tinha sentido umavez, nos primeiros dias com seus humanos: quando o pai de Peter levantou a mãopara o menino, Pax cruzou o cômodo correndo, sem pensar, enfiando osdentinhos de filhote na perna do homem. Agora, assim como na ocasião, suascostas se arquearam e um rosnado grave soou no fundo da garganta.O desafiador se virou, surpreso, e Pax partiu para cima dele como pôde. Osdois rolaram engalfinhados, dentes mordendo a carne macia das orelhas, patastraseiras afundando no pelo macio da barriga, como apoio para os movimentos.A raposa castanha tinha mais experiência, mas Pax tinha a força do instinto deproteção. Quando os dentes de Pax encontraram o pelo do pescoço do outro, odesafiador se levantou às pressas e recuou um pouco, choramingando.Pax pulou na frente de Cinzento, protegendo-o como tinha feito com seumenino tanto tempo antes. Estufou o peito e rosnou, dando o aviso. O desafiadorrecuou ainda mais.Pax se sacudiu, para tirar o excesso do sangue que saía dos muitos arranhões,e foi limpar o ferimento do amigo. Tinha sido profundo. Ele pediu que Cinzentodesistisse da viagem.Não. Vou em frente.Os dois caminharam durante uma hora por um bosque de árvores esparsas,mantendo o ritmo constante. Pax andava devagar para acompanhar o passo doamigo ferido, mas se sentia satisfeito porque pelo menos estavam emmovimento. Quando um bando de corvos pousou nos galhos nus de umanogueira, Cinzento parou e se sentou na base da árvore, orelhas em pé, atento.Pax esperou, mas sem paciência. Depois de um tempo, a raposa velha uivoupara ele.A guerra está se aproximando.Como você sabe disso?Os corvos. Escute.Pax inclinou a cabeça. Outras aves desceram berrando para os galhosinferiores, depois bateram as asas de novo para poleiros mais altos, girandoalvoroçadas.Eles estão transtornados.Os corvos encolheram os ombros, eriçaram as penas, sacudiram e baixaramo bico. A agitação deles deixou Pax com os nervos à flor da pele.Tumulto.Prestou mais atenção, e o que sentiu o alarmou. Tentou descrever: arengasgado de morte. Fogo e fumaça. Sangue em um rio, a água correndovermelha, a terra encharcada de sangue. Caos.Está tudo se desfazendo. As fibras das árvores, as nuvens, até o ar está sedesfazendo.Sim. Guerra. Onde?Pax sintonizou consigo mesmo mais uma vez.No oeste. Ainda distante, mas está chegando perto. E agora um grupo pequenode doentes de guerra chegou do sul para alcançá-la.Do sul.Pax ficou andando de um lado para o outro enquanto Cinzento tentava selevantar. Mais uma vez, Pax propôs ir sozinho, mas Cinzento mais uma vez serecusou a voltar para casa. Mais uma vez, eles partiram, e mais uma vez o ritmofoi mais lento do que Pax gostaria. Só pararam para comer larvas e frutassilvestres, e, nessas ocasiões, Pax farejava o ar à procura de algum rastro doaroma do seu menino, do mais leve som da voz dele. Nada. Nada.Ele levantou o focinho no ar e uivou uma única nota dolorosa.Fazia muito tempo que não via seu menino. Antes disso, eles nunca tinhampassado mais da metade de um dia separados. Peter geralmente saía de manhã,e Pax ficava andando de lá para cá no cercado, cada vez mais aflito, até detarde, quando Peter voltava para casa com o cheiro de outros humanos e o bafoestranho do grande ônibus amarelo que o trazia. Pax via que seu menino estavabem, examinando-o em busca de algum sinal de ferimento, e só depois disso éque ele relaxava e ia brincar.A tarde caíra. Pax uivou de novo, e, dessa vez, Cinzento ergueu a voz em umeco sofrido. Porém, quando Pax voltou ao caminho para seguir viagem, Cinzentohesitou.Pax percebeu que Cinzento precisava descansar, então levou a raposa feridaaté um círculo de sombra embaixo de um pinheiro. A raposa mais velha apoiou acabeça nas patas e adormeceu antes mesmo de Pax terminar de se limpar.Enquanto vigiava, Pax se imaginou reencontrando seu menino e fazendo ascoisas de que eles mais gostavam: rolar juntos no quintal, brincar de caça,explorar o gramado e o pequeno bosque. Ele se lembrou das maneiras como seumenino o recompensava: dava grandes sorrisos de recepção, coçava o pescoçodele, os dedos fazendo uma força satisfatória. Lembrou-se da paz que sentia aose deitar aos pés do seu menino em frente à lareira.As lembranças o acalmaram tanto que Pax cochilou pensando nos dedos dePeter massageando a pele entre suas omoplatas. Foi tão real que seu pelo seeriçou. Até que uma brisa trouxe um aroma que o despertou na mesma hora.Carne. Carne sendo assada, como seus humanos às vezes faziam no quintal.Seu menino lhe dava pedaços da carne, pingando gordura, e Pax passava diasremexendo a área cheia de cinzas, em busca de restos. Até os ossos queimadoseram tesouros para ele.Pax se levantou para farejar melhor. Sim, carne assada. Cutucou Cinzento,que dormia.Tem humanos por aqui.Depois do descanso, Cinzento teve mais facilidade para andar, e os doisseguiram caminho em um ritmo intenso. Quando estavam quase chegando, Paxdisparou na frente. Seu corpo era leve, tendo perdido gordura por causa dos diassem comer. Correu como as raposas nascem para correr, o corpo compactodisparando a uma velocidade que fazia a pelagem ondular. A alegria recém-descoberta da velocidade, a tensão da noite chegando, a esperança dereencontrar seu menino: tudo isso fez dele uma criatura a disparar por entre asárvores como fogo liquefeito. A gravidade não podia tocá-lo. Ele poderia correrpara sempre.Até que, na saída do bosque, viu à frente um rio largo. E, atrás do rio, umcampo, plano até certa distância e depois subindo até enormes muros de pedra jáquase em ruínas. O sol estava se pondo. Havia um grupo de homens reunidoperto dos muros, comendo ao redor de uma fogueira. Atrás deles, via-se umamontoado de barracas montadas e alguns veículos grandes.O vento tinha passado a soprar na direção leste. A fumaça da carne aindapairava pesada no ar, mas, dos humanos, Pax só conseguia capturar um cheirogeral. Ele correu para um lado e para o outro ao longo da beira do rio, frustrado,mas não importava a direção: não conseguia diferenciar o aroma de cadahumano separadamente.Ao menos Pax sabia que seu menino não estava ali. Nenhum daqueleshumanos tinha a forma magra dele, nenhum se movia com a mesma energiaveloz, nenhum se portava como Peter: ereto, mas com a cabeça ligeiramentepara baixo. Ficou aliviado, pois os outros odores que vinham do acampamentodos humanos — fumaça, diesel, metal chamuscado e um estranho odor que eraescuro e elétrico — indicavam elementos dos quais ele teria afastado seumenino.Mancando, Cinzento saiu do bosque e se deitou na margem do rio, ao lado dePax. Os dois ficaram observando os homens, que tinham terminado de comer,mas continuaram ao redor do fogo, conversando e rindo.Eles estão doentes de guerra?, quis saber Pax.Não agora. Agora estão em paz. Eu me lembro dessa paz. A velha raposaencolheu as patas embaixo do peito. No fim do dia, os humanos com quem moreise reuniam como esses aí.De repente, Pax lembrou: também já tinha visto cenas parecidas. Nãoaconteceu por muitos anos, mas às vezes, no fim do dia, seus humanos sesentavam juntos no ninho do seu menino. O pai colocava no colo uma caixa dura,achatada e fina, feita com muitas camadas de papel. Papel — como o da camade Pax, mas não rasgado, e com muitas marcas. Os humanos puxavam ascamadas, uma a uma, e as estudavam. Pax lembrava que seus humanos ficavamunidos nessas noites, e, com a harmonia deles, podia baixar a guarda.Pax teve uma sensação estranha, como se o peito já não fosse mais suficientepara o coração caber.As duas raposas se viraram para os homens. Alguns ainda estavam agachadosao redor do fogo, enquanto outros andavam com lamparinas entre osequipamentos e as barracas. Quando a noite caiu, os últimos homens selevantaram. Terminaram de beber o café, jogaram terra nas chamas e entraramnas barracas.Cinzento também se levantou e foi mancando colina acima até a proteção deum largo tronco de cicuta. Andou em círculo e depois se encolheu no chãocoberto de agulhas de pinheiro, o focinho aninhado embaixo da cauda.Com o cheiro de carne, Pax tinha ficado tão faminto que não conseguiadescansar. Foi até a beirada do rio. A correnteza estava fraca. Ele mergulhou acabeça e bebeu um pouco de água, depois pulou para uma pedra, escorregadiade musgo mas firme no solo. Em seguida, com o olhar fixo no brilho das brasasse apagando, escolheu. Um pulo, um espirro de água, e mais uma vez seu corpofez algo que nunca tinha feito, mas que era da sua natureza: nadou. Logo subiupela margem e se sacudiu.Não vinha movimento nem som das barracas. Pax seguiu em silêncio pelocampo e subiu a elevação. Contornou o acampamento, cada vez mais perto dascinzas da fogueira.A sensação de perigo era forte. Ele precisava se forçar para não saircorrendo. Afinal, só estava acostumado com seus dois humanos: o que ele amavae o que tolerava. Várias vezes ele se aproximou do ponto onde tinha sido acesa afogueira, sentiu o cheiro de carne misturado ao cheiro ameaçador de doentes deguerra e recuou de um pulo.Não resistiu ao ver um osso de porco descartado, ainda perfumado degordura. Avançou. Enquanto engolia a carne, cheia de cinzas mas ainda quente, oruído de lona o assustou. Ele ficou imóvel.Um homem saiu de uma barraca. Com a silhueta delineada pela luz dalamparina, ele se espreguiçou, e uma sombra comprida serpenteou até cobrir araposa atenta. O homem se virou e se aliviou em um arbusto. O cheiro da urinadele alcançou Pax, que se eriçou em alerta intenso.Era o pai do seu menino.


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