Capítulo 17

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— Chega.Ao ouvir as palavras e sentir a mão de Vola no ombro, Peter ficou aliviado. Opé latejava, os ombros doíam e as axilas estavam tão esfoladas que sangravam.Após dois dias do Campo de Treinamento Vola — o nome secreto com que elebatizara as sessões de tortura que incluíam escalar de muleta a colina, se arrastarpor um terreno pedregoso e subir montanhas de feno equilibrado em um pé só—, ele estava esgotado. Ao olhar para a casa, não sabia se conseguiria chegar atélá.Porém, acima do telhado, viu as colinas cobertas de nuvens carregadas. Anoite logo cairia. Pensou em Pax, molhado e com frio.— Eu posso continuar.— Não. Se forçar demais, você vai jogar fora todo esse esforço.Peter concordou e deu um passo na direção da casa.Mas Vola o deteve.— Ainda não — disse ela, apontando para o celeiro. — A terceira condição.O celeiro parecia estar a uma distância impossível. Peter olhou de novo para acasa. Queria se jogar naquela rede. Bateu com as pontas das muletas no solo, emum show deliberado.— E qual é ela?— Nada de mais. Você vai controlar uns bonecos para mim. Marionetes.Acha muito?— Marionetes? Não estou entendendo.— Sabe o que são?— Claro. — Ele rememorou os que já tinha visto de perto, em uma feira derua, quando era pequeno: os personagens Mister Punch e Judy, com queixocomprido e nariz fino. Com o olhar morto, magrelos como ratos famintos. Osbonecos eram puxados pelo palco em movimentos bruscos que lhe renderamsemanas de pesadelos. — O que tem?Vola o observou por um momento antes de responder:— Outra parte verdadeira de mim que recuperei: lembrei que faziamarionetes para minhas sobrinhas quando eu era adolescente. E que amavaentalhar madeira.Ela puxou dois lenços do macacão e os entregou com um suspiro.— Enrole isso nos apoios. Você ainda está se pendurando nas muletas. Tire opeso das mãos, criança. Distribua o peso pelos braços, mesmo quando estiverparado.O inesperado tom afetuoso de Vola o desarmou. Em um minuto, ela estavaaos berros, mandando-o fazer doze flexões ou apontando o dedo na cara delepara avisar que não deveria baixar demais o corpo. Era confortável assim. Eracomo estar em casa. Mas, no minuto seguinte, ela passava unguento nos ombrosdoloridos dele, ou lixava as farpas das muletas, ou parava o que estava fazendopara preparar uma caneca de chocolate quente para ele. Nesses momentos,Peter percebia como ela estava se dedicando para torná-lo forte e independente,o que o fazia se sentir culpado.Era como ele se sentia agora mesmo, enrolando o tecido macio nos apoios demãos. Por isso, falou o que achou que ela queria ouvir:— Suas sobrinhas deviam ficar muito felizes em ganhar presentes tão legais.Só que ele duvidava muito daquilo. As tais sobrinhas deviam ter jogado no lixoos bonecos esqueléticos de olhos mortos assim que ganharam. Nada depesadelos.Vola deu de ombros, mas Peter notou que, no fundo, ela ficou satisfeita aoouvir aquilo. O sentimento de culpa diminuiu. Ele apoiou o peso do corpo napalma das mãos machucadas e a acompanhou até o celeiro. Na porta, paroupara inspirar o ar frio; cheirava a madeira, feno, óleo de linhaça e verniz. Sócheiros bons, pensou, separando-os mentalmente. E excelentes quando juntos.Ele entrou.Vola cruzou o celeiro até a parede coberta pela aniagem. Peter ficou paratrás, pois aquela parede o tinha deixado nervoso no primeiro dia. Quando elapuxou o tecido para o lado, ele quase perdeu o equilíbrio, como se tivesse atingidono peito pelo que viu. Os bonecos, ou melhor, as marionetes — agora ele via queeram marionetes, penduradas na parede —, eram de um realismo assustador,mas totalmente diferentes de qualquer coisa que o menino já tivesse visto.Peter chegou mais perto e finalmente conseguiu falar:— Os olhos.— Joias da minha avó. Ela tinha uns colares enormes de azeviche. As pupilassão feitas dessas pedras. Brilham na luz, fazem meus amigos parecerem vivos.Peter ficou em silêncio de novo, e Vola o deixou observar as criaturaspenduradas à frente.Cinco delas eram humanas: um rei e uma rainha, uma criança, um pirata (outalvez marinheiro) e uma feiticeira. O restante eram animais. Todas as cabeçaseram de madeira, quase em tamanho real e com olhos enormes, mas umagrande variedade de materiais formava os corpos. Uma tartaruga tinha o casconas cores verde e laranja. Pedaços de pinha formavam as escamas de umaserpente. E penas: quase todas as marionetes usavam uma variedade de penas degalinha como cabelo ou adereço de cabeça, ou como capa, ou ainda como calça.Ao lado de cada marionete havia vários pedacinhos de madeira unidos com linhapreta, pendurados em ganchos.No centro da parede estava a maior das marionetes, deduziu Peter, todacoberta por um tecido especial. Quando Vola tirou o pano, o menino soltou umaexclamação de surpresa.As asas do enorme pássaro eram magníficas, deviam ter um metro e meio delargura. Centenas de penas pretas se posicionavam em fileiras perfeitas egraciosas; as pontas, pintadas de vermelho, pareciam lambidas por fogo. Volatirou o pássaro do gancho e o levou até Peter.— Quase todas as outras têm só cabeça e ombros, mas esta precisa voar —disse ela. — Fiz articulações aqui e aqui. Quando este pássaro sobe, quase dá parasentir o vento. Pode tocar.E ele tocou. Com as pontas dos dedos, sentiu a estrutura macia, coberta depenas, depois o bico afiado de madeira, dourado. Os grandes olhos pretos da avebrilhavam. Ele baixou a mão.— E o que eu tenho que fazer com isso?Vola apontou para os fardos de palha.— É melhor se sentar. Vou começar do início.Peter obedeceu, feliz em poder descansar. Observou Vola pendurar o grandepássaro de volta e, de um nicho na parede, puxar um pequeno livro. Ela entãovoltou e se sentou ao lado do menino com o livro nas mãos.— Eu matei uma pessoa.Ela o encarou. Peter não conseguiu esconder o choque rápido o suficiente.Vola deu um pesado suspiro de repulsa.— Não importa que diavolo nos ensinam sobre aprender um ofício edesenvolver o nosso talento — disse ela. — Quem vai à guerra é para matargente. Matar ou morrer: esse é o contrato.Não era verdade. O pai dele, por exemplo."Você não vai lutar, vai?", perguntara Peter.Com uma risada, o pai tinha respondido que não, que ia fazer o mesmo quesempre fizera em seu trabalho: montar fiações elétricas.Peter, no entanto, não se deu ao trabalho de corrigir Vola, porque ela tinhauma expressão devastada.— Você matou uma pessoa.— Devo ter matado muitas, na verdade, ou pelo menos contribuído para isso.Mas essa... essa eu vi. Depois de morta. Revirei o corpo. Tínhamos que procurararmas, qualquer coisa que pudéssemos usar.Ela fez uma pausa.— Era um homem. Eu me ajoelhei ao lado dele — continuou. — Tive quetocar no corpo para procurar armas. Lembro que fiquei chocada com asensação. Mesmo sendo paramédica, era como se eu esperasse um corpo deplástico, não real. Foi como nos ensinaram a pensar no inimigo. Mas claro queele estava... estava quente. Fazia frio, mas ele exalava calor. Como se a vidaainda estivesse evaporando do homem. E eu o estava tocando sem permissão. Eutinha matado aquela pessoa, mas o que me perturbou foi ele ter perdido o direitode dizer sim ou não ao que lhe acontecia. Você deve achar que isso é loucuraminha, não acha?Peter sentia a boca seca. Não sabia o que dizer. Até que, de repente, ele selembrou da terapeuta de olhar gentil.— Deve ter sido difícil para você.Vola olhou para ele com uma expressão que era um misto de surpresa ealívio.— De repente, me vi desesperada para saber quem ele era. De onde vinha, doque gostava, quem o amava. Ele estava de boca aberta, como se quisesse falarcomigo. Foi quando percebi: embora ele fosse homem, embora fosse branco,embora fosse de outro país, talvez tivéssemos muitas coisas em comum. Coisasimportantes, mais importantes que o Exército que nos convocou. Dois, mas nãodois. Só que eu o matei, então jamais saberíamos nada um sobre o outro.Vasculhei a roupa dele, mas não em busca de armas e, sim, de pistas de quemele tinha sido.Vola ficou calada por um tempo, e parecia tão arrasada que Peter tevevontade de desviar o olhar.— E...— Isto. — Ela ergueu o livro. — As sete viagens de Simbad, o marujo. É partede As mil e uma noites. No bolso dele. Ele levou para a guerra, então devia ter umsignificado. Era um exemplar velho. Devia ter sido o favorito daquele soldadoquando menino. Simbad era corajoso, e isso talvez desse coragem a ele. Ou podeser que ele só quisesse lembrar que já tinha sido um garotinho, por isso lia o livroe se sentia seguro. Uma página estava marcada: a história de como Simbadescapou do ninho da Roca. Achei que a história o tivesse ajudado a acreditar queum dia ele também escaparia e voltaria para casa.Vola se levantou e pegou de novo a grande marionete com asas.— A Roca. Uma ave capaz de capturar elefantes só com as garras. Olhe.Ela levou a ave outra vez para Peter e apontou o bico para ele.O olhar do pássaro era tão intenso que Peter se encolheu involuntariamente.— O que quer que eu faça com isso? — perguntou ele novamente.— O livro era tão importante para aquele soldado que ele o levou para aguerra. Pensei que, por ter lhe tirado a vida, era minha dívida contar a históriaque era tão importante para ele. Fiz todas essas marionetes e há quase vinte anoseu conto a história de Simbad e de como ele fugiu da Roca, aqui no celeiro.Vola estendeu o controle da marionete para Peter.— Agora, finalmente vou poder assistir.

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