Capítulo 15

19 0 0
                                    

— Estou tentando resolver minha vida. Não tenho respostas para a sua.— Quem tem, então? E não venha me dizer que meu pai tem, porque ele andameio ausente.E porque foi ele que causou tudo isso. Peter cerrou os dentes para não dizer oque tinha pensado e se obrigou a respirar devagar. Não estava com raiva. Apenasfrustrado. Qualquer um ficaria. De repente, algumas lágrimas ameaçaram cair— o que estava acontecendo com ele? —, e Peter esfregou os olhos.Vola foi na direção do menino, mas pareceu mudar de ideia. Voltou e seapoiou na bancada da cozinha.— Você está com raiva — disse ela, como se estivesse observando que eletinha cabelo escuro ou que o sol estava se pondo.— Eu não estou com raiva.Apesar do que dizia, Peter teve que forçar as mãos a se abrir e respirar fundocontando até dez, como sempre fazia para se controlar. Afinal, ele não queria serigual ao pai, que vivia com raiva, o tempo todo em ebulição, capaz de explodir aqualquer momento e machucar todos que estivessem no caminho. Os pedidos dedesculpa nunca restauravam os danos.Peter fechou os olhos com força, para segurar as lágrimas que aindaameaçavam cair.— Não estou com raiva. É que eu não escolhi isso. Não fui eu que quis essaguerra. Não fui eu que fiz meu pai se alistar. Não escolhi ir embora de casa, nãoescolhi ir morar com o meu avô. E é claro que não escolhi abandonar o bichinhoque ficou cinco anos comigo.— Você é criança. Não tem muitas escolhas. Eu também estaria com raiva seestivesse no seu lugar. Com raiva pra diavolo.— Já falei que não estou com raiva!Peter engoliu um soluço que escapou como uma gargalhada esquisita. Estavaentrando em curto-circuito de novo.— E você é apaixonada por essa palavra, sabia? — disse ele.— Do que você está falando, garoto?— Diavolo. O que é isso, um palavrão? — perguntou Peter. — Você estáapaixonada por essa palavra. — Os fios já tinham se queimado. Curto-circuito.— Se eu ainda fosse criança, diria que está tão apaixonada por essa palavra quedevia se casar com ela!Vola soltou uma risada aguda. Soou como um corvo piando.— Tem razão! — disse ela. — Eu devia me ajoelhar nesse diavolo desse meujoelho destruído e pedir essa palavra em casamento!— Devia! — concordou Peter, já meio histérico àquela altura. — Devia botarum diavolo de um anel no dedo dela!Ele limpou o rosto. Vola se aproximou e se sentou em frente ao menino.— Minha avó xingava na língua materna. Meu avô ficava louco com isso,porque não sabia falar a língua dela. Só que ele cantava músicas italianas,então... — Vola acariciou as penas que repousavam no pescoço. — Ainda levoalguns desses hábitos.A mulher ficou quieta por alguns longos instantes, ainda o encarando. Naquelesilêncio, Peter sentiu que eles estavam comunicando algo importante um aooutro. Algo sobre o túnel comprido e escuro que ele sentia se fechando ao redor.— Eu tinha pensado que levaria uma semana para encontrar Pax, no máximodez dias. — Ele baixou o olhar. — Mas agora...— Pax? É esse o nome dele? Quer dizer "paz", sabia?Peter sabia. Muita gente falava isso.— Mas não foi por isso que escolhi esse nome. No dia em que levei Pax paracasa, deixei ele sozinho por um minuto, só um minuto, para ir pegar comida.Quando voltei, ele tinha sumido. Tinha entrado na minha mochila e dormido ali.Aí eu vi a etiqueta com a palavra "Paxton". Eu tinha sete anos e pensei:"Paxton... é um bom nome." Achei que soava legal, sabe? Mas agora...— Agora o quê?— Agora ele está sozinho por causa de uma guerra. Eu abandonei minharaposa por causa de uma guerra. Guerra, não paz. Como isso se chama? Ironia?Só sei que agora Pax é um péssimo nome. Ele provavelmente vai morrer porcausa de uma guerra.— Talvez sim, talvez não. Ele pode sobreviver. É primavera. Tem muitacomida por aí, eu acho.— Não — disse Peter. — As raposas ensinam os filhotes a caçar quando elestêm umas oito semanas de vida, e eu encontrei Pax bem antes disso. Oveterinário disse que ele devia ter umas duas semanas. Ele pode passar por dezratos sentados em pratinhos e não vai conseguir pegar nenhum. Só comia ração eos restos de comida que eu dava para ele.— Bom, que tipo de restos? Alguma coisa que ele poderia encontrar por aí?Peter deu de ombros.— Ele adora manteiga de amendoim. E salsicha. Adora ovo também. A nãoser que ele encontre a merendeira de alguém, vai morrer de fome. Vai conseguirencontrar água, imagino, e deve sobreviver uma semana sem comida, masdepois disso...Peter apoiou a cabeça nas mãos.— Eu deixei isso acontecer. Não foi uma escolha minha, mas também nãolutei contra. Não sei por quê.Mas é claro que ele sabia. Da primeira vez que o pai falou sobre abandonarPax, Peter tomou coragem e se recusou a obedecer, mas as chamas da raiva seacenderam nos olhos do pai e ele ergueu o punho, parando no último segundoantes de acertar o rosto do filho. O gesto foi tão ameaçador que Pax rosnou,assustado.Peter também ergueu os punhos, e a raiva que sentiu do pai o assustou mais doque a ameaça em si.Agora, na casa de Vola, ele pensou novamente nas palavras do avô — "asmaçãs não caem longe da árvore" — e sentiu outra vez o enjoo e o medo.Baixou o olhar para a mesa gasta de pinho, com vergonha do que transpareciaem seu rosto.Vola segurou a cabeça de Peter entre as mãos. Ele ficou paralisado. Depois damãe, nunca mais o haviam tocado como um gesto de afeto, a não ser peloocasional "bom garoto" do pai, acompanhado de um aperto no ombro, ou osoquinho no braço por parte de algum amigo. Vola parou, como se tivesseentendido que ele precisava de um tempo, e depois voltou a tomar entre as mãosa cabeça do menino.Era uma coisa estranha de se fazer, mas Peter não se afastou, não mexeu ummúsculo e nem respirou. Porque, naquele instante, as mãos firmes da mulhereram a única coisa que o impedia de desmoronar.— Bem, isso agora é passado — disse ela. — Não é?Ela se levantou.— Eu posso não ter suas respostas, garoto, mas de uma coisa eu sei —continuou a mulher. — Você precisa de comida. Muita comida. Você tem dozeanos, dormiu no frio e está com um pé quebrado. Vou colocar o osso no lugar.Depois, vou cozinhar alguma coisa, e você vai comer até estar satisfeito.Entendido?Peter sentiu que, de repente, a barriga tinha virado uma cratera vazia querosnava dentro dele.— Sim, senhora, entendi.Vola mexeu no armário embaixo da pia e pegou um saco de gesso. Peterobservou enquanto ela jogava um pouco no balde e acrescentava um poucod'água. Em seguida, ela lhe entregou o pedaço de pano que estava costurandoantes de ele entrar.— Levante o pé.Vola colocou uma almofada embaixo do joelho dele e vestiu a perna com umpano acolchoado, uma espécie de meia só que sem os dedos.Ele reconheceu o tecido xadrez amarelo. Olhou para o quarto, para tercerteza.— Você cortou sua colcha?— Depois eu faço outra. Você precisa do acolchoado. — Vola pegou mais umpedaço da colcha, tirou o enchimento, depois cortou o tecido amarelo em tiras emergulhou-os no gesso. — Mantenha o pé em um ângulo de noventa graus —continuou ela, e começou a enrolar as tiras no pé e no tornozelo de Peter, atémetade da panturrilha. Quando já tinha construído uma bota grossa, passou maisgesso. — Não mexa. Nem os dedos.Vola foi até a varanda e voltou com os braços cheios. Pegou duas frigideirasde ferro, colocou uma colher de manteiga em cada uma e acendeu o fogo.Quebrou alguns ovos em uma tigela amarela e começou a misturar com leite efubá.Uma brisa fresca o alcançou, trazendo o cheiro de terra revirada e manteigaquente. Ele olhou para o gesso secando, o pé protegido lá dentro, envolvido peloque um dia tinha sido a colcha de Vola.— Desculpa. Pelo jeito como agi — disse ele, apontando com a cabeça para oquadro de frases.— Meus cartões filosóficos idiotas. Peter Sem Taco, essas frases são sóalgumas coisas que acho que são verdade no mundo. Coisas universais. As queimportam mesmo são aquelas que vejo que se aplicam a mim. Estas, eu guardoem outro lugar, escondido.— Por quê?— Por que o quê? Por que são as mais importantes ou por que ficamescondidas?Peter deu de ombros. Tanto faz. Os dois. Recostou-se na cadeira, esperando.Vola olhou para ele enquanto fatiava um presunto e colocava em uma dasfrigideiras. Ela pegou três conchas da mistura que tinha feito, derramou na outrafrigideira e, por fim, colocou a tigela na bancada.— Vou contar uma história."Quando deixei o Exército, eu não me lembrava de uma única verdade sobremim. É isso o que o treinamento militar faz com você. Não existem maisindivíduos, só peças para eles moldarem na máquina de guerra."Vola fez uma pausa. Continuou:— Fiquei perdida no meu primeiro dia como civil. Perdida. Entrei em ummercado, olhei para todas as opções nas prateleiras, e toda hora eu meperguntava para quem eu estava comprando aquela comida. O que encheria abarriga faminta daquela pessoa? Um ensopado ou uma torta? Feijão ou pão? Nocorredor de legumes e verduras, desmoronei, porque me dei conta de que nãome lembrava de nada sobre mim mesma.Vola ficou um tempo em silêncio, os olhos fechados.— O que aconteceu? — perguntou Peter, depois de um instante.— Como assim?— No mercado. O que aconteceu no mercado?— Ah.Ela voltou ao fogão e virou a panqueca de fubá antes de continuar:— Manteiga de amendoim.— Aconteceu manteiga de amendoim?— Aconteceu manteiga de amendoim — disse ela, jogando as mãos para oalto. — E foi sorte. Ali estava eu, chorando no chão do mercado... era um pisode linóleo sujo, com quadrados vermelhos e brancos, nunca vou esquecer... e eusabia que só conseguiria me levantar quando lembrasse que tipo de comida eugostava.Vola deslizou as panquecas para um prato azul e ficou parada. Peter achouque ela devia estar revivendo mentalmente o episódio do mercado. Que bom queele nunca tinha visto uma cena daquelas: uma mulher adulta aos prantos largadano chão sujo de um mercado. Uma mulher maluca, sem uma perna. De repente,teve vontade de protegê-la, e torceu para que não tivessem rido dela, para queela tivesse se recuperado.— E depois?— Ah. Finalmente lembrei. Eu me lembrei da minha avó me dizendo que,depois que comi um sanduíche de manteiga de amendoim pela primeira vez, euqueria comer todo dia. Então, me levantei do chão e comprei pão e manteiga deamendoim. Enchi o carrinho só disso, porque decidi que só voltaria ao mercadoquando tivesse certeza de saber de alguma outra coisa que eu gostasse de comer.E eu achava que ainda levaria um bom tempo para isso.Ela colocou o presunto no prato, acrescentou uma colherada de purê de maçãe levou até ele junto com um pote de mel.— Coma.Peter jogou um monte de mel por cima e deu uma garfada. Os grãos de fubádeixavam a panqueca ligeiramente crocante, e o presunto macio dava um toquesalgado ao doce do mel. Ele não se lembrava de ter comido nada melhor emtoda a vida.— E demorou mesmo? — perguntou ele quando já estava na metade do prato.— Demorou muito para você se lembrar de outras coisas?Vola tocou o gesso para ver se já estava seco.— Está quase. Continue parado só mais um pouquinho. — Ela voltou ao fogão,cortou mais fatias de presunto e colocou mais massa na frigideira. — Demorou.Disseram que era o TEPT, Transtorno de Estresse Pós-Traumático, emconsequência da guerra. E eu estava mesmo doente, mas sabia que não eraexatamente por ter ido à guerra. O problema foi que, lá, eu esqueci tudo que eraverdade sobre mim. Foi Transtorno Pós-Traumático de Esquecer Quem Eu Era:foi isso que eu tive."Na época, meu avô já estava em um asilo, quase morrendo. Fui até a casadele, que também já tinha sido meu lar, porque meus avós me criaram poralguns anos, e minha ideia era arrumar tudo."Era o final do verão. O pomar estava malcuidado, mas ainda havia algunspêssegos nas árvores. Essa foi a segunda sorte que tive, depois da manteiga deamendoim. Porque de repente eu lembrei: meu Deus, eu amava aquelespêssegos. Saía escondida no meio da noite para pegar. Eu me deitava na grama,embaixo daquelas árvores, os vaga-lumes piscando em volta e os griloscricrilando, com um monte de pêssegos em cima da barriga, e comia atéescorrer sumo para as minhas orelhas."Eu me lembrei disso perfeitamente, cheguei a sentir o cheiro da lembrança,a ouvir e sentir o gosto, mas não consegui descobrir como aquela garota podia sera mesma pessoa que tinha vestido uma farda, pegado em arma e feito o que fezna guerra. Então colhi um daqueles pêssegos, me deitei na grama, mordi e...pronto. Encontrei outro pedacinho verdadeiro do meu antigo eu."Ela levou a frigideira até Peter e colocou mais presunto e panquecas no prato,depois voltou ao fogão.— Pare — disse Peter.— Parar? Bem, já acabei mesmo a história.— Não, eu quis dizer que já está bom de comida — disse Peter. — Obrigado.Mais uma vez, Peter desejou que sua raposa estivesse embaixo da mesa. Maisuma vez, ele se perguntou se Pax estaria com fome. Teve a curiosa sensação deque não, de que pelo menos aquela noite Pax tinha comida na barriga.— E depois disso você ficou bem? — perguntou ele, pegando mais umagarfada.Vola colocou a frigideira na pia e voltou, sentando-se em frente a ele à mesa.— O que uma pessoa gosta de comer? Isso é um detalhe. Eu estava perdida,precisava descobrir todas as coisas verdadeiras sobre mim mesma. Desde aspequenas até a maior de todas: descobrir no que eu realmente acreditava.Peter achava que sabia o que viria.— A guerra, por exemplo. Agora você é contra a guerra, não é?Vola apoiou o queixo nas mãos.— É complicado. Sou a favor de que se fale a verdade sobre o assunto. Sobreo preço que se paga pela guerra. As pessoas deviam falar a verdade sobre asconsequências da guerra. Eu demorei muito tempo para descobrir. — Vola serecostou na cadeira. — Mas não foi só isso. Tive que redefinir tudo que era certoe errado para mim. Mas eu não conseguia, porque o mundo era barulhentodemais e não me deixava ouvir os meus próprios pensamentos. Então, fui morarna casa do meu avô. Decidi ficar até saber de novo quem eu era.Peter olhou para as compotas de pêssego na prateleira acima e se lembroudas árvores em flor no pomar.— E você ainda está aqui — disse ele. — Essa é a casa do seu avô, não é?


PAXWhere stories live. Discover now