Capítulo 18

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Pax viu Cinzento beber água da beira do rio e recuar. As raposas descansarampor dois dias, na margem oposta à do acampamento dos doentes de guerra, masCinzento não tinha melhorado. Quando chegou à sombra aromática do tronco decicuta, ele desabou, os olhos vazios e vidrados, e quase não se mexeu quando Paxlimpou seu pescoço mais uma vez.Pax achou que o ferimento estava ainda mais inflamado.Fique escondido. Descanse.Ele deixou Cinzento ali e subiu o rio até um local que havia descoberto, umponto em que o corpo d'água se estreitava e a vegetação ali era mais densa,permitindo que ele se deslocasse sem ser visto pelos humanos. Da vez anterior,tivera pouca sorte na caça; a área estava lotada de ratos e coelhos, mas elesescapavam das tentativas desajeitadas de Pax de pegá-los. Além de besouros efrutas silvestres ainda verdes, pegara apenas alguns crustáceos, que Cinzento nãoquis.Pax tentou por meia hora. Correu atrás de ratos silvestres ligeiros e rouxinóissaltitantes, até de uma rã que tomava sol, mas, toda vez que saltava, só mordia oar. E a cada tentativa frustrada ia ficando mais faminto. Queria carne, tanto parasi quanto para seu companheiro enfraquecido. Os aromas deliciosos que vinhamdo acampamento o atormentavam.Ele pulou na água. A correnteza era forte ali, mas na metade do caminhohavia três rochas encostadas umas nas outras, formando um local seguro de ondePax poderia observar os humanos.Haviam chegado outros. Algumas mulheres, mas a maioria homens. Paxprocurava seu menino a todo momento, porque o pai dele ainda estava ali eporque sentia que sua casa não estava distante, mas só viu adultos.Havia muitos deles no campo agora. Alguns, perto da margem do rio,desenrolavam fios em frente ao ponto onde Cinzento estava. Isso deixou Paxtenso. No entanto, os soldados só pareciam interessados no trabalho.Pax aprendera a rotina deles. Pela manhã, dois entravam em uma barracaque Pax pressentia estar cheia de comida. Os dois cozinhavam na fogueira,enquanto os outros doentes de guerra se reuniam para comer. Depois, todostrabalhavam no campo e nos veículos, descarregando mais e mais máquinas,mas só voltavam à barraca de comida no entardecer, quando os mesmos doispreparavam o jantar e chamavam os outros.Agora, era o meio da tarde. Pax observou um pouco mais, para ter certeza deque os doentes de guerra estavam ocupados, e em seguida atravessou o últimotrecho de água, que corria sobre uma árvore caída. Com a barriga rente ao chão,foi rastejando até chegar a uma área acima da velha fábrica.Chegando lá, observou a cena. Três homens estavam posicionados noacampamento, agachados ao redor de novos equipamentos, no lado da fábricaonde dois muros grossos se encontravam.Os demais estavam no campo. Alguns desenrolavam carretéis de fios até osburacos que tinham cavado perto da margem do rio; outros colocavam caixasnesses buracos e cobriam com terra.Duas duplas tinham atravessado o rio e estavam cavando buracos na margemmais distante, alguns diretamente abaixo da cicuta onde Cinzento descansava.Pax sabia que os humanos não sentiriam o cheiro de seu amigo e que ele não searriscaria a sair dali enquanto estivessem por perto, mas mesmo assim suapelagem estava eriçada em ansiedade. Decidiu levar Cinzento para um localmais seguro naquela mesma noite.Pax correu até o outro lado das ruínas da fábrica, perto das barracas e dosveículos. Lá, uma bétula se inclinava para longe do muro de pedra.Parou de repente.Já tinha estado naquele lugar. A árvore com o tronco descascando, os muros;abaixo, o campo cheirando a cebolas selvagens, capim-rabo-de-gato e um leveodor de alcatrão — ele reconheceu tudo. Tinha estado ali com seu menino faziamuito tempo, quando ainda era filhote.Relembrou a cena. Galhos. Peter e mais três meninos apostavam corrida apartir dos muros de pedra, gritando e sacudindo galhos. Eles riam, mas Pax sesentira desconfortável com os galhos. Ele ia atrás de Peter e uivava para osoutros meninos quando se aproximavam demais, e por isso Peter o amarrouàquela árvore. Pax choramingou e passou o resto da tarde mordendo a corda.Seu menino já tinha estado ali! Pax farejou com atenção a árvore e a base domuro, mas não conseguiu encontrar vestígios do seu menino, apenas dos doentesde guerra. O cheiro dos doentes estava em toda parte, forte e ameaçador. Paxsentiu um aperto no estômago.Ele observou as barracas e, quando teve certeza de que não havia movimento,correu até a barraca de comida. Chegando lá, parou, olhou em volta de novo eentrou.Lá dentro, peças de carne pendiam acima de mesas cheias de cebolas ebatatas. Uma exuberância à disposição dele. Pax tomou impulso, deu um pulo eabocanhou um pernil, arrancou-o do gancho e saiu às pressas da barraca levandona boca o pesado prêmio.Subiu correndo a colina, por trás dos muros, e voltou a entrar no bosque denso.Chegando à beira do rio, largou o pernil no chão e comeu um pedaço daquelacarne salgada. Arrancou o osso, enterrou dois pedaços grandes na terra arenosada margem e marcou o esconderijo.Pegou o pedaço que sobrou, muito feliz pela carne e pela gordura quealimentariam Cinzento por dias, e levou até o outro lado do rio, atravessando pelotronco caído por onde havia passado. Fez uma pausa em um amontoado depedras para espiar de novo o acampamento.Os homens tinham desaparecido. Um cheiro novo, leve mas ameaçador,pairava no ar. Pax o reconheceu. Quando ele tinha um ano, o pai de Petercolocara um ventilador no quarto do menino. Pax odiou o cheiro sombrio deeletricidade que saía do fio do aparelho. Uma noite, quando o cheiro ficou aindamais perigoso, Pax mastigou o fio, como se estivesse matando uma cobra.Todos os seus instintos o mandavam fugir daquele cheiro ameaçador, mas Paxnão iria embora sem Cinzento. De repente, viu a velha raposa sair cambaleandode sob o tronco de cicuta, seguindo para o rio.Cinzento tropeçou. Na mesma hora, o cheiro de ar queimado subiu chiando dolocal como um raio vindo do solo e a margem do rio explodiu. Terra, pedra, rio egrama eclodiram em um rugido furioso, para depois caírem de volta na crateracomo uma pesada chuva preta.Pax largou o pernil e gritou para Cinzento. Um silêncio trêmulo ecoava emseus ouvidos.Os doentes de guerra saíram de trás dos muros. Pelos gritos, Pax percebeuque estavam eufóricos. Desceram o campo correndo, entraram a toda no rio e seespalharam pela margem fumegante. Depois de horas buscando alguma coisa,voltaram para o acampamento.Depois que o último dos doentes de guerra foi embora, Pax desceu correndo odesfiladeiro.O grande tronco da cicuta, arrancado da árvore, estava caído sobre o peito deCinzento. Pax cutucou o rosto sujo de terra do amigo, bateu com a pata no quadrildele. Farejou o focinho de Cinzento: estava respirando, mas parecia quase semforças.Pax se deitou ao lado do amigo, o corpo colado, para lhe fazer companhia.Era só o que podia oferecer, embora nada mais tivesse sido pedido.Conectado com as lembranças finais da velha raposa, ele ouviu a música deuma ave ártica em vez dos gritos dos humanos. Em vez da névoa de cinzas quepairava sobre eles, viu uma vasta abóbada azul de céu. Em vez de sentir o soloáspero em que estavam deitados, rolou com Cinzento e seus irmãos filhotes poruma tundra coberta de neve e salpicada de flores azuis como estrelas na noite.Ronronou com Cinzento debaixo da língua áspera da mãe prateada, sentiu o gostodo leite quente e o peso do queixo dela sobre seu crânio de recém-nascido. Porfim, a paz.A velha raposa ficou imóvel.Pax se levantou. Encostou a testa no focinho do amigo. Recuou e uivou, semse importar se os doentes de guerra ouviriam. E se afastou correndo.Dessa vez, não houve alegria no correr, mas alívio por seu corpo trabalharpara ele. Correu e correu para o norte durante o crepúsculo, para o norte durantea noite.Quando a manhã despontou, estava entrando no território do desafiador, mascontinuou correndo. A raposa castanha partiu para enfrentá-lo, mas recuou aover a determinação no movimento de Pax, e o deixou passar. Pax galopoupenhasco abaixo, atravessou o fundo do vale e pegou a longa subida que levava àcampina. Na metade do caminho, parou e ergueu a cabeça.Três raposas o viram se aproximar. Eram familiares para ele agora: acompanheira de Cinzento, ainda com a barriga inchada de filhotes, e Miúdo, queera metade do tamanho dela.A terceira, Arrepiada, não estava perto das outras duas. O pelo brilhoso delareluzia na base do pinheiro muito alto que se erguia na campina, onde sua irmãhavia morrido.O cheiro da morte de Cinzento estava no pelo de Pax, mas as raposas jásabiam.Pax foi andando o restante do caminho. Quando chegou à toca de Cinzento,ergueu a cabeça e uivou notas de dor. As três raposas fizeram o mesmo emresposta.A companheira de Cinzento se aproximou, farejou o focinho e o quadril dePax. Os odores contaram a ela da luta, explicaram que não tinha sido o motivo damorte e narraram a explosão produzida pelos humanos, este, sim, o motivo damorte. Contaram também que Pax o protegera, que o alimentara, limpara osferimentos, e ela ficou grata por isso. Por fim, contaram a informação queCinzento tinha conseguido por um preço alto demais.Não é seguro para nós no sul?Não é seguro.Ela se afastou, a barriga balançando de leve.Com a mensagem entregue, Pax se deixou cair na grama, exausto. Miúdologo foi se instalar ao lado dele, e Pax aceitou de bom grado o carinho. Arrepiadaacompanhava tudo de longe, embaixo do pinheiro.Pax dormiu um sono agitado durante a tarde, atormentado por pesadelos em queseu menino estava preso por fios que soltavam fumaça. Quando a lua subiu nocéu azul-escuro, ele enfim se levantou.Inspirou os aromas das raposas, unidas pela dor de perder o núcleo grisalho dogrupo. Ligado a elas pela mesma dor, Pax sabia que, se decidisse ficar ali novale, seria bem-vindo, mas seus sonhos insistiam em que voltasse aoacampamento dos doentes de guerra.Quando estava prestes a partir, sentiu Arrepiada descendo a colina. Esperou.Aonde você está indo?Pax repassou a ela a informação de que terra explodindo era guerra e que fioscausavam morte. Expressou o medo de que seu menino passasse por fios comoaqueles se fosse ao encontro do pai; expressou a determinação de protegê-lo.Essas explosões matam humanos também?Sim.Ela deu uma corridinha, ficando de frente para ele.Deixe isso, então.Pax a ignorou. Preparou-se e saltou. Já corria quando pousou no chão.


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