VIII | Um par

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Logo era possível enxergar os portões de puro aço — a cidade das minas de metal: Polus, segundo Sir Rictherd, que lhe descrevia um pouco da cidade, após Selena questionar como ela era. O sol ainda estava no céu, embora sua luz começava a se tornar oblíqua entre as nuvens.

Segundo grande centro comercial de Opaali, era somente vencida pela capital do reino, Linsgard. Ao norte e oeste se concentravam as famílias mais ricas da cidade, herdeiros de senhores de terras dentro do Ducado de Alliand, condes e condessas que tratavam de negociações de suas mercadorias. Aliás, esse era o nome a qual Polus agora pertencia, Elford Alliand. A história por trás da ascensão do homem e queda dos Cavaerley foi justamente silenciada quando chegaram em frente aos portões da cidade. Tão grandes eram que podiam medir nove metros de altura.

Nas torres que flanqueavam os portões, sentinelas apontaram suas bestas. Eram tantos que tinha duas bestas para cada cabeça no grupo. E os cavalos rapidamente sentiram a tensão crescente; o de Sir Ritcherd relinchou e se recusou a avançar, o que faziam os demais.

— Calma, amigão... — disse ele, acariciando a crina do seu cabardino.

Os equinos cessaram a marcha junto ao de Sir Auryn, a poucos metros do portão. Sir Rictherd se aproximou logo depois.

— Apresentem-se — disse uma das sentinelas na torre.

— Tá de brincadeira? — inquiriu Sir Wyller, num tom irônico. — Somos cavaleiros da cidade. — Indicava o brasão de raposa no peitoral da armadura.

— Apresentem-se! — A sentinela mirou a besta na cabeça do cavaleiro, que ergueu as mãos em rendição.

Sir Auryn tirou o elmo que vestira no meio do caminho e à queda de suas cascatas douradas, as sentinelas baixaram a guarda. Selena não evitou que suas sobrancelhas se arqueassem para os homens, embora admitisse que cabelos loiros eram lindos e era um dos seus sonhos de infância ter madeixas semelhantes.

— Sir Auryn Scarth — iniciou ela — e sua lança de cavaleiros: Sir Rictherd Gallavhar, Sir Wyller Harrimond, Sir Vanirya Lacertae, Sir Beorren Cavaerley. Esses são Christopher Corwenn, pajem do Lorde Elford Alliand e...

— Lynn Cavaerley — interviu Sir Beorren quando a cavaleira iria pronunciar o nome de Selena. Havia estado quieto desde que revelara ser o Cavaerley que ela procurava e sua voz soara grave ao enunciar as palavras.

Apesar disso, tanto Selena quanto os outros olharam da chefe da lança para o cavaleiro velhote sem entender. Selena muito mais. Quem era Lynn Cavaerley? Cogitou em, de fato, questioná-lo,  mas da forma como ele agia, parecia ignorar sua presença o máximo possível. Não sabia o que havia feito para ser digna do seu desprezo, mas a questão logo se esvaiu quando foi atraída a sua atenção para o ranger dos portões ao foram abertos. Além, uma grande e movimentada cidade se preparava para o início da noite, que se daria em breve.

Selena segurava firme na cela, e percebeu que havia um incômodo vindo da cavaleira à frente. E logo entendeu por que, ainda quando marchavam rua à frente.

— Por que não permitiu que eu dissesse o nome de Selena? — perguntou Sir Auryn ao cavaleiro ao lado.

Sem virar o rosto, mas aproximando o seu equino das duas, respondeu:

— Ela é filha do inimigo morto dos Alliand. Todos se lembram bem o que aconteceu há oito anéis atrás. — E parou, fazendo um gesto para que todos estivessem atentos. — Ninguém ouviu ela falar que André é o pai dela. Para vocês, ela é apenas uma garota que encontramos na floresta e que tem um sobrenome estranho. André Cavaerley não existe mais, assim como minha família não passa de uma era que já se foi. Se eu souber pela boca de alguém quem é o pai dela, é capaz do Lorde Alliand matar também a mim e a meus netos.

Matar. Cavaerley. Uma era que já se foi. Divagar sobre o que havia acontecido aos Cavaerley parecia mexer em uma caixa de pandora, e Selena começava a se questionar se gostaria de saber a possível chacina que acometera aos Cavaerley.

— Além do mais — continuou o cavaleiro —, soube pelo próprio lorde a autorização da morte de qualquer desconhecido que passar pelos portões.

Ele não olhou para Selena em nenhum momento, embora o que dissesse a seguir fosse para que todos ouvissem a seu respeito.

— Não quero que associem meu nome ao dela também. O grupo — usou o indicador para desenhar um círculo no ar — encontrou ela perdida na floresta. — Seu olhar parou em um ponto próximo aos pés de Selena. — Você não me conhece. Não a quero andando comigo. Ande sempre com Christopher — apontou para ele, no cavalo do outro lado de Selena —, inventem uma história para serem amigos, pois quero ter ciência de que não fará nenhuma besteira na cidade.

Todos os cavaleiros assentiram.

Selena levou o olhar ao jovem rapaz. E apesar de ele ter o sentido, não devolveu, mesmo quando olhava para Sir Beorren. Ele assentiu, apenas aceitando o dever.

Sir Rictherd perguntou, porém:

— Senhor, então o que falaremos ao Lorde Alliand quando levarmos até ele uma pessoa que não é da cidade?

Sir Auryn o olhou como se pensasse "boa pergunta."

— Ela sobreviveu a um ataque dos tenebraes. Até o Rei Nero iria querer interrogá-la. — E prosseguiu a marcha com seu cavalo.

— E ela está proibida de cometer alguma besteira?! — soltou Sir Ritcherd com um tom irônico. — Sobreviver a um ataque tenebrae já atrai atenção suficiente dos deuses.
Sir Beorren o olhou sério.

— Que seja por razão aleatória que uma tal garota sobreviveu ao ataque e não por sua verdadeira origem.

Estava evidente que Sir Beorren era bastante respeitado entre eles, arriscaria dizer que até a líder da lança prezava por seu conhecimento. Não era para menos, visto que, de todos, era o mais velho.

— Mantenha o rosto abaixado — disse Sir Auryn. — Evite os olhares dos alvurianos.

— Por quê? — Queria conhecer a cidade que um dia seu pai morou.

— Faça o que digo — encerrou o assunto.

Não havia chance alguma de olhar para o que a rodeava. Uma hora ou outra captava conversas dos residentes, nada muito interessante, mas que pareciam estar preocupados com um tal evento chamado Juramento de Aço e Sangue. As pessoas nem os notavam enquanto passavam por elas. As vestes eram antiquadas, porém manteriam quem a vestisse aquecido o suficiente para um inverno como o que assolava Opaali, sendo abaixo de zero. A maioria usava botas de couro de algum bicho.

Após alguns minutos de cabeça abaixada, não se conteve e se pôs a olhar tudo o que havia na cidade. As casas eram simples, feitas de madeira, contudo, algumas delas, talvez a maioria, possuíam chaminés. No céu, a fumaça se unia aos sopros de ar frio. Havia também pontos com fogueiras nas ruas, cercadas por grandes grupos de pessoas próximas a estas. O comércio era bem movimentado. Passavam por uma rua lotada de barracas improvisadas que vendiam das mais diversas coisas, desde tecidos de pele de animal a potes de vidro com bonecas vivas dentro. Bonecas vivas?

— O que são aquelas coisas? — perguntou se referindo aos potes.

— Fadas — respondeu Sir Auryn, indiferente.

É claro! Mas nunca as havia visto daquele modo. As pequenas mulheres do tamanho de uma boneca de silicone possuíam mesmo asas e seus rostos, ao contrário do esperado, transmitiam infelicidade. Isso é repugnante! E o pior era que ninguém fazia nada para impedir esse comércio esdrúxulo.

Na barraca ao lado, havia vários ovos que se assemelhavam a pedras do tamanho do crânio de um recém-nascido.

— Daughrares! — anunciou o vendedor. — Daughrares importados de Daqar!

— O que é daughrar?

— Ovos de dragã.... Já disse para abaixar a cabeça!

Frustrada, franziu o cenho com a cabeça abaixada, olhando para as próprias mãos e tentando torná-las as coisas mais interessantes do mundo para fugir do tédio.

Não durou muito, e agradeceu por isso, quando o cavalo estancou sua marcha e, só então, sentiu-se livre para erguer o rosto. Havia um odor nada agradável de excremento exalando no ar, o que a fez tampar o nariz de tão forte e horrível que era estar ali. O chão estava coberto de palha e terra, livre da neve, porém, ainda assim, frio. Notou que o lugar era um estábulo e estava completamente cheio de cavalos, todos eles presos nas suas baias. O local era tão grande que virava ao fim, no formato de um U. Christopher conduziu os cavalos para as baias desocupadas enquanto os outros cavaleiros seguiram para a entrada; Sir Auryn fez um sinal para que Selena os seguisse.

— Venha.

Não lhe foi permitido erguer o olhar em nenhum milésimo de segundo. A mão da cavaleira em seu ombro determinava em que direção devia seguir, passo após passo na neve, até que alcançaram um portão de ferro que guiava a uma escadaria. Ao término, encontraram uma porta de madeira aberta pelo guarda. Era um curto túnel que levava a um corredor. Somente então lhe foi permitido tirar o capuz de seu rosto, vendo, portanto, que estava em um castelo. Soturno e dramático.

Foi levada ao lugar que antes havia sido a sala do trono do reino. Soube disso por Sir Ritcherd, que lhe informava cada detalhe do local. Ali agora era uma grande sala de reunião, as mais importantes. Sentado à mesa, na cadeira principal, estava Lorde Alliand.

— A que devo a presença da lança de Sir Auryn, da Casa Scarth?

Ergueu os olhos, parando no rosto desconhecido de Selena. Tinha a aparência de alguém cansado; as suaves rugas indicavam aquilo, além de evidenciar o início da meia idade. Apesar da pouca iluminação do lugar, podia ver que sua pele era rósea e cheia de sardas. Diferente da maioria dos habitantes de Opaali, seu cabelo ruivo se limitava a curtos fios mal cortados. Seus olhos castanhos, quase mel, sondavam-na profundamente, como se estivessem procurando em seu catálogo pessoal alguma face conhecida. Quando não encontrou resultado, abriu a boca para falar, mas Sir Auryn tomou a frente.

— Sim, meu lorde, ela não é daqui da cidade. É uma menina que a lança encontrou perdida na floresta. Trouxemos ela ao senhor a fim de pedir permissão para que more em Polus.

— Sir Auryn... — começou.

A cavaleira ergueu o indicador, interrompendo-o.

Sir Rictherd, assim como os outros cavaleiros, e até mesmo Selena, olharam para ela com incredulidade. Até onde Selena sabia, ele era o lorde e, portanto, quem determinava quando iniciava e se encerrava o assunto ali.

Sir Auryn nem se incomodou.

— Sei de sua ordem, Lorde Alliand, mas ela sobreviveu a um ataque tenebrae.

Novamente, o olhar do lorde caiu sobre ela, dessa vez, interessado em saber mais.

— Perdão — Arqueou acentuadamente as sobrancelhas ruivas. — Pode me explicar?

Repetiu a história, e como da outra vez, começou a partir do momento em que acordara na beira do rio até o ataque dos seres cinzentos. Sir Beorren nem ao menos pigarreou em protesto à sua alegação.

— Um deles surgiu bem na minha frente e disse que eu era...

— A refeição da vez — interrompeu Christopher, fingindo falta de interesse. — E então apareci, junto com os demais, após ouvirmos um barulho de movimentação na floresta. Sir Beorren havia determinado que devíamos cumprir a patrulha naquela noite e quando encontramos o tenebrae e ela, fui rápido em traspassar a espada naquele bicho asqueroso.

Os olhos mel do lorde a sondavam enquanto ouvia seu pajem continuar o discurso, com pequenas mentiras determinadas por Sir Beorren.

— Ela permaneceu duas semanas inconsciente, Milorde. — Sir Auryn deu um passo à frente. Dessa parte não sabia. — Os três primeiros dias foram cheios. Sir Vanirya e Christopher tinham que ficar dia e noite vigiando para que em uma de suas convulsões, Selena não batesse a cabeça e se ferisse.

Como é que é?! Não se segurou, olhando para a líder da lança.

— Eu realmente não acreditei na recuperação da menina. Nem eu e mais ninguém. Mas foi Sir Beorren quem nos convenceu a esperar.

Sir Beorren tornou vagarosamente a atenção para a cavaleira, querendo que olhasse em seus olhos e encontrasse a repreensão que seu semblante mostrava. Ela, porém, continuou:

— Os onze dias que se seguiram, ela pareceu estar dormindo. E aqui está.

Lorde Elford Alliand levou um tempo para considerar todas as informações. Levou a mão à pena deixada no tinteiro e escreveu algo em um rascunho. Ele observou o que havia escrito e, devolvendo a pena à tinta, enrolou o rascunho e chamou com um aceno um cavaleiro à porta. Selena não havia notado a presença dele e de outro, também no portal. Sem nenhuma palavra, o cavaleiro pareceu entender o gesto e caminhou a passos ruidosos porta a fora.

Por fim, o Lorde Alliand proferiu:

— Qual é a sua idade?

— Treze.

Ergueu os olhos ao cavaleiro logo atrás.

— Sir Beorren, tenho minha confiança apoiada em você. Sei o homem que é. Essa menina precisa ser observada. Sobreviveu a um ataque tenebrae, aparentemente, sem nenhuma sequela. Quero que a treine na Clareira Luminosa aqui perto da cidade junto com meus filhos. Eles serão úteis para combater um ataque se chegarem aqui. E se ela foi a única que resistiu a eles, então será a única capaz de detê-los.

Viu os planos de Sir Beorren de se livrar de Selena ruírem em sua face enrugada. O cavaleiro assentiu, abrindo um sorriso que não alcançou seus olhos.

— Sim, Milorde.

— E quanto ao que direi aos meus vassalos sobre ela será de que ela é uma menina da rua que havia ido caçar e teve um infeliz encontro com os tenebraes. Vocês encontraram-na e o resto já sabem: trouxeram-na apenas de volta. — Gesticulava com as mãos. — A ordem que mais ninguém entre foi clara e não quero que pensem que me dou ao luxo de abrir exceções.

O lorde se recostou na cadeira em que estava e a aproximou de volta à mesa, voltando à leitura de algum livro, completando, talvez para o desespero de Selena:

— Quero que ela esteja presente no dia do Juramento de Aço e Sangue. Entendido, Sir?
Juramento. Aço. Sangue. Não gostava das três palavras juntas, soava como alguma sentença de morte.

— Sim, Milorde — enunciou Sir Beorren, porém.

O nariz pontudo e rosado, como o de uma raposa, do lorde franziu por um instante ao olhar para ela.

— Seu nome?

— Selena Carter.

Princesa de Gelo: O Legado da Aurora [Vol 1]Where stories live. Discover now