III

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      Era estranho estar nos fundos da loja com um completo estranho, ainda mais quando não tenho permissão para trazer pessoas para além do balcão da loja, o senhor Foster enlouqueceria se soubesse.

      Depois de toda aquela cena no beco, percebi que tinha machucado meu braço, um simples arranhão que só estava ardendo, mas o garoto encapuzado decidiu que aquilo foi por sua conta e quis de alguma forma ajudar.

      — Então, — Início, olhando seu cuidado ao usar o anti-inflamatório no meu braço com o algodão — por que o Hopey tem medo de você? Por acaso é algum tipo de serial killer? — Brinco.

      — Acha que sou um? — Sinto vontade de puxar o seu capuz para trás, quase não consigo ver o rosto dele por conta desse tecido preto.

      — Tem o perfil de um. — Dou de ombros — Mas eu diria que no máximo é solitário, como eu.

      Por um momento ele para o que está fazendo e levanta a cabeça para olhar para mim, seus olhos estão com olheiras profundas e sinto um arrepio quando ele me encara.

      Se eu não ficasse do mesmo jeito toda vez que tenho uma das minhas crises depressivas, diria que ele realmente é um serial killer. Estou bem acostumada com olheiras profundas, falta de apetite e pensamentos suicidas, na verdade nesse ano esses pensamentos se tornaram mais acolhedores que nunca. De alguma forma, desde de quando me tornei adolescente, a escuridão me atrai.

      — Não gosta de conversar? — Por mais que ele diga não, nunca tenho ninguém para conversar aqui, então tenho que aproveitar essa raridade.

      — Você não é como eu, ninguém é.

      Seus olhos não estão mais vidrados em mim e quando percebo meu braço já está enfaixado, de uma forma perfeita eu diria, ele se esgueira até a porta na intensão de embora, creio eu. Mas então ele para e sem virar na minha direção, diz:

      — Fica longe daquele cara, ele é um idiota. — E antes que eu agradeça, ele vai embora me fazendo ouvir o sininho da loja soar.

      Eu costumava pensar como ele, não há ninguém como eu, sentindo a mesma dor que eu, vivenciando algo como o que eu vivenciei. Mas então por um segundo eu parei e decidi não olhar só para o meu nariz, olhar para o que vai além disso, pessoas estão sofrendo, pessoas estão com tanta merda acumulada na cabeça e tem medo de literalmente ficar loucas, como eu. Quando finalmente entendi isso, a frase "Você não está sozinho" fez tanto sentindo para mim.

      Trabalhei o resto da tarde e fechei o caixa como de costume, a loja nunca tem muito movimento se não for em datas comemorativas, então acho que logo logo o senhor Foster vai fechar seu pequeno negócio e eu ficarei totalmente fodida. Sem emprego como vou pagar as contas? Sem família, sem amigos adultos, sem herança e até mesmo sem planos para a faculdade.

      Olho para uma bala de limão no balcão e não penso duas vezes, abro e a coloco para dentro da boca, o que me faz refletir, se até uma bala de limão pode ficar doce de alguma forma, por que a minha vida não? É tudo questão de ponto de vista.

      A noite parece um presente hoje, as estrelas estão todas lá como se acenassem para mim. A visão da praça sempre foi a melhor para contar ou simplesmente se deslumbrar com as estrelas, eu costumava ir com a minha mãe e sempre aprendia algo novo sobre astronomia, ela era amante de tudo que causava curiosidade, então acho que o gene foi contagioso.

      Antes de ir para casa decidi passar na loja de conveniência da esquina e comer algo, esqueci de fazer compras pra casa de novo e mesmo se lembrasse a mensalidade da escola vai vencer e tenho que paga-la, senão terei que sair antes que o ano acabe e estarei prejudicada. O macarrão instantâneo de sempre me parece um bom negócio para hoje, amanhã posso almoçar na escola e a noite não preciso comer nada, preciso ficar em forma para os ensaios de balé, a senhora Trimaine precisa ver que estou me esforçando para alcançar coisas novas.

      Sentada no balcão da loja de conveniência comendo meu macarrão, tenho a estranha sensação de que depois de hoje, Josh Hopey nunca mais me deixará em paz. As vezes me pergunto o que eu tinha na cabeça na infância, como eu pude gostar de um completo idiota com complexo de valentão? Ah, eu sei. Eu não gostava dele por ser bonito ou atlético, eu pensava que ele era como eu. Ele sempre pareceu o cara certinho e todo engomadinho, não é para menos, o pai dele é o prefeito da cidade e ele precisa manter uma certa imagem. Quando éramos crianças todos tinham implicância comigo por eu não ter um pai, eu nunca conheci o meu pai e nunca senti que precisava, mas sempre que as crianças eram más comigo, eu sentia raiva por não ter um. E como um herói com sua armadura, Hopey brigou com todos os garotos da nossa sala no quarto ano, ele usou os punhos e apostou com os garotos. A regra era, se ele ganhasse a briga, a tal criança que perdeu deveria pedir desculpas e nunca mais encher a porra do saco de uma garotinha de nove anos que não tinha a merda de um pai pra defende-la. E por incrível que pareça para aquela época, Josh Hopey apanhou como nunca mas fez questão de não perder nenhuma das brigas.

      O caminho de volta para casa parece longo demais, fechar a loja antes das sete foi a melhor decisão que o senhor Foster já tomou, eu moro longe da loja então caminhar por mais de meia hora já é tortura o bastante para mim, adoraria que isso fosse o mais difícil, mas ter que atravessar a ponte Banpo todos os dias era sem dúvidas o mais desagradável, sempre me fazia lembrar o quão fraca eu sou, pois um dia eu me atirei na água quando decidi pular da ponte e morrer.

      Era um fim de noite frio e pouco movimentado, apesar de alguns carros passarem, ninguém se importou com a garota que subiu nos ferros laterais da ponte e se atirou na água. Lembro de pensar várias vezes se aquilo era realmente o que eu queria, e naquele momento era. Depois que perdi minha mãe e minha tia os problemas só aumentaram, contas para pagar, mais de três empregos por semana para conseguir sobreviver, bullying escolar, críticas por toda a cidade por ser uma adolescente sozinha, eu quase fui parar em orfanato, mas como antes de cometer suicídio minha tia assinou minha emancipação, eu pude escolher entre ir para um orfanato ou viver por conta própria. Eu não queria dar trabalho para ninguém, então decidi viver por conta própria, mas oa pensamentos na minha cabeça só aumentaram, a falta de ar se fez cada vez mais presente e o medo de estar viva mais ainda.

      Eu nunca entendi por que eu tinha tanto medo de viver, medo das pessoas, medo de me aventurar, medo de me apaixonar, medo de viajar com os poucos amigos que eu tinha, além disso, também nunca entendi o medo que eu tinha de morrer, medo de ser atingida por um tiro, medo de ser atropelada, medo de deixar algo precioso para trás, medo da vida acabar ali para sempre. Sempre foi uma via de dupla que me levavam ao mesmo destino, o medo.

      Na noite do meu suicídio algo deu errado, logo quando pulei na água, senti tudo gelar, inclusive o meu cérebro, eu perdi a consciência com uma facilidade enorme, mas na manhã seguinte eu estava no hospital, viva, sem ter feito nenhum esforço para sair da água.

      As crises de ansiedade ficaram mais fortes, mas eu também fiquei, depois de ver Betty aos prantos quando acordei, foi aí que percebi que ela realmente se importava comigo, percebi que eu tinha alguém e o quanto doeria para minha melhor amiga me perder. Assim como doeu em mim perder minha mãe e minha tia. Então por isso, tive uma motivação para viver e todos os dias me esforço para encontrar mais motivos para querer estar aqui, tomo meus remédios para acalmar os nervos e me sentir "protegida" contra a palavra com D que não consigo pronunciar.

 Swan Lake ✦ KTHWhere stories live. Discover now