Animais marítimos e os lobos

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A vida pode ser estranha, muitas vezes. Ela nos prega peças e nos confunde até explodirmos, seja em crises de raiva ou em surtos de choro repentino, mas parando para pensar, a vida não parece tão complicada...
Bom... Eu definitivamente não pedi pela morte do meu avô, nunca entendi a rejeição do meu pai e nem nunca imaginei como familiares podiam ser de certa forma, infelizes desnecessários em nossas vidas. Mas eu superei, durante um ano tive medo de tudo, passei pelos cinco estágios do luto até chegar a aceitação que tanto me doeu. Nenhuma lágrima traria ninguém que eu perdi de volta e eu simplesmente aceitei isso.
Depois que terminei de arrumar minuciosamente minhas malas, fotos e apetrechos espalhados pelo quarto, eu precisei engolir todo meu medo e caminhar para fora de casa, rumo ao carro, onde minha mãe me esperava, mas antes, olhei para a jaqueta colocada sobre a cama. A sensação de saudade de uma época falsa invadiu minha cabeça e senti um aperto no peito que fiz questão de afastar, afinal, eu não podia fraquejar agora.
Passei a mão pelo meu pescoço a procura de algo que a tempos não via, peguei a jaqueta depositada na cama e vesti, levando as últimas malas para baixo. Olhei cada detalhe daquela casa onde vivi toda minha vida, memorizando até mesmo as rachaduras, caso sentisse saudades.
Graças a depressão eu havia ficado um pouco mais esquelética do que eu realmente queria, eu havia perdido 6 quilos em poucas semanas, justamente pelo fato de não me alimentar, o que fez minha mãe quase surtar e por recomendação da psicóloga, eu comecei a frequentar uma academia e buscar comer, sempre que eu conseguisse e isso era uma boa distração.
Entrei no carro e olhei por mais alguns segundos a casa que eu costumava chamar de lar. Eu estava indo para uma nova cidade, viver em um dormitório e talvez fazer novos amigos.
Durante o caminho até L.A, mamãe falava coisas aleatórias, enquanto a música que tocava no rádio, pairava sobre o ambiente, se tornando parte da paisagem que passava pela janela, me deixando com a velha sensação de nostalgia no peito.
Enquanto eu olhava atentamente as árvores passarem pela janela, eu sabia que não estava sozinha, eu tinha minha mãe e em algum lugar, eu sabia que o velho Henrik me observava atentamente.
Por um pequeno instante, senti meu coração aquecer, pelo orgulho de mim mesma. Eu só precisava reiniciar minha vida e acreditar que tudo iria acabar bem, o que não era tão fácil, já que uma parte de mim gritava que ninguém era confiável e que eu não deveria me permitir me aproximar ou me importar com ninguém.
Horas mais tarde, estávamos no tão sonhado campus da universidade da Califórnia. Sai do carro com agilidade, os pátios não estavam tão cheios como eu imaginava, já que estava atrasada duas semanas.
Mamãe retira as malas do carro, deixando a beira da calçada.
-Esse lugar é incrível!-Ela afirmou, olhando para o imenso prédio, enquanto concordo com sua fala, exibindo um sorriso esplêndido.
-Vamos?-Pergunto, brevemente. Eu nem tive tempo de pensar direito, quando percebi, já estava a caminho do meu dormitório.
Os prédios da faculdade eram bem distribuídos, sendo assim, os dormitórios ficavam numa ala diferente das salas de aula e as mesmas, eram afastadas do refeitório. O prédio antigo fazia jus a sua história e entrava em perfeito contraste com a decoração moderna e novas construções que ganhou com o tempo.
Parei em frente a porta do meu quarto e olhei para mamãe que com um acenar de cabeça positivo, me incentivou a adentrar o cômodo.
Respirei fundo e entrei no quarto, com certa pressa, tendo em primeira vista, uma jovem de longos cabelos negros, em cima de uma cadeira, tentando colocar uma cortina na janela, enquanto uma música da Lana Del Rey tocava ao fundo.
A jovem de corpo alto e esbelto se virou ao ouvir o suave barulho da porta se abrindo e logo soltou um breve suspiro, ao me ver.-Oi!-Ela disse, um tanto sem graça, enquanto se equilibrava na ponta dos pés e segurava a enorme cortina em um belo tom de bege claro.-Você deve ser minha nova colega de quarto...-Sua voz soou animada, enquanto passava brevemente, suas belas orbes cor de mel, por onde minhas malas estavam.
A jovem de pele clara e cabelos perfeitamente lisos permaneceu sorridente, enquanto pendurava a cortina de forma desajeitada e logo, pulava da cadeira.
-Muito prazer!-Ela estendeu a mão para mim e tratei logo de pegá-la, complementando o cumprimento.
-Bom... Acho que você já está entregue.-Mamãe falou, com um lindo sorriso nos lábios. Eu a abracei forte e ela se retirou do quarto, sem demora.
-Quantas malas...-Minha nova colega sussurrou.
-É... Eu acho que exagerei um pouco.-Disse, um tanto envergonhada.
A moça a minha frente riu, de forma gostosa e espontânea.
-Não se preocupe com isso... Eu não te julgo!-Ela disse, me ajudando a puxar as malas para o interior do quarto.-Aliás... Eu sou Samantha, mas pode me chamar de Sam!
-Eu sou Alice!-Eu disse, sorridente. Talvez eu devesse mesmo dar uma chance para as pessoas ao meu redor, eu devia ter esperança de que existiam pessoas boas e confiar mais. Afinal, a faculdade não era lugar de crianças hostis, como era no colegial. Eu poderia ser positiva e não me sentir mal ali, pois eu finalmente poderia encontrar amigos para a vida toda, como as pessoas falam que acontece no período da faculdade.
-Qual curso vai fazer, Alice?-Ela perguntou, delicadamente, sentando-se em minha cama, que ainda estava com lençóis padrões dos dormitórios, o que eu faria questão de mudar.
-Psicologia!-Eu disse, exibindo um sorriso alegre e simpático, enquanto puxava uma das malas para cima da cama.-E você?
-Também!-Ela disse, soltando um sorriso esplêndido.
-Legal!-Eu disse, sorridente, enquanto fazia pilhas, com as roupas já dobradas, tiradas de minha mala.
Em pouco tempo, com a ajuda de Sam, minhas roupas já estavam guardadas no armário.
-Quer dar uma volta pelo campus e conhecer melhor os prédios?-Sam perguntou e eu rapidamente a respondi com um aceno de concordância, com a cabeça.
-Vamos, então!-Samantha tinha uma alegria contagiante e um sorriso simpático, que oferecia conforto e segurança. Ela me arrastou para fora do quarto e rapidamente começamos a andar pelos longos corredores, até que saímos do prédio dos dormitórios e começamos a andar pelo extenso campus, logo adentrando um outro enorme prédio, onde ficavam as salas de aula.
Eu olhava ao redor atentamente prestando atenção à cada detalhe das estruturas do edifício, que parecia ser sinônimo de paz, o que mudou rapidamente, quando passamos por um dos corredores mais movimentados e pude ver pessoas agindo com mais hostilidade do que no colegial, o que eu achara ser impossível. Aquela situação me incomodava e causava angústia, mas eu poderia manter a esperança mesmo assim, pois já tinha sobrevivido a pessoas como aquelas sozinha, não tinha porquê temê-las agora.
-Já sabe onde é seu armário?- Samantha perguntou, enquanto andávamos pelo corredor.
-Ainda não.-Falei, mordendo sutilmente, meu lábio inferior.-Nem tinha pensado nisso...
-Então, nosso primeiro destino é a sala da direção!-Ela disse, animada e eu concordei, com a cabeça, a seguindo.
O espaço onde a coordenação ficava era e um corredor afastado das salas.
A secretária posicionada estrategicamente na frente da porta do diretor passava um ar sério, em meio a decoração simples composta por um balcão de madeira repleto de papéis, que ao meu ver eram todos confusos.
-Samantha, quem é sua nova amiga?-A senhora atrás do balcão nos encarou com curiosidade, arrancando um riso fraco de Samantha.
-Esta é Alice!-Sam disse, em um tom confiante, enquanto se apoiava no balcão.-Ela precisa do número do armário e horários de aulas...
A senhora soltou um breve sorriso singelo, em resposta à fala de Samantha.-Qual é o seu sobrenome, querida?
-Hale!-Eu falei, simplesmente e então permaneci em silêncio, vendo as mãos da senhora ficarem trêmulas, enquanto ela tentava digitar algumas palavras. Logo, pude ouvir o breve barulho da impressora, soltando o papel já repleto de letras e números.
A senhora à minha frente parecia ter feito tudo no modo automático, mas assim que pegou a folha em suas mãos para revisar, à soltou sobre a mesa, enquanto seu olhar se tornara questionativo. Ela coçou a garganta com uma breve tosse e então tornou seu olhar sobre mim.-V-você disse... Hale?
-Sim...-Eu falei calmamente, enquanto via o olhar da senhora a minha frente se tornar um tanto emotivo.
-Eu tinha um amigo com esse mesmo sobrenome na época em que estudava aqui...-A senhora de cabelos grisalhos e voz calma, falou.
-Senta que lá vem história!-Samantha falou, em um tom animado, puxando uma cadeira para se sentar. Ela parecia acostumada com aquela situação.
Eu não estava exatamente interessada em saber sobre o tal amigo que ela tivera. Hale era um sobrenome comum, que carregava muitas lembranças dolorosas e tinha um histórico não muito bonito, com exceção de meu avô, é claro.
-O nome dele era Henrik!-A senhora falou, enquanto soltava um longo suspiro. O nome dito por ela me chamou atenção, por motivos óbvios.
Eu tomei um longo suspiro e tentei controlar as lágrimas relutantes em meus olhos.-Henrik?-Eu perguntei, tinha que questionar. Não poderia ser uma coincidência...
-Isso mesmo, querida...-Ela disse com um sorriso delicado, no rosto.-Herink, Helena e eu éramos muito próximos... Então, ele e Helena se casaram, foi tudo tão lindo, simples e perfeito. Eles começaram a ter filhos, crianças lindas, mas o menino...-Ela soltou um breve suspiro, seguido de uma risada. -Difícil de lidar.-A senhora abaixou a cabeça, parecia pensativa e então, pude ver uma delicada lágrima traçar caminho pelo seu rosto.-Enfim... Nos afastamos.
Samantha se levantou e andou até a doce senhora e a abraçou, com carinho, enquanto afagava seus cabelos.-Você está bem, Alice?-Sam perguntou, ao ver meu estado basicamente, catatônico. Eu já não podia conter as lágrimas.
Aquilo era novo para mim, saber que meus avós estudaram naquele local, andaram pelos mesmos corredores que eu, fizeram amigos, criaram memórias. Era difícil pensar naquilo sem querer chorar de saudade e emoção.
-E-estou bem...-Eu disse, sorrindo brevemente. Agora conseguia associar histórias que meu avô me contava sobre sua época na faculdade, sobre sua velha amiga Suzana, a qual sentia tanta falta.
Eu soltei um longo suspiro, com a imagem doce e divertida de meu avô, passando por minha mente. Andei até a senhora que já havia se libertado dos braços cuidadosos de Sam e encarei suas belas orbes esverdeadas, com atenção.-Ele me falou muito de você... Lembro de me dizer que sentia tanto a sua falta.-Eu comecei a falar.-Até tentamos lhe encontrar, certa vez, mas como sabe, não conseguimos...
Podia sentir o olhar espantado de Samantha sendo destinado a mim.
-Sabe onde eles estão?-A senhora me perguntou, exibindo um sorriso esperançoso.
-Bom... Minha avó foi enterrada, como meu pai determinou.-Eu falei, com o maior cuidado.-E meu avô...-Eu precisava de algumas pausas na fala, para me recompor.-Bom... Joguei as cinzas dele no rio, próximo à cabana dele.
-Estão mortos?-Ela perguntou, mas a resposta era óbvia, então, ela conteu para si mesma, enquanto as lágrimas escorriam pelo seu rosto.-Bom... Seu pai deve ter ficado bravo.-Ela falou, sorrindo brevemente, tentando mudar o assunto.
-É... Ainda mais por quê Travis e eu roubamos o corpo e mandamos cremar em segredo.-Eu disse, simplesmente. Era estranho como Travis havia me acostumado com coisas como aquela.
-Travis é seu irmão?-Suzana questionou, curiosa.
-N-não.-Eu falei, calmamente.-Não tenho irmãos... Só tenho uma irmã, chamada Savannah.
Ela sorriu brevemente ao ouvir minha fala.-Mas e como estão as crianças?Digo, os filhos de Rik e Lena-Ela perguntou, se auto corrigindo. Era tão fofo ouvir a forma como os chamava, os apelidos que haviam dado uns aos outros. Lembrava-me de meu avô chamá-la de Suzie em algumas de suas histórias... Aliás, meu nome quase fora Suzana, por conta dela, mas meu pai interviu.
-Estão bem... Minha tia, Amélia, virou uma arquiteta de sucesso e mora em Cuba.-Eu falei e pude ver os olhos de Suzana brilharem. Ela parecia tão orgulhosa, como se falássemos de sua própria filha.-Ela tem dois filhos, Zoe, que estuda engenharia e Christian, que viaja pelo mundo, fazendo trabalhos voluntários desde sempre. E bom...-Eu tomei um longo suspiro.-Daniel, a criança difícil de lidar, se tornou um homem insuportável de conviver...
-Bom... Pelo menos não tem que atura-lo sozinha, tem sua irmã para lhe ajudar.-Ela disse, com um olhar doce.
-Não...-Eu disse soltando uma breve risada.-Savannah é ainda pior que meu pai, mas... Tem razão, eu não preciso aturá-lo. Não é por quê é meu pai que deixa de ser uma pessoa tóxica e eu sei bem o que fazer com pessoas tóxicas!-Eu disse, um tanto seria.-Mas bem... Eu sou grata por ter meu avô comigo em toda essa caminhada, sou grata por ele ter me ensinado a ser uma boa pessoa e também sou muito grata por ter tido a chance de conhecer as histórias mais lindas da vida dele.
Suzana sorriu suavemente e logo enxugou suas lágrimas com um lenço que tirou de uma das gavetas de sua mesa.-Certo, meninas.-Ela soltou um breve suspiro.-Melhor eu parar de atrasa-las...-A senhora sorriu, de forma carinhosa, enquanto me entregava o papel com meus horários de aula e a chave do meu armário, que antes se encontrava em um molho de chaves, jogado sobre a mesa. Cada chave continha um chaveiro próprio, com o número do armário.
Samantha tomou o papel rapidamente de minhas mãos, sem ao menos me dar tempo de ler o conteúdo e então, ela começou a caminhar rapidamente.
-Tchau, dona Suzana!-Sam acenou para a senhora, enquanto eu a seguia para fora da sala e então, nos retiravamos do recinto, com um aceno.
-Roubar um corpo e depois crema-lo?-Samantha soltou, com um tom de voz animado.-Acabou de se tornar uma pessoa mais interessante, srta.Hale...-Ela disse, soltando um sorriso torto.-E quem é esse Travis?
-Bom... Ele fez parte do meu passado.-Eu disse, soltando um breve sorriso, ao lembrar de nossos bons momentos.-Faz muito tempo que não nos vemos.-Tomei um longo suspiro.-Ele se tornou uma figura insignificante do meu passado.-Falei, tentando acreditar em minhas palavras.
Samantha deu de ombros, voltando ao corredor de armários, agora mais movimentado.
-Bem... Venha!-Ela disse, me puxando.-Depois que pegarmos seus livros, vou te apresentar esse zoológico marítimo.-Ela riu da própria piada, o que me fez pensar que a vida universitária não seria tão ruim.
O corredor de armários cinzentos era extenso e parecia ser um dos lugares mais movimentados por ali. Alunos indo e vindo de forma natural, traçando seus caminhos pelo longo corredor, enquanto Sam e eu nos deslocavamos lentamente, nos esgueirando pelos cantos, tentando chegar até o meu armário, intitulado como o de número 318.
-Que sorte a sua... Seu armário fica perto dos gostosos.-Ela riu do próprio comentário.
-Gostosos?-Questionei, enquanto encaixava a chave na pequena fechadura da porta de meu armário.
-Sim, Ali...-Ela mencionou, revirando os olhos brevemente. O som da palavra "Ali" invadiu meus ouvidos, trazendo algumas lembranças em minha mente, que fiz questão de dispensar.
Abro o armário, sem nenhuma pressa, enquanto Samantha falava de coisas aleatórias.
-Alice!-Sam chamou minha atenção, novamente.-Está vendo aqueles caras?-Ela perguntou e eu fiz sinal afirmativo, com a cabeça, enquanto tornava meu olhar na direção em que ela apontou.
-Eles são tipo os tubarões da escola... Mas parece que o rei deles faltou hoje, isso acontece muito.-Ela disse e logo, se virou um pouco para a direita, apontando para grupo de estudantes carregando livros enormes, andando pelo corredor.-Os nerds são as focas, que servem de alimento para eles e por fim...-Ela falou, se virando para a esquerda, apontando para um grande grupo de meninas magras, altas e a maioria delas, loiras, de olhos e pele clara.-As garotas mesquinhas, que são as baleias assassinas.-Ela soltou um longo suspiro, virando-se para me encarar.-Guarde isso em mente, Alice!
Observo atentamente cada um dos grupos. Os rapazes com jaquetas do time de futebol da universidade, me lembravam à arrogância de Travis, as meninas muito bem vestidas e maquiadas, me lembravam a prepotência e egoísmo de Savannah e por fim, os simples estudantes, titulados como os nerds, me lembravam a gentileza e inteligência de Dylan. Eu até poderia dizer que me identificava com os "nerds", mas não seria verdade, pois não me sentia mais parte de algo assim, tão nobre, porém esnobado.
-E nós, o que somos?-Pergunto, virando-me para encarar Samantha.
-Os lobos, silenciosos e ferozes, só esperando a hora de atacar.-Ela disse, com seriedade.
Eu sorri brevemente, ao ouvir sua fala.-Mas lobos não são animais aquáticos.-Falei, pegando alguns livros e logo, fechando o armário, com cautela.
-Exato!-Samantha disse, exibindo um sorriso singelo, seguindo a andar pelo corredor, enquanto eu à acompanhava.

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