Capítulo 9

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Na manhã seguinte, Ofélia subiu o mais rápido que pôde a colossal escadaria do castelo da Meia-Noite que parecia ainda mais imponente e irreal à quietude revigorada do amanhecer, um verdadeiro portal para um mundo de príncipes e princesas, como se a qualquer momento fosse colocar o pé sobre um degrau de nuvens e esvanecer-se na luminosidade celestial. Contudo, nada disso a impressionara naquela manhã à medida que se apressava pelo rumo encantado ofegante e com o suor a molhar-lhe as têmporas. As badaladas do sino da torre alta ecoaram através das nuvens e Ofélia soltou um gemido, estava atrasadíssima. Quando atravessou esbaforida a cascata de pétalas vermelhas e se deparou com o salão nobre ainda imerso nas sombras de um sono profundo sentiu um súbito alívio. Chegara mais uma vez antes de todas as aias. O seu coração galopante acalmou, apenas para cair ao chão em absoluto horror ao distinguir a silhueta larga masculina do príncipe Tristan, sentado sozinho no salão nobre.

Ofélia desejou esvanecer na luz celestial tal como previra como destino ao subir a escadaria encantada. Mas, como parecia não poder contar com a magia espontânea dos contos de fadas para a ajudar, permaneceu ali, especada, incapaz de qualquer movimento ou mesmo de respirar, martirizando-se por ainda não ter criado uma poção que a fizesse desaparecer no instante em que lhe molhasse os lábios.

O que fazia o príncipe maquiavélico ali tão cedo?

Sem nenhuma das possibilidades anteriores ao seu dispor, e fingindo que ao permanecer silenciosa não seria vista, Ofélia recorreu à terceira melhor alternativa e correu para os vestiários. Demorou mais tempo do que o necessário a trocar o seu vestido de linho branco coberto de pó amarelo de margarida por um dos vestidos de ceda azul brilhante (tão elegante como os que a princesa Eileen usava, mas, para conforto de Ofélia, um pouco menos colorido e vistoso). Este atraso deveu-se menos ao tremor das suas mãos e movimentos tensos e mais à sua determinação de só regressar ao salão nobre quando tivesse a certeza que já lá estariam mais cortesãos além do príncipe maquiavélico. Ofélia apertou com mais força do que o necessário cada laço do corpete, o seu peito subindo e descendo rapidamente através do decote do vestido que a queria estrangular.

"Julguei que não viesses, não te costumas atrasar", disse-lhe Mari de sobrancelha erguida e olhar desconfiado quando, por fim, Ofélia concluiu ser seguro sair do vestiário e apareceu á socapa no salão nobre. Ofélia suspirou, aliviada por ver que o salão nobre estava já lançado no tumulto habitual e que todos já se ocupavam das suas tarefas. Tinha chegado perfeitamente atrasada.

Naquela manhã, as suas preocupações correntes rapidamente empalideceram e murcharam de vergonha em comparação com as que sucederam. Ofélia foi afligida pela peste. Inesperadamente, o sufrágio conseguiu até mesmo atravessar as paredes colossais do castelo encantado, tal redoma de vidro protegida por fadas descuidadas. No entanto, ali a peste escolhia a dedo as suas vítimas e atingia apenas aquelas de coração frágil, pois a forma como as afetava era diferente da habitual. Não se tratava de padecer da efemeridade em si, mas de sentir o peso dos seus efeitos, para os quais só os cortesãos que não tinham uma pedra no lugar do coração eram sensíveis. Mas Ofélia sabia que para habitar o reino encantado era necessária essa mudança anatómica, a qual era por isso muito frequente entre os cortesãos. Talvez fosse por essa razão que Ofélia, não só fora atingida em cheio pela peste, como também ainda não melhorara nada as suas aptidões desde que ali chegara.

"Peço-lhe abrigo, senhorita...", disse-lhe lorde Manuel, um dos convidados que recebera essa manhã, "perdi tudo o que tinha a tentar cuidar da minha família. Perdi-os todos... a peste levou-os". O homem de meia idade, estendeu-lhe as mãos ossudas e Ofélia envolveu-as com as suas. Sabia não ter nada para oferecer àqueles que mais necessitavam da sua ajuda. Temeu que isso fosse parte da mudança anatómica que estava em curso no seu coração e logo estremeceu. Olhou por cima do ombro e após confirmar que ninguém lhes prestava atenção, tirou da sua bolsa de cetim uma sandes de compota de cereja e ofereceu-lha. Mas antes de poder obedecer à ponderação que o seu novo coração exigia, deu-lhe o frasquinho lilás brilhante que guardava há já muito tempo. Tencionava usá-lo para a poção do amor, mas...

Danças e Poções - CONCLUÍDAWhere stories live. Discover now