Prólogo

63 6 21
                                    

Eu preferiria ser criança de novo para que quebrar o braço fosse o maior dos meus problemas. Calma, eu vou explicar essa maluquice.

Todo mundo tem dias ruins, não é? Quando você acorda de mau-humor, briga com um amigo, quebra seu pertence favorito, se machuca feio após terminar um namoro ou cai de cara no chão asfaltado.

Pois é, eu escolheria me ralar todo na rua se isso significasse que o que aconteceu comigo naquele dia, na verdade, fosse somente um pesadelo.

Era uma tarde serena, eu e minha prima estávamos voltando de uma missão. Trabalhávamos como mercenários, servindo a uma grande "empresa local" (Para não dizer facção criminosa) a fim de escoltar um certo produto.

Não duvidava que esse produto fosse alguma arma, drogas ou dinheiro sujo. Foi tranquilo, já que Cortom não tem a melhor segurança do mundo.

Tivemos que voltar para casa para pegar alguns itens e ir direto sacar o dinheiro. Estava mancando porque, no meio do caminho, um cachorro inventou de correr atrás de mim e eu tropecei.

Ao meu lado, Yuli me apoia e me ajuda a chegar em casa. Brigamos como crianças, mas sem ela minha vida seria completamente diferente.

Chegando ao meu bairro, logo percebi que não tinha nenhum sinal de vida no local, o que é estranho, já que moro no subúrbio de uma metrópole.

— Ué, por que a rua está vazia hoje? — Yuli cochichou, enquanto se esticava para ver se achava alguém — Está tendo alguma liquidação no centro ou algo do tipo?

— Não faço a mínima ideia — respondo, ainda com os pés inchados devido ao tropeço — Mas se estiver, ótimo. Esse pessoal precisa de uma renovação no armário urgentemente.

— Que bom que não sou só eu que penso isso, o vestido daquela velha da esquina já está entrando em decomposição. Deve ter sido um trapo que arranjou no lixão.

— Que lixão? A casa dela?

— Nossa, que piada sem graça.

Nos olhamos por alguns segundos em um silêncio constrangedor e depois começamos a rir alto, no meio da rua. Nosso senso de humor não é muito... correto, porém, é o que nos agrada.

Quebrando nossa conversa de maneira abrupta, ouvi passos pesados correndo pelas ruas.

— É a polícia, mete o pé.

Nós corremos para a rua onde morávamos. Um beco com casas de crescimento vertical. De início, reparamos algo diferente: marca de balas na parede. Não é comum acontecer trocas de tiros ali, por incrível que pareça, era um lugar pacífico.

Nos esprememos pelos cantos da parede, tentando passar por despercebido pelos policiais. Os passos se aproximam, junto a um som metálico e vagaroso. Barulhos de engrenagens giram durante os gritos dos policiais.

Tento olhar rapidamente as frestas do beco. Não, aqueles não eram policiais.

— Yuli, olha isso, rápido.

Os homens vestem um uniforme completamente branco. Detalhes dourados ornamentam seus trajes, com linhas metálicas e fios leves. Carregam armas pesadas, com apetrechos que jamais tinha visto.

Eles passaram pelo nosso beco sem percebê-lo. São vários. Repentinamente, ouvi tiros sendo disparados sem interrupção. Gritos ressoavam pela grande rua enquanto os sons metálicos adentravam meus ouvidos de forma inédita.

— Corre.

A nossa casa é a última da rua, e quanto mais passos eu dava, tinha menos garantia de que estávamos em segurança. Não tinha ideia do que estava acontecendo. Quando nos deparamos com o prédio azul-esverdeado, repleto de azulejos quebrados, Yuli destranca a porta de ferro enferrujada.

Levei alguns segundos para processar a situação. Senti um cheiro ferroso no ar antes mesmo de abrir a porta, semelhante ao das facas de cozinha após lavadas. O chão estava coberto por um líquido vermelho que escorria por entre as frestas do piso.

Duas mulheres estavam no chão, com os corpos estirados sobre o solo gelado. Sangue ainda sai da boca de ambas. Uma ferida se espalha, manchando gradativamente o tecido de suas roupas com o líquido rubro e viscoso. Suas peles estão perdendo cor de maneira rápida e constante.

À esquerda, havia uma mulher de cachos longos, com uma bala perfurando seu peito. Ao seu lado, outra tinha fios ondulados e presos em um coque, vestindo um avental de cozinha, com um de seus olhos afundados por uma esfera de chumbo grosso.

Ambas exibiam um tumor roxo e dourado que reluzia na penumbra.

O cabelo que agora desordenadamente adornava rostos pálidos, as vestes manchadas pelo líquido carmesim que fluía da ferida brilhante. O sangue, agora um tributo sombrio à tragédia que se desenrolará, parece moldar-se ao contorno das últimas expressões nas faces frias e sem vida.

Após meu cérebro captar a informação, me dou conta do que acabou de acontecer.

Minha mãe e minha tia acabaram de ser assassinadas.

Minha mente entra em negação. A minha visão parece distorcer enquanto vejo aquela cena. Tento observar a minha mãe, mas não vejo mais ela, e sim, apenas um cadáver. Uma onda de lembranças enxurra a minha mente. Esta sensação difere do luto ou quaisquer coisas que já senti.

Parece que o mundo se tornou um vulto negro, e que não há mais nada além de mim e elas duas. O tumor roxo e dourado ainda se destaca sobre a pele de ambas, algo que nunca tinha visto antes. Minha respiração está ofegante e meu peito está apertado, como se fosse eu que tivesse tomado o tiro.

Olho para o sangue escorrendo por debaixo de seus cachos, e lembro como ela me abraçava nos momentos em que eu mais precisava. Lembro de como ela me ajudou nos meus momentos mais difíceis. Várias possibilidades de vários futuros correm pelos meus pensamentos, que são interrompidos após eu perceber algo na minha frente.

No fundo da cozinha, notei uma figura encapuzada com o rosto coberto por uma máscara de pano.

Uma dor de cabeça me atinge, me fazendo ter dezenas de questionamentos em milésimos. Foi algo recente. Aconteceu agora. E se eu estivesse aqui alguns segundos atrás?

Fixei meus olhos no provável assassino, paralisado diante da cena macabra que se desdobrava diante de mim. O choque que percorreu meu corpo era avassalador, superando completamente minha capacidade de reação. Tentei piscar, mas minhas pálpebras pareciam pesadas e embaçadas, marejadas por lágrimas que brotavam involuntariamente.

No entanto, o assassino já não estava mais lá quando finalmente consegui mover meu olhar. Uma presença sinistra e invisível parecia pairar atrás de mim, como um espectro observando sua próxima vítima.

Então, sem aviso, sua pistola foi apontada diretamente para o meu rosto, a frieza do metal brilhando ameaçadoramente. Não sei se ele se teletransportou ou se eu apenas estava muito desatento.

Minha respiração cessou instantaneamente, antes mesmo do disparo. Uma onda de náusea revirou meu estômago, e eu me encolhi instintivamente, buscando abrigo ao lado de Yuli.

Antes que eu pudesse fechar os olhos e esperar pelo inevitável, uma figura relâmpago passou rapidamente pela minha visão, prateada e efêmera. Em seguida, uma forma conhecida e reconfortante, com cabelos ao vento, surgiu como uma sentinela protetora.

Meu irmão.

Assim que o raio ofuscante rasgou meus sentidos, testemunhei meu irmão desferir um chute na direção da figura misteriosa. Uma descarga plasmática afasta os entulhos do beco. Uma esfera concentrada de poder anárquico se molda, sendo o presságio de uma explosão.

Mas algo estava errado, um som estranho e perturbador reverberou no ar, muito diferente do som de um chute. Virei desesperadamente para Yuli, temendo que algo terrível a tivesse atingido. No entanto, minha visão começou a distorcer. A intensa onda de adrenalina e pânico que me dominava desapareceu de forma abrupta.

Minhas pernas cederam. Uma dor lancinante me derrubou. Um líquido quente brotou de minha boca. Escorreu pelo queixo.

Bom, você se lembra da sensação que mencionei anteriormente, de parecer que fui eu quem levou o tiro?

Agora ela é real.

Ao olhar para baixo, vejo a bala cravada na minha barriga.

A Ascensão das Chamas EscarlatesWhere stories live. Discover now