Escola

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Então chega segunda feira. Dia de escola. Teria de tomar muito cuidado, pois na escola eles não perdoam. Qualquer oportunidade eles zoam mesmo. Qualquer motivo é chacota na certa. Por isso tenho de tomar muito cuidado pra não pagar calcinha. Da mesma forma que a escola é um terreno ameaçador é também um oásis pra minha experiência. A experiência de observar o comportamento das meninas. De imediato eu já excluí as chatas e bagunceiras. Me concentrei nas meninas meigas e quietinhas, em especial, a Poliana. A Poliana é linda. Cabelos lisinhos e loira, olhos azuis e pele muito branca. Andava sempre muito bem arrumadinha. Era a delicadeza em pessoa. Além de tudo era super educada e não era esnobe. Tratava todos do mesmo modo. E pra minha sorte era super minha amiga. Sentávamos lado a lado na sala de aula. Não existia menina melhor pra eu me espelhar. Ela era tudo oque eu queria ser.

Logo que eu avistei a Poliana, eu ja observei o jeitinho dela andar. Ela não saía correndo como as outras crianças. Ela andava calmamente, sem pressa. Tratei de acompanhá-la seguindo o ritmo dela. Ela andava delicadamente e gesticulava com suavidade sempre com um sorriso no rosto, oque a tornava ainda mais linda. Depois quando ela entrou na sala e se sentou ela ficou certinha na cadeira com as pernas juntinhas ou dobradas uma sobre a outra. Eu observava como era comportada. Desse dia em diante eu comecei a imita-la em tudo. Andava e me sentava igualzinha a ela.

Outra coisa que comecei a imitar das meninas é organizar livros, cadernos e nécessaire em cima da carteira. Tiravamos tudo da bolsa e deixava bem arrumadinho. Seguindo nessa mesma linha de pensamento, comecei a deixar meus cadernos todos coloridos com post-its, adesivos, títulos enfeitados...bem coisa de menina mesmo.

Nunca pensei que esse exercício de observar as meninas fosse tão gostoso. E mais gostoso ainda quando vamos colocando em prática aquilo que aprendemos. Vou sentindo minha feminilidade vindo a tona. Vou sentindo o menino morrer e nascendo uma linda garotinha. Morre o Bruno e nasce a Bruna.

Uma coisa que observei nesse exercício é a educação dessas meninas bonitinhas. São todas educadas e atenciosas , até mesmo as tímidas. Nesse sentido eu já sou educada também. Outra coisa que notei que foi o mais difícil, mas não impossível, foi o jeitinho das meninas falarem. O timbre da voz, a entonação, o tom (não falar alto). Prestava atenção também em palavras e expressões mais usadas por meninas, tipo: "tô passada", "tô beje", "me deixa quieta", "miga", "tá louca", e coisas do tipo. E como somos meninas educadas os palavrões não fazem parte do nosso vocabulário.

Uma coisa que tenho horror é falar errado, por isso sou bem estudiosa.

Mais uma coisa também observada é gesticular com graciosidade enquanto fala. Nada de movimentos espalhafatosos.

E assim continuei nesse delicioso exercício observando como elas andam, como elas sentam, o jeitinho que mexem no cabelo e assim por diante.

Sempre gostava de ficar no meio de meninas. Me identificava com elas. E quando lembrava que estava usando calcinha igual elas essa identificação aumentava ao máximo. Me sentia uma menina também.

O fato de eu estar usando calcinha contribuiu no meu jeitinho delicado de ser. Sempre tive medo da calcinha aparecer, por isso eu sentava e me comportava igual menina. Tinha maior medo de sair correndo e cair de mau jeito e aparecer a calcinha. E também a Poliana não é o tipo de garota que faria isso.

Tudo transcorreu calmamente durante a aula. Num dado momento ouvi as meninas combinando de se reunir na casa da Carol pra brincarem. Como viram que eu estava interessada na conversa elas se afastaram um pouco e começaram a cochichar entre elas. Depois de um tempinho a Poliana veio até mim e disse:

- Bruno. Nós estamos marcando de ir brincar na casa da Carol. Lá nós brincamos só brincadeiras de menina. E conversando com as meninas nós resolvemos te convidar. Mas se você for, vai ter de brincar brincadeira  de menina com a gente.
- Que tipo de brincadeira vocês brincam?
- Brincamos de casinha, de boneca, desfile de moda.

Quando ouvi isso, meu coraçãozinho de menina até bateu mais forte.

-Tenho que pedir a minha mãe - disse eu.
- Tudo bem.- respondeu ela.

A Carol morava  na mesma rua que eu. Só dois quarteirões a frente.

- Mas você quer mesmo brincar com a gente?- perguntou Poliana.
- Quero sim !!!
- Hoje vai ser desfile de moda.
- Que legal !!!
- Mas é moda de menina viu?
- Tudo bem.
- Então tá...vamos estar lá às três horas.
- Beleza.

Fui pra casa radiante. Só tinha um probleminha. Convencer minha mãe. Chegando em casa fui logo falando.

- Mamãe, as meninas vão se reunir na casa da Carol e me convidaram pra participar.
- Você não pode ir...tem de fazer seu para casa- disse ela.
- Hoje não teve para casa mãe. É por isso que vão se reunir hoje.
- Carol é aquela menina que mora na nossa rua?
- Isso mesmo. Ela mora logo ali na frente.
- Que horas vocês marcaram?
- Três horas.
- Vou ligar pra mãe dela e ver se tá tudo ok.

Depois de um tempo no telefone ela disse:

- Pode ir, mas se comporte e não chegue tarde viu.
- Eu sou comportada mãe.

Me acostumei tanto de me ver pensando sobre mim mesma no gênero feminino que acabei falando " comportada" sem querer. Na hora pensei que minha mãe fosse me corrigir mas quando olhei de " rabo de olho" percebi ela colocando a mão tampando a boca e dando um sorrisinho. Fiquei intrigada. Será que ela percebe o meu jeitinho de menina? Será que não liga pra isso? Tava pensando essas coisas quando ela me pergunta:

- Quem vai nesse encontro?
- A Carol, é claro, a Poliana, a Patrícia e a Larissa.
- Só meninas?- observou ela.
- Sim, são minhas amigas. - falei tentando ser o mais natural possível.
- Aaaaa tá!- disse ela.

Pensei que ia falar mais alguma coisa, mas não disse mais nada. Tenho certeza que ela sabia de alguma coisa. As mães sempre sabem. Conhece a fundo os filhos que tem. O que me deixou encabulada foi o sorrisinho que ela deu quando falei que sou comportada. O que seria esse sorrisinho? Seria deboche ou aceitação? Até que ponto ela aceitaria o filho se transformar em filha? E também até que ponto ela sabia sobre a Bruna?

Diário de uma Menina TransWhere stories live. Discover now