Válvula de Escape

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Rooster dedilhou algumas notas, experimentando o som, suas mãos quase formaram os acordes que ele sabia de cor de ''Great Ball of Fire'', mas seus instintos lhe disseram que essa música poderia ficar para outro momento. Se deixou levar pela simples exploração do instrumento, improvisando alguma coisa que começou a se transformar numa leve batida de jazz.

Meio que por impulso, Rafaela se sentou ao lado dele, aproveitando as oito oitavas que tinham ali, espaço o suficiente para os dois, e ela acrescentou suas próprias notas à canção que estava surgindo, que estavam criando juntos. Bradley sorriu para ela, satisfeito, contente com a aproximação. 

Seus dedos maiores e mais grossos tinham precisão nas notas mais graves que estava tocando, enquanto que os dedos mais finos e delicados dela deslizavam pelas teclas com rapidez, aproveitando a diferença de cada nota para deixar a melodia ainda mais detalhada.

Continuaram tocando mais uns cinco minutos, e parecia para Rafaela, que era um tempo sem fim, que poderia durar muito mais. Ali estava o único amigo que tinha feito nos últimos anos, ele tinha sido gentil, até mesmo companheiro, preocupado com o bem estar dela, e disposto a segui-la onde quer que ela pedisse para irem, como na igreja, como onde estavam agora. Um estranho estava cuidando dela, e era difícil não ser grata, se sentir apreciada ou até mesmo... amada. Amada talvez fosse uma palavra muito forte, não tinha como ter certeza de que Bradley amava Rafaela, e ela tinha deixado de acreditar nessa possibilidade há muito tempo.

Durante anos, ela esperava encontrar alguém especial, que a amasse pelo que ela era, sem esperar muito em troca, além do coração disposto dela a cuidar de alguém, a estar presente para alguém importante, mas como isso nunca aconteceu no Brasil, não achava que aconteceria nos Estados Unidos.

Deixando tudo isso pra lá, ela apenas deixou se inundar pela gratidão de ter Bradley em sua vida, de estarem compartilhando aquele momento. De repente, a sessão de música foi interrompida pelas palmas de alguns convidados entusiasmados.

A plateia repentina fez os dois amigos rirem, sem saber muito bem o que fazer, apenas deixando de tocar.

-O que eu faço agora? – Bradley pediu por socorro – continuo? Se eu continuar tenho a impressão que vou roubar seu emprego.

-Ah não faça isso – Rafaela respondeu, mas num tom descontraído – mas não dá pra negar que você se tornou uma sensação, o que dá pra fazer é você continuar sim.

-Será que não tem nenhuma que nós dois conhecemos? – ele sugeriu uma solução.

-Hã, acho que dá pra ser "I ain't worried" do One Republic? – ela deu de ombros, pensando na primeira canção popular que veio a sua mente.

-Eu ouvi essa algumas vezes, essa é boa! – Bradley achou uma boa pedida.

Rafaela tocou os acordes enquanto Bradley adicionou o famoso assobio da introdução. Mais um dos talentos dele que ela admirou, já que ela mesma não tinha tal habilidade.

Antes que tivessem a chance de cantarolá-la por pura curtição e sem profissionalismo, a própria plateia aderiu à canção e começou a cantar.

A música tinha ficado completa, mesmo com só um instrumento e dois pianistas o compartilhando. A agitação da festa de casamento, eventualmente, foi trocada pela agilidade do DJ e assim, os convidados puderam curtir a festa de um jeito mais eficaz, porém não menos animado que como estavam quando Bradley e Rafaela estavam tocando.

Vendo que era sua deixa para terminar sua apresentação, eles voltaram para sua mesa.

-Eu não fazia ideia do seu gosto musical – ele comentou, instigando Rafaela a falar sobre o assunto.

-Pois é, foi o que eu pensei na hora – ela deu de ombros – na verdade, ela não tem muito a ver com piano, mas tenho que admitir que fizemos um bom trabalho juntos.

-Nós somos um ótimo time! – ele disse de forma jovial, chegando a erguer uma mão para um "toque aqui", não tinha como não deixar se contagiar por aquela alegria, Rafaela tocou sua mão de volta.

-Acho que sim – ela admitiu timidamente – eu... estava pensando que... faz muito tempo que não me divirto assim.

-Isso é bom, acho que eu posso dizer a mesma coisa – ele concordou em solidariedade – não se divertia assim no Brasil?

-Eu... não muito – Rafaela confessou – meu irmão costumava fazer bolo de chocolate e colocar um DVD pra gente assistir, era a nossa diversão, eu sinto falta dele, mas sempre ligo.

-Qual o nome dele? – Rooster achou que essa era uma pergunta válida e segura naquele território.

-Renato, ele estuda engenharia em São Paulo – Rafaela disse com orgulho.

-Eu nunca soube como é ter irmãos, quer dizer, acho que estou começando a entender agora – Bradley retrucou.

-Como assim? – Rafaela tinha uma ideia do que ele diria a seguir, provavelmente se referindo ao seu time de aviação.

-Minha equipe, nós passamos por uns bons bocados juntos, esse tipo de coisa cria certa irmandade – ele explicou, gesticulando – eu me sinto responsável por eles, até porque eu sou o líder da equipe, mas eles também se sentem responsáveis por mim.

-Hum, como uma verdadeira família... - ela suspirou, admirada - acho que... depois de perder o seu pai, teve sorte de encontrá-los.

-É, acredito nisso também, mas Mav sempre foi como um pai, ele conheceu o meu pai como ninguém - Bradley confessou.

-Você ao menos tinha ele a quem recorrer quando precisasse - Rafaela comentou distraidamente.

-Nem sempre foi assim, aconteceu algo que me fez me afastar dele, mas outra coisa aconteceu e nos reaproximamos - ele contou.

-Como eu disse, você é sortudo - ela suspirou com uma mão no queixo, perdendo o ânimo de repente.

-Eu sinto que você não teve esse tipo de... sorte com sua família - Bradley devolveu, pensando que "sorte" não era bem a palavra que Rafaela queria usar.

-É, eu... a minha mãe nunca foi compreensiva, eu não sei os detalhes, mas eu e o Re sempre sentimos que nossos pais se casaram por conveniência - ela achou melhor contextualizar - nós éramos como fardos e... se eu estivesse chateada com alguma coisa, ela não estava disposta a conversar, ao contrário, ela se irritava, eu cresci me perguntando como uma mãe podia detestar ouvir os filhos, então, eu fugi... saí desse lar vazio assim que tive a oportunidade, era eu e o Renato contra o mundo.

-Eu sinto muito... - Rooster murmurou, completamente admirado, comovido e compreensivo.

-Ninguém aguentou por muito tempo, o meu pai foi embora também, nunca deixou de cuidar de nós, mas já não era a mesma coisa - ela completou a história.

-Entendi, muito complicado - acrescentou ele, um pouco sem jeito.

-Eu sinto muito por isso, me sinto péssima por ter despejado tudo isso em cima de você, eu... - Rafaela fechou os olhos e deixou a frustração cair, com uma mão no rosto.

-Não se sinta mal por isso, tá tudo bem, sério - ele chegou a segurar a outra mão dela, olhando bem nos olhos dela quando Rafaela se voltou pra ele - é muito importante ter com quem conversar essas coisas e se eu sou esse seu alguém, é um prazer poder ajudar.

-Puxa... - ela suspirou, chegando a enxugar algumas lágrimas que surgiram - você tem sido um bom amigo, mais do que eu poderia imaginar, só... muito obrigada, de verdade.

-De nada - Bradley respondeu, ainda segurando a mão dela.

Nos instantes em que seus olhares estavam cruzados, Bradley foi tomado pela vontade de cuidar dela, de tomar sobre si a responsabilidade de mostrá-la que a vida podia ser melhor que aquilo, além dos traumas do passado.

Ele tinha certeza que a amava e que se soubesse disso, Rafaela sentiria medo. Teriam que resolver aquela situação, mas não agora.

Sutil InsistênciaWhere stories live. Discover now