Sonata de Inverno

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Ela estava de malas, sentada, cantarolando uma sonata, e esperando o trem. Assim como eu.

Parecia uma daquelas damas medievais com aquele vestido lindo, longo. De corpete. Aqui, na minha cidade, onde somos todos caipiras, não estamos acostumados com pessoas exóticas. Essas pessoas que pintam cabelo, que usam roupas diferentes, que apoiam coisas que não estão na Bíblia e tudo mais. Eu não ligo. Vivi por muitos anos na cidade, então só achei interessante. Puxei assunto.

- Está indo para onde, moça?

Ela levantou sua sombrinha, e sorrindo, respondeu com gentileza, puxando a saia de leve, abaixando a cabeça. Um gesto para cumprimentar as pessoas.

- Boa tarde, senhor! Estou esperando minha mãe.

Eramos as duas únicas almas naquela estação. A neblina era de matar. Sinceramente, odeio o frio daqui...

Ficamos quietos, esperando. Esperando. Esperando... A droga do trem não vinha. Não tem como fugir de uma conversa.

- Que demora! Está aqui a muito tempo, moça?

Dando de ombros, ela só suspirou.

- Minha mãe sempre erra os horários. Então não conto mais as horas, mas sim, estou aqui há um bom tempo.

Acabei perguntando o nome dela. Francesca, mas era pra chamar só de Fran. Estava acostumada, já que todos a chamavam assim em casa.

Olha, eu sei que aqui no interior somos tratados como bovinos. Ninguém está preocupado se precisamos de transporte ou não. Eu precisava muito daquele trem, sem ele só tinha um cavalo velho em casa... que era provável morrer no meio do caminho. Não ia por o bicho pra correr naquele frio desgraçado, naquela neblina horrível.

É, eu detesto o inverno.

- E você?

Fran deu de ombros mais uma vez.

- E temos outra estação nesse fim de mundo? É frio o ano todo!

É verdade! Rimos da piada sem graça.

- Mas esse inverno está demais! Não duvido que volte a cair aquela garoa medonha!

Vi os olhos dela rolarem. Reclamamos disso e daquilo. Nada do trem. Falamos de nossas famílias, de como nos divertíamos em nossas casas, no meio da mata ou de fazendas. Até que Fran reclamou de seu noivo. Que poderia ser como eu, uma pessoa que gosta de conversar.

Se houvesse um buraco na terra, eu me enfiaria lá. Sou um cara de seus 40 e tantos anos, e Fran uma mocinha de 17 ou 19. Não tinha como saber se era uma cantada discreta ou se era só uma reclamação mesmo. De qualquer forma, desviei:

- O coitado ainda está conhecendo a vida! Ele vai aprender a conversar, você vai ver.

Fran me olhou com aquele olhar feminino que diz: Duvido. Já estou craque nisso. Minha esposa sempre duvida que vou chegar a tempo na cidade. Bem, não tenho culpa. Eu estava desde cedo esperando o trem!

- Menina, acho que sua mãe não vem hoje, hein? Vá pra sua casa.

Abaixando a sombrinha, Fran me olhou no fundo da alma. Grandes olhos azuis e intimidadores ela tinha.

- E fazer o que lá? Esperar pelo meu noivo sem graça vir me bater novamente?

Ah... você perde a fala nessas horas.

- Está tudo bem, senhor. Mamãe sempre disse que é normal... se eu pudesse, bem que faria como ela. Eu entraria no trem e iria embora. Só voltaria quando o traste morresse.

Em terras no interior há algumas regras implícitas, como "nunca se meta na vida de ninguém". Eu sempre odiei essas regras.

- Eu sei que nada tenho a ver com sua vida, moça, mas ... veja bem... não é "normal" bater em nossas esposas. Sabe, estamos no ano de 2015. Você pode pedir o divórcio. Aliás, é tão nova, pode casar novamente.

O rosto da mocinha se desfez em lágrimas. Ela agradecia pelas palavras, mas dizia que eu estava enganado. Dizia que eu não entendia...ninguém nunca entendia.

Típico dos mais novos. Sempre acham que é o fim do mundo. Enfim, tive que fazer algo.

- Sou advogado, se quiser, posso ajudar. Que tal?

Ela, que chorava sentada no banco de madeira, com o rosto entre as mãos, tremendo, levantou-se devagar. Dando passos para trás. Assustada?

- Ju-jura? Ha...ha...hahhaahahah...

Ouvi, muito longe, o trem se aproximar. Fran ia aproximando-se da linha. Não gostei daquilo.

- Ei, sai daí! O trem está vindo!

Percebi que ela simplesmente ria histérica, louca. Foi quando ouvi a voz dele.

- Quem você pensa que é? Quem é você que faz minha noiva chorar?

Virei-me e então o vi.

Não sei a quanto tempo estava ali, mas quando eu percebi que ele era transparente e flutuava... eu paralisei.

- Você quer tirar a Francesca de mim, não é? Não é?

Eu só conseguia respirar mais rápido. O suor brotou como se subitamente tivesse chovido.

- PARE DE ME CHAMAR ASSIM!

Fran veio correndo, em lágrimas, e jogou-se em cima dele, enchendo-o de tapas.

O trem vinha, a toda velocidade como sempre.

O corpo da moça tornou-se transparente também. Juro pra você que eu pensei mil coisas, mas as pernas não obedeceram. O trem passou direto, pois não fiz menção de que subiria, e pelo jeito ninguém queria descer naquele fim de mundo. Assim que o trem passou, uma senhorinha veio, calma, e apartou a briga.

Era transparente como eles.

- Pronto! Parem!

Fran só faltava rugir para o noivo, que me encarava furioso. A senhora... era a mãe.

- Senhor, obrigada por cuidar de minha filha.

Só conseguir mexer a cabeça de leve.

- Até que enfim achamos alguém que preste, Franzinha.

Depois disso, a senhora pegou o rapaz pela orelha e o levou embora, enquanto resmungavam. Fran veio devagarinho até mim... e sumiu.

Já se passaram anos, e cá estou. Nunca mais sonhei com outra coisa a não ser Fran, cantarolando como quando a conheci naquela tarde de inverno.

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