São Valentin

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Pontual como sempre. O despertador deixa soar seu som terrível, me ordenando abrir os olhos começar com meu ritual.

Com a lerdeza natural estiro meu braço e consigo desligar o aparelho endemoniado. Com um bocejo mais me coloco de pé.

São oito da manhã e a rotina começa.

Entro no chuveiro. A água está fria, para "variar".

Me visto. Minha roupa é preta, para "variar".

Preparo o café e como biscoitos, para "variar".

Perco o tempo e desta vez vou trabalhar as dez da manha, ao invés de ir as duas da tarde, como normalmente faço, mas Gemma me pediu para que o cobrisse já que tinha um encontro com seu namorado, o que me faz lembrar do maldito dia dos namorados. Fodido São Valentin e todas as baboseiras que acontecem dia 14 de fevereiro.

O frio consegue se infiltrar entre meu casaco preto e só posso abraçar mais a mim mesmo enquanto solto outro suspiro, me deixando uma enorme nuvem de névoa em frente a mim. O mundo continua girando apesar de ser 14 de fevereiro. As pessoas continuam se empurrando para conseguir um taxi. Os miseráveis continuam pedindo dinheiro e eu continuo deixando moedas em suas mãos. Mas minha rotina foi quebrada, e eu me assusto porque não gosto do novo. Me aterroriza a ideia de perder a segurança que minha vida rotineira me brinda.

* * *

Chego ao estabelecimento que pertence a minha família. Meu lindo e rotineiro emprego na livraria "Lûminis", que significa Luz em latim. Uma bela forma de iluminar nossas vidas, segundo as palavras de minha mãe.

Abro a porta e acendo as luzes. Ligo o aquecedor e começo a limpar as prateleiras e arrumar os livros que foram esquecidos ou que ficaram perdidos.

Meus olhos repassaram cada uma das palavras que se escondem debaixo dessas capas grossas, finas, ou com ilustrações. A leitura é outra forma de entrar em um mundo onde tudo pode acontecer, onde o incrível se faz possível, e onde o amor verdadeiro pode chegar a existir.

Estou soando como um adolescente deprimido. E é assim como me sinto na maioria do tempo. Deprimido. Sem motivos para quebrar a rotina, com muito medo para sorrir. Só. Seguro, mas sem surpresas. Como um adolescente deprimido, mas eu deixei de ser um adolescente a muitos anos atrás. Com trinta anos e contando a vida não me tratou bem.

Nunca fiz algo importante, nem consegui conquistar meu sonhos infantis.

Não esperava algo de mim. Eu só esperava sobreviver.

O único ser que havia me apoiado morreu, e com ele a estúpida ideia de querer ser artista. Mas, como meu pai um dia me disse, "Não se vive de sonhos". E o odiei. O odiei muito, e acredito que no fundo continuo tendo rancor por aquela frase. Mas ele tem razão, as ilusões não pagam o aluguel, nem os sonhos dão o que comer. É melhor ter algo certo e só deixar a vida passar. Sendo invisível e frio, para que não nos façam mal.

Suspiro. Meu queixo descansa sobre minha mão e meu cotovelo repousa no balcão e estou olhando para a rua pela grande janela do lugar. Uma mulher com cabelos brancos e armados havia ficado em frente a livraria sustentando flores coloridas em suas mãos. Em seus pés descansavam vários baldes com mais ramos de flores amarelas.

Sorriu com ironia e meus olhos reviram sem que eu possa evitar.

"Estúpido São Valentin"

Será que não veem que é só um truque para vender flores?

Um casal para em frente a mulher. Ele segura um buquê com flores brancas e vermelhas e a entrega para a garota de cabelo escuro que sorri e lhe dá um beijo nos lábios.

F R A G I L E » larryOnde as histórias ganham vida. Descobre agora