XXIII - Um homem de conclusões

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Ele acordou de madrugada: virou-se para um lado, virou-se para outro... mas inquieto, não conseguiu dormir. Abriu os olhos, sentou-se na cama por alguns minutos e em seguida foi até a janela, onde moveu as cortinas e observou lá em baixo que alguns carros já passavam, dando origem ao comércio ali próximo, abastecendo estoques, fazendo transporte de pessoas e máquinas, que daqui a pouco, iriam movimentar a economia de toda uma cidade.

Primeiro, abriu uma pequena fresta da janela pelo qual assobiou um vento gelado e fugaz, como é nos campos mais altos. Em seguida, com toda a força que tinha naquele momento – força essa que não era grande –, pôs-se a puxar a janela por completo. E foi ali, olhando para o nada no céu azul escuro, com um farfalhar de luzes tímidas no horizonte, que ele viu tudo. Viu a sua imagem, a imagem da sua vida, e viu o sentido que tudo fazia, até aquele momento.

Era um homem não muito jovem, perto dos seus sessenta anos. Nunca se casou, nunca teve filhos, morava sozinho desde a última crise econômica, quando perdera milhares de dólares em investimentos. Sua aparência era de cansaço extremo, arritmias cardíacas e início de esclerose – até ai, reflexos da péssima alimentação que tinha. Mas tinha um olho um pouco maior que o outro, os lábios apertados e finos, a barba branca, e as orelhas atentas como as de um gato. Era um homem concluído – se é que se pode concluir os homens –, mas, naquele momento, se sentiu como uma criança a ser ninada nos braços do universo.

Olhando para aquele profundo azul do leste, lembrou-se de quando era criança, e com isso lembrou-se também de tudo que tinha vivido até ali, como num curto filme de doze minutos, em que se podiam ver cenas dispersas.

Parecia que seu cérebro estava contaminado por eletricidade, que corria iluminando todos os inoportunos momentos de sua vida. As decepções, as perdas, as alegrias e frenesis.

Naquela dúzia de minutos de contemplação, ele chegou então a quatro conclusões:

Concluiu que viveu rodeado por pessoas que odiava, mas que amava por precisar odiar. Seu pensamento iluminou-se quanto a isso: ele precisava amar as pessoas, para odiá-las. Precisava ter apego e vontade suficiente para examinar, ainda que com pouca profundidade, a vida, ou as ações das pessoas, para notar algo errado e questionar isso. Condenar as pessoas por um, ou por vários erros, significava dar importância o suficiente para aquelas pessoas afim de que elas pudessem significar algum tipo de preocupação para ele. Anotou na memória aquela conclusão como: O contrário do amor, é o desprezo.

Concluiu que por mais que ele se afastasse das pessoas, as pessoas e a vida, em contrapartida, tentavam ainda mais se aproximar dele. Elas [as pessoas] entendiam que isso era um sinal de bondade, e que não é prudente deixar nenhum humano "à margem" da socialização. Quanto mais se afastava das pessoas, mais ele precisava delas para viver, para saber como se executam diversos procedimentos e práticas, uma vez que nenhum humano nasce sabendo do todo que precisa, e por mais que viva, permanece na necessidade de aprender. Anotou na memória aquela conclusão como: O afastamento é inversamente proporcional a proximidade das pessoas.

Concluiu que ele tinha vergonha do passado. Julgava que a sua evolução era diária, e que o único motivo pelo qual as pessoas o diziam que ele havia mudado para pior, era que eles não estavam acostumados com a nova versão do ser, e que ao voltar para tomar um café e conversar, sempre achavam um Ernesto diferente, e com isso, ficavam cada vez mais confusas, por não acompanharem a constante evolução daquele homem. A evolução diária, não é percebida tão facilmente, pois é muito pequena, e carrega elementos do cotidiano das pessoas que convivem ao redor – dando assim a impressão de que nada mudou, se não a ordem dos fatores. Anotou aquela conclusão como: É preciso uma parada brusca para se sentir o freio da velocidade.

E por fim, concluiu que não podia passar o resto da vida, analisando as pessoas todos os dias – antes mesmo que elas acordassem. Concluiu também que a análise não era boa. Justificando o exemplo da proximidade com os objetos a serem analisados, usou uma metáfora para si mesmo: não podia fazer um mapa de uma ilha, sem nunca a ter conhecido. Justificando a conclusão do mal de analisar, entendeu que a paranoia está relacionada intimamente com o saber. E que se não sabia, não podia ter paranoia, e seus dias fluiriam automaticamente – o que parecia funcionar para as pessoas "normais", que riam e se divertiam, sem nenhum tipo de melancolias a respeito de suas ações. Anotou aquelas conclusões como: Não devo fazer conclusões.

Quando terminou suas conclusões, o sol, já havia se desprendido do horizonte, e ele achou melhor, começar o dia, ao invés de voltar a cama. Foi trabalhar e no fim da noite, já não lembrava mais de nenhuma das suas conclusões, consequência do fato de ter anotado aquela última conclusão analítica. 

A Filosofia da MorteWhere stories live. Discover now