XXIV - O LOUCO, POR SI MESMO

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  É verdade que existem várias loucuras. A loucura do pó, a loucura de hospício, a loucura da idade, a loucura que ninguém diz que é doença. E também existem vários tipos de loucos. A louca que bate, a louca que grita, o louco que canta, o louco que bebe, o louco que a família esconde, o louco criativo, a louca tarada. São muitas loucuras. Doidos. São muitos. E somente uma pessoa sã pode chamar o outro de doido, quando lhe sai da normalidade. Ninguém se denomina louco, recebe esse título.

  Eu era louco quando acordava de madrugada, chorando, por causa dos pesadelos. Sonhava com pássaros, me atacando. Sonhava com muros, caindo. Sonhava com céus, se fechando. Sonhava com cordões de ouro a enforcar as pessoas que os usavam. Sonhava com sangue correndo entre meus dedos, e acordava, acordava gritando, nervoso, chorando, paranoia.

  E eu sempre me perguntava, o motivo de ser louco. Eu sempre me perguntava se deus realmente queria que eu fosse louco. A minha loucura não era genética. Minha mãe não era louca, nem meu pai. Meus irmãos, não eram loucos. Eu era o único louco. O primeiro. Eu me perguntava se aquilo não era normal, acima de tudo, e as outras pessoas viam como se fosse diferente. A loucura para mim era ver coisas que não existiam. Mas a mim isso não era um defeito, meus olhos tinham mais capacidade que os olhos deles.

  Mas eu começava a entender, algumas vezes, que por mais que aquilo fosse normal, não era. E isso me fazia mal. Me fazia mal porque eu me amarrava, eu me batia na parede, eu era louco. Me fazia mal porque eu me cortava, porque eu me jogava no chão, eu berrava. Eu era doido. Por natureza, fascinado pela minha loucura. Tinha prazer em enlouquecer, em me machucar e não sentir dor: quem sentia dor era o louco. Eu estava lá acima do louco a mil pés.

  E aí, quando eu percebi... eu já era o louco de viver trancado em casa, e as visitas chegavam, e ninguém queria dizer que tinha um louco morando em casa. E ninguém queria dizer que perdeu um filho para loucura. Perder um filho pras drogas era menos doloroso do que para a loucura. Morar na Cracolândia parecia ser menos pior que ter um doido morando no hospício. Eu era o louco que ficava no quarto olhando pela janela a moça bela lá em baixo. Eu era o louco sem remédio. Meus pais tinham medo de me levar no médico e ele dizer que eu era mesmo louco. É, é, que a verdade pode estar a um palmo do nariz, se você não quiser enxergar, ela não existe.

  Eu chorava. Eles choravam mais do que eu. É claro que eu não podia dizer a razão que eu não queria comer. Eram as vozes. Eu sei que eu não devia escutar elas, eu sei que é por causa delas que eu sou louco, mas elas estão certas, de alguma maneira, elas sabiam o que estava certo. Elas me diziam o que fazer, e algumas vezes eu fazia. Era como ter dois mundo em minha cabeça, e elas, floresciam com ardimento.

  Eu ficava com frio a noite, mas não me enrolava, por que o lençol estava cheio de laminas. E minha pele estava tão fininha. Qualquer coisa machuca. Eu era azul. As veias todas apareciam. Eu pensava que eles nem estavam nem ai pra isso não. Só queriam saber de esconder.

  Raiva, medo, loucura. Come, vai melhorar.

  Não posso, não posso. Tem crianças brincando no pátio. As crianças estão correndo... elas... estão morrendo. Me deixa sair. Eu não quero ficar aqui. Eu não aguento mais. Eu quero sair daqui. Eu prometo, eu vou ser bonzinho. Sai, não me pega. Não.

  Senhor Deus dos desgraçados. Tem pena de mim. Tem pena dos loucos.

  Três refeições por dia e era assim que eu sabia contar os dias. Um banho por semana e era assim que eu sabia contar as semanas. Uma limpeza de cela por mês e era assim que eu sabia contar os meses. Um dia de caridade por ano, e era assim que eu sabia contar os anos. 

  Morreu. Morreu de quê? De louco. 

A Filosofia da MorteWhere stories live. Discover now