Capítulo 4

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Olhando para o teto, Luzia não conseguia fechar os olhos e adormecer. Estava deitada na cama de Gustavo, de barriga para cima, refletindo sobre tudo que descobriu naquele único dia e refletindo também sobre a situação em que se encontrava. Quando imaginou que estaria na sociedade dos seres inferiores dormindo no mesmo quarto que um deles?

Conheceu mais sobre os homens, descobriu mais sobre suas vidas, viu que não eram como acreditava, mas, ainda assim, se sentia temerosa. Eram homens! Homens capazes de qualquer coisa. Esse medo não lhe deixava adormecer. Precisava estar atenta. Quem sabe se Gustavo não tentaria a atacar durante a noite? Era melhor estar preparada. Por mais que ele estivesse ressoando baixo há alguns metros dela, deitado no chão, nunca se sabia quando poderia acordar, levantar e vir em sua direção.

Luzia encarou o teto e suspirou. O forro começava a ceder à força da gravidade e se inclinar em direção ao chão. Seus olhos já adaptados a pouca luz, distinguiam manchas de bolor pelos cantos das paredes e pelo teto. Algumas rachaduras se faziam presentes pela parede também, em companhia com as tintas descascadas. Como podia um local daqueles ser habitável? Como Gustavo conseguia morar em um lugar tão precário e com tão poucas coisas? Ele não tinha nem um computador ou celular!

"Eles são seres inferiores", ela tentou se convencer. Merecem isso e mais um pouco. São violentos, irracionais... Não dariam certo em um mundo como o delas. E ela mesmo presenciou aquela tarde a diferença entre as duas sociedades. Os homens eram maus por natureza, o mundo deles era nojento e sujo por natureza. Seus impulsos eram fazer mal um para o outro. Por isso precisava dormir ali. Se fosse diferente, se eles fossem como elas, Luzia poderia voltar para sua própria sociedade a hora que quisesse e sem correr perigo nenhum.

Mas o que foi mesmo que Gustavo havia lhe dito na conversa que tiveram após o jantar? Que havia uma única diferença entre eles e elas. O que ele queria dizer com isso? Qual era a diferença? A menina passou a noite buscando uma resposta para aquela pergunta. Havia muito mais diferenças que apenas uma. Gustavo estava esquecendo-se de todas as outras.

Nos primeiros raios de sol que iluminaram o pequeno apartamento, Gustavo acordou e se colocou em pé, seguido pelos olhos atentos da menina, que ainda não havia cochilado um minuto que fosse. Após se preparar para mais um dia, os dois comiam um pedaço de pão seco e bebiam uma xícara de café fraco, gelado e sem açúcar, quando Luzia deu vasão ao que lhe atormentava:

— O que eu vou fazer agora? — perguntou ela ao tomar um gole da terrível bebida.

— Você não ia comigo pra fábrica, trabalhar e conhecer mais do nosso mundo?

— Tem certeza? Ninguém vai me notar?

— Não. É claro que não. Apenas vista o uniforme que te entreguei ontem. Vou achar um boné pra esconder seu cabelo. — Ele pensou por algum tempo, olhando para a sandália nos pés dela. — Acho que tenho um par extra de coturnos também. Você poderá colocar. Ninguém vai te notar na fábrica. Apenas fique do meu lado e faça o que eu fizer.

— Tá.

Terminaram o café, e logo seguiram pelas ruas da cidade já iluminadas pela claridade solar. Junto a eles outros homens seguiam andando, todos na mesma direção, para mais um dia de trabalho rotineiro. Mal notavam o que se passava ao seu redor, apenas seguiam andando sem muita vontade. Isso permitia a Luzia uma certa segurança e possibilitava também que observasse melhor os prédios e estabelecimentos da sociedade inferior, agora à luz do dia.

Não eram muito diferentes do que ela havia visto na noite passada. Construções médias, geminadas e padronizadas ocupavam todo o espaço disponível. Todas feitas de alvenaria, tinham o reboco e a pintura descascando e caindo, muitas com rachaduras em suas estruturas, esquadrias e vidros quebrados, assim como muito lixo depositado próximo as fachadas.

A Liberdade que LimitaWhere stories live. Discover now