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Essa é a minha casa desde que eu me entendo por gente, não morei em nenhum outro lugar nem mesmo depois do acidente. Meu pai nunca falou em mudança, acho que porque ele sabe que todas as memórias que tenho da minha mãe estão aqui, entre essas paredes, é pra cá que minha mente me traz sempre que penso nela.

Eu não fazia ideia do tamanho do meu apego emocional por esse lugar até vê-lo vazio, até ver as caixas e o caminhão de mudança, eu sabia que iria doer, mas não tanto como dói agora. Tudo isso parece tão errado, parece tão injusto, não quero e nem gosto de soar como uma criança mimada, mas não consigo me expressar de outra forma agora. Nada disso tem a ver comigo no fim das contas, não é sobre mim e em algum momento eu teria que sair dessa casa mesmo, não sou mais criança, sei disso, posso aceitar isso.

Mas de jeito nenhum consigo tirar de mim esse ressentimento, essa agonia que me tirou o sono na noite passada, a sensação de estar falhando com a minha mãe, de estar permitindo deixar que uma parte da sua história seja deixada para trás. Permitir que sua memória se perca um pouquinho mais até que não tenha mais ninguém para falar sobre, para contar histórias das quais ela protagonizou, lembrar de como ela era e das coisas que gostava de fazer, aceitar que tudo isso seja deixado para trás para dar lugar a novas pessoas, novos personagens, novas histórias, e quando os anos avançarem, não teremos nada a dizer sobre ela, apenas sobre os rostos novos e suas histórias. Tudo sobre ela já se perdeu de alguma forma, não faria muita diferença abrir mão disso também.

Eu sequer me lembro do som da sua voz, não tenho mais memórias sólidas o suficiente, as coisas não passam de flashes e borrões na minha mente, algumas mais nítidas que outras, quase não consigo distinguir algumas de sonhos. Quando eu era criança pensava nela o tempo todo, eu tinha muitas memórias com ela, e de um dia para o outro quase tudo se foi, de repente tudo se tornou apenas meu pai e eu, como se ela nunca estivesse estado ali. O tempo nos tira absolutamente tudo, e eu nunca vou me acostumar com isso.

Percebo que estou a tempo demais encarando minha mochila aberta, quando salto de susto ao sentir a mão do meu pai no meu ombro. Aperto os olhos, tentando acalmar meu coração, para quando voltar a abri-los encontrar seus olhos estreitos sobre mim.

– Tudo bem? – sua voz soa mais baixa do que o de costume e isso me faz pensar que ele está começando a se preocupar comigo, o que não é bom – Eu estou te chamando há um tempão e você não responde, o que foi?

– Nada – balanço a cabeça de forma ligeira – Não dormi durante a noite, é por isso – e não estou mentindo, se eu dormi mais de três horas na noite passada ficarei surpreso, mal fechei os olhos e já estava ouvindo o despertador, me forçando a ficar de pé.

– Você precisa parar de virar a noite acordado, sabe o quanto isso faz mal?

– Eu sei.

– Então por que continua fazendo isso, moleque idiota?

Acabo rindo com sua pergunta. Tudo é sempre muito simples para ele, se algo está errado, apenas conserte, foda-se todas as dificuldades, os medos, as inseguranças. Ele sempre diz que eu enxergo problema onde não tem, que eu complico muito a vida, e por isso eu costumo pensar muito em suas palavras em certas situações da vida, sempre que algo parece difícil ou desafiador demais, me pergunto se é mesmo esse bicho de sete cabeças, se eu preciso mesmo fazer todo esse drama. De todo modo, não funciona, porque eu sempre serei propenso a surtar antes de tomar qualquer iniciativa, não sei viver a vida a não ser assim, e é por isso que durante todas as minhas cenas dramáticas ele me chama de "idiota emocionado".

Logo depois ele desata todos os nós que para mim era quase impossível de se fazer, aos olhos dele tudo é sempre tão simples que muitas vezes me senti um doido exagerado, como se estivesse fazendo tempestade em copo d'água, não sei se meu pai é um bom ouvinte ou um bom conselheiro para os outros, mas para mim tudo o que sai de sua boca se adequa muito bem, talvez seja porque para ele eu sou quase um livro aberto. Ele me desvenda muito rápido, isso nem sempre é bom, mas não deixa de ser um  fato, e talvez por isso conversar com ele sobre coisas que me tiram o sono me tira um peso enorme das costas.

VANTE: GIRASSÓIS DE DANTEOnde as histórias ganham vida. Descobre agora