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Sou atraída por uma força sobrenatural. Abro a porta da minha sala de artes. Dessa vez não a visito apenas para observar as obras ou arrumar a bagunça que quase sempre esta presente nela, com respingos de tinta aqui, pontas de lápis ali. Deixo a caixa lotada de Hot Filadélfia, que o Sr. Nishimura me deu como cortesia, em cima da mesa. Alcanço um dos pincéis que mais uso. E começo a colocar tudo para fora, estampando a tela sem nem mesmo fazer o esboço de costume.

As nuvens são mais escuras de propósito. Passando até o tom das que vi algumas horas atrás. As cores vão de tons cinzas à azuis. Com formas fofas e rechonchudas semelhantes aos algodões doces que vendem na praça próxima do café. Dou inicio aos pássaros espalhados organizadamente. Voando pelo céu em forma de triângulo enquanto desviam dos raios que estão por todos os lados.

Consigo sorrir, mesmo querendo pintar outra coisa em especial. Minhas lembranças de seu rosto se apagam, e sei que não seria possível nem mesmo copiar umas das pinturas já feitas. Afasto o cabelo do rosto enquanto mais ideias aparecem em minha mente devido a inspiração magnífica que me envolve. Uma que nunca tive antes. Tanta vontade de dar vida ao branco sem graça. É tão forte que não consigo controlar, e nem quero.

Me assusto ao ouvir a campainha. Se encontrar o corredor vazio novamente, farei questão de tomar uma atitude sobre essas crianças nada parecidas com anjinhos que me perturbam. Caminho batendo o pé pela casa. Uma garota baixinha está parada em minha porta.

- Shizuki?- Tento formar um sorriso enquanto me pergunto como sabe onde moro.

- Maya!!- A mesma entra e me surpreende com um abraço.- Gostou da surpresa? Trouxe chocolates. Esses aqui são os meus preferidos.

- A-ah, claro que gostei.- Me encolho um pouco constrangida. Seguro a caixa e ela caminha pela sala.- Vou fazer questão de deixá-los longe de você então.- Forço a risada para acompanhar.

- Seu rosto está sujo de tinta.- Comenta entre algumas gargalhadas a fazendo ficar mais fofa.

- Isso sempre acontece.- Reviro os olhos e ignoro.- Como se as mãos já não fossem o bastante.

- Por que? Você pinta??- Se anima como se tivesse acabado de receber a melhor notícia do mundo. Fica mais eufórica quando confirmo.- Eu amo artes! Não sou boa com pinturas, desenhos, esculturas e coisa e tal, mas amo.

- Todos somos verdadeiros artistas. Cada um tem seu estilo, algumas vezes não conseguimos enxerga-lo porque precisa ser procurado mais a fundo.- Fico admirada com seus olhos brilhando e quase gritando interesse no assunto.

- Assim crio esperanças.- Brinca.- Mas sou fotógrafa, a minha área na arte é essa.- Dessa vez meus olhos é que devem estar contendo uma constelação de tão brilhantes.

- Não acredito! Sou apaixonada por fotografia. Era uma das minhas obsessões da adolescência, mas como as outras, acabou perdendo para a pintura e o desenho.

- Podemos dar aula uma para a outra!- Os pulinhos são tão leves que nem fazem barulho no chão. Concordo animada também.- Eu posso ver?

- Ver o que?

- O quadro que está fazendo.- Sorri e súplica ao mesmo tempo.

- Na verdade, eu já terminei ele mas...- Olho algumas vezes insegura para o corredor. Ela nota e vai em sua direção.- Shizuki, espera!- Quando a alcanço já é tarde.

- Que incrível!- Sua voz sai como um eco fraco e meu estômago revira. Me sinto exposta.- Isso é magnífico.- Se refere ao que acabei pouco antes de sua chegada.

- Obrigada...- Abaixo o olhar para evitar o seu.

- Quem é?- Meu corpo gela quando a pergunta chega em meus ouvidos e seu dedo aponta para ele. O quadro do chão, ao lado de outro e mais outro e mais outro. As folhas com desenhos de seus mínimos detalhes. E eu não tenho escapatória.

- É só uma pessoa que vi uma vez.- Me apresso e junto os papéis que estão por cima da mesa e coloco os quadros atrás da minha fileira infinita de telas.

- Não que possa julgar alguma coisa, mas é como se o quadro que acabei de elogiar não chegasse nem aos pés desses.- Se aproxima para dar uma última olhada.- E não parece ser só uma pessoa para você.- Faz pausa esperando uma resposta da minha parte, mas ela não vem.- Se for alguma história de amor, me conta por favor, por favor.- Rio do jeito que pede, mas ainda assim tenho a sensação de estar de frente para uma plateia e sem as peças de roupa que tanto gosto de ter cobrindo meu corpo.

- Não é bem assim...

Eu gosto do simples. Gosto de olhares honestos e cheios de paixão. Piadas sem graça que acabam causando sorrisos sinceros. Conversas aleatórias que tem o poder de fazer a hora passar voando. Abraços apertados e quentes que são melhores que qualquer remédio. Eu gosto do que é verdadeiro. Eu gosto da gentileza presente em cada gesto, especialmente no menor deles. Eu gosto do altruísmo. E mesmo que esteja em falta hoje em dia, acredito que pessoas repletas de tudo isso e muito mais podem cruzam nosso caminho.

Sempre quis isso. Que elas continuassem comigo. Mas afastei todas, sem contar as que fizeram isso por conta própria. Parece que não sou lá a amiga que alguém gostaria de ter. Meu medo de me entregar a uma amizade e perder a pessoa depois me consome. Mesmo que eu ainda olhe para os outros com vontade de ter o mesmo que eles possuem.

Eu daria conselhos, cuidaria de seu coração partido por um ser humano sem sentimentos. Faria companhia sempre que possível. Ouviríamos nossas músicas prediletas e teríamos maratona de filmes românticos para assistir comendo sorvete com direito a até algumas lágrimas. Tentaria ser engraçada, mesmo sendo péssima nisso. Viajaríamos juntas, conversaríamos até não conseguirmos mais manter os olhos abertos. Nossos segredos seriam compartilhados assim como presentes inesperados e significativos sem a necessidade de datas especiais. E nossas promessas seriam todas cumpridas. Cozinharíamos e eu faria questão de cuidar sozinha da sobremesa porque sempre fui ótima com doces. Faríamos maquiagem uma na outra. Eu veria tutoriais para aprender a fazer trança embutida mesmo achando uma das coisas mais complicadas do mundo. Gastaríamos nosso dinheiro com roupas e eu daria notas para os looks que montasse. Teríamos pulseiras ou até mesmo cordões para simbolizar nossa amizade que desejaríamos não acabar nunca.

Mas por outro lado, eu seria ciumenta demais. Teimosa demais. Bipolar demais. E ficaria insegura sobre nossa amizade. Ela me mostraria que podemos vencer todos esses defeitos. Pediria desculpas até quando não fosse culpa dela. Ficaria sem jeito e começaria a dizer que eu que sempre fui paranóica. Brigaríamos, choraríamos, sorriríamos, viveríamos e cresceríamos juntas nesse mundo complicado.

E isso tudo aconteceria sem percebermos.

A questão é que eu tenho medo. Medo da intensidade que uma ligação pode ter. Por isso me afasto, sumo, desapareço. Porque pessoas vão embora. Elas te decepcionam. Eu não quero nada que não seja para durar para sempre. E sei que se nunca tentar, não saberei, mas não é culpa minha. Isso nem mesmo entra na minha lista de defeitos. Porque aprendi a ser assim, sozinha. E foi dessa forma que amadureci, me tornei mais forte.

Apesar de tudo, Shizuki continua aqui. Ignorando minha reação estranha com sua visita e sem ter esperado eu me decidir se a deixaria entrar em minha casa ou não. Está na minha sala de desenhos e prestes a descobrir o segredo sobre meus sonhos, minha estrela, meu anjo.

E vejo pela primeira vez alguém continuar presente. Sem se importar com minha forma de lidar com pessoas e com aproximações. Apenas continuou a perguntar curiosa sobre ele e eu senti que a minha mais nova e única amiga seria uma ótima ouvinte para as coisas que não desabafei com mais ninguém.

Sky. {Mingyu} EM MUDANÇAWhere stories live. Discover now