Parte 08

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Não haviam muitas áreas verdes na cidade real, ao menos não dentro dos muros. Raquel adorava estar no meio da natureza, sentir a grama em seus pés, a brisa fresca, o cheiro das árvores. Por isso, era comum pegar um cavalo e seguir para o bosque mais próximo de Cáhida, ou até mesmo alguma floresta mais adiante. Não podia fazê-lo sozinha, apesar de insistir o contrário. Seu pai estava convencido que qualquer membro da família real não poderia sair do palácio desacompanhado. Raquel tivera de admitir a lógica deste argumento, assim, estava deitada na grama em uma clareira a poucos quilômetros de Cáhida lendo um livro, cercada por três guardas. Raquel havia ao menos convencido o pai de deixá-la escolher quem a acompanharia.

Crescendo na cidade real, a princesa tivera poucas opções de crianças com as quais poderia fazer amizade. Os filhos de nobres não costumavam agradá-la, sempre os achava bobos e completamente presos em seus pequenos mundinhos de humanos ricos de Cáhida. Ela, junto de Leonel, preferira brincar com as crianças do palácio, os filhos das cozinheiras, dos criados, dos soldados. Eles a ensinavam jogos mais imaginativos, divertidos. Brincavam de pique, inventavam contos e os encenavam, construíram cidades inteiras usando pedras ou qualquer outro material que conseguiam pôr as mãos, e brincavam com seus bonecos. Muitos já haviam morado em outras cidades, convivido com sujeitos de todo o tipo de raça e contavam histórias interessantes sobre suas experiências, ou que haviam escutado dos outros. Raquel se divertia muito mais do que praticando esportes cheios de regras e frescuras com crianças engomadinhas que não queriam sujar as roupas costuradas à mão com fios de ouro. Sequer pareciam crianças.

Com o passar do tempo, alguns de seus melhores amigos haviam se tornado soldados, e eram eles que a acompanhavam toda a vez que saía da cidade. Emanuel, Iago, Henrique e Lorena; formavam um grupo habilidoso e muito bem treinado. Seus capitães haviam afirmado que a amizade com a princesa não comprometeria o seu trabalho, confiavam nos soldados, e o Rei havia aceitado que protegessem sua filha.

— O que você está lendo agora? — Emanuel perguntou. Andava de um lado para o outro da clareira, inquieto. Não conseguia deixar seu posto de vigia nem por um segundo, nem mesmo quando o trabalho era cuidar de uma amiga.

Raquel mostrou a capa do livro, que continha o título "O Machado Brilhante e outras histórias".

— É uma coletânea de lendas de anões. São divertidas.

— Sério? Mais do que as nossas? — Lorena perguntou, sentando de pernas cruzadas à frente da princesa.

— Não sei se são melhores que os mitos humanos, mas são diferentes. Não escutei vinte mil vezes cada uma delas.

Lorena pediu que a princesa contasse uma das histórias. Do jeito que estava sentada no chão, parecia uma criança, ainda mais por estar tão animada e sorrindo. Mas essa era Lorena, sempre feliz.

Raquel surpreendeu-se e não respondeu de imediato. Torceu o lábio, tentando lembrar bem de algum dos contos que já tinha lido, e pensando qual sua amiga poderia gostar mais. Escolheu a história de Ilde, uma jovem anã com um entusiasmo e força que combinava com Lorena.

— Ilde era filha de um ferreiro bastante habilidoso. — a princesa começou. — Um dia seu pai, que se chamava Taklinn, trabalhava em uma armadura de placas que tinha sido encomendada, e caprichava bastante; era um presente para um nobre e queria impressionar. Em seu esforço, tentando criar algo perfeito, forjou algo mágico. O metal adquiriu um brilho fraco e esverdeado, que Taklinn não compreendeu por completo, mas soube logo que havia feito algo incrível. Ilde, sua filha e treinada desde pequena nas artes do combate, testou a armadura. Seria melhor poder entregá-la sabendo exatamente do que era capaz.

Iago deu uma risada. Raquel sabia exatamente o porquê, o soldado não acreditava em objetos mágicos. Nunca tinha visto um na vida e achava que, se o Rei não possuía nenhum, não deveriam existir. E não era como se ele soubesse de todos os pertences de Lázaro, Raquel tinha certeza que a sala gigantesca no topo da torre, guardada por uma enorme porta de madeira e ferro, guardava mais que só ouro e joias. A princesa revirou os olhos e deu um chute leve na perna do amigo, que estava deitado na grama, ao seu lado. Continuou a contar:

— Quando Ilde vestiu a armadura, sentiu-se ao mesmo tempo mais forte e mais leve. Começou a testar seus poderes, viu que corria mais rápido, pulava mais alto e batia com maior força. Ilde acreditou que havia se tornado invencível. Taklinn ficou orgulhoso, era o maior e melhor trabalho já feito por um ferreiro da região, a armadura transformava aquele que a vestia em um deus. Na semana seguinte, entregariam para seu comprador, e Taklinn a guardou com três cadeados em um grande armário. Ilde achou que era um desperdício manter aquela peça maravilhosa trancafiada e, enquanto o pai dormia, pegou a armadura para si.

— Ela roubou do pai? — Lorena perguntou, tinha as sobrancelhas erguidas.

— Ela apenas pegou a armadura emprestada. Ilde queria aproveitar aquela semana para fazer algo heróico, queria usar a magia da armadura para ajudar seus irmãos. Ela se lembrou das minas de Ruhmir, uma magnífica cidade subterrânea criada por anões que havia sido controlada por goblins, e foi em sua direção. Equipada com apenas um martelo e um escudo, também forjados por seu pai, Ilde entrou na antiga cidade e eliminou os goblins um por um. No fim do quarto dia, a anã havia, sozinha, liberado a mina dos seus invasores, graças ao poder da armadura. Ela se tornou uma heroína, aclamada por gerações.

Lorena parecia bastante interessada.

— E a armadura? — ela perguntou. — Ela pôde ficar com ela, ou entregaram para um nobre qualquer?

Raquel sorriu. Explicou:

— Quando o Taklinn viu que a armadura tinha sumido, começou a forjar outra. Sabia que tinha sido a filha e não considerou como um roubo, mas teve receio dela não voltar a tempo, ou estragar a armadura original. A segunda que criou não era mágica, mas era linda e muito bem feita. O nobre, que nem sabia da armadura mágica, ficou com essa e achou maravilhosa. Mas Ilde também não pôde ficar com a armadura, os anciões da seu clã decidiram que era algo poderoso demais para deixar com qualquer um, e mais uma vez ela foi trancada em um armário. A armadura seria usada apenas pelos reis ou rainhas, quando uma batalha importante fosse acontecer.

— Que sem graça. — Lorena falou. — Se Ilde fez algo incrível com a armadura, deveria poder ficar com ela.

A princesa assentiu.

— Pelo menos na história podiam deixar assim. — disse.

Lorena deu de ombros e se levantou, estava na hora de voltar ao trabalho. O quarto guarda, Henrique, rondava o perímetro da clareira. Foi juntar-se a ele. Emanuel continuou de pé ao lado da princesa, a mão no pomo da espada, preparado para algo que não tinha grandes chances de acontecer. Apenas Iago continuava relaxado, mas tinha seus objetivos. Esperou Emanuel se distanciar um pouco e falou com Raquel, em voz baixa.

— Escoltei seu tio para outra reunião há dois dias.

Raquel levantou os olhos do livro. Observou Emanuel a alguns metros de distância, Iago só havia começado a conversa por que o outro soldado estava longe demais para escutar.

— Ele foi com outros membros da Virtude para um jantar com o Barão de D'tar. — Iago continuou.

D'tar era uma cidade de porte médio. Seu Barão era um meio-elfo, mas seus habitantes eram de todas as raças possíveis e imagináveis.

— Como foram recebidos? — a princesa quis saber.

Iago torceu os lábios, seu olhar estava perdido em algum ponto na grama.

— Bem demais para uma cidade que não é de maioria humana.

Raquel assentiu. Era raro um meio elfo seguir a religião de seu parente humano, o Barão se relacionar com a Virtude era algo estranho.

— Eu não gosto dessa situação.

Iago não gostava mesmo era do irmão do Rei. Não sabia dizer ao certo por que, sua família sempre fora devota, ele tinha costume de ir aos cultos e seguia os ensinamentos religiosos da melhor forma que podia, todo o ambiente ao seu redor o levava a adorar Zaras e seu trabalho. No entanto, por algum motivo obscuro, não conseguia simpatizar com a ordem do príncipe. Raquel também não tinha tanta confiança em seu tio, por isso pedia que o amigo o mantivesse sob vigilância.

— Nem eu, mas enquanto ele estiver ocupado com a Virtude, não vai ficar importunando meu pai com suas opiniões. — ela disse.

O soldado deu de ombros. Sua expressãocontinuava carregando preocupação.

Livro 1 - A Elfa, O Homem e a Ordem [completo]Where stories live. Discover now