Capítulo IV - O Homem da Virtude [Parte 12]

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Os aposentos reais eram grandiosos, como se poderia esperar. O palácio de Cáhida ocupava quase metade dos limites da cidade, tinha um tamanho impressionante, que era reproduzido nos muitos quartos e salas. Era costume da nobreza humana que o homem e a mulher tivessem aposentos separados, para que pudessem manter sua privacidade. Dessa forma, o Rei e a Rainha, cada um, tinha um enorme quarto, aposentos pessoais para receber visitas, salas de banho, e locais específicos cheios de espelhos e armários onde guardavam todas suas vestimentas. Fora tudo isso, havia também o quarto do casal, pois Lázaro e Valéria, ao contrário da maior parte de sua corte, preferiam passar a maior parte de seu tempo livre juntos.

Lázaro não estava acostumado com seu quarto, nem mesmo a decoração lhe agradava. Haviam muitas obras de arte, as paredes pareciam poluídas. Tapeçarias sem fim, bustos de homens que o Rei não se lembrava quem poderiam ser, vasos de cerâmica grandes demais para ter qualquer utilidade. Deitado em sua cama, sem ter muito o que fazer, Lázaro se perguntava quem havia gasto todo aquele dinheiro. Decidiu que mandaria vender tudo aquilo. E que tirassem as pavorosas cortinas pesadas, de um azul marinho que fazia parecer que seu quarto estava eternamente com a lua. Tudo bem que chovia, e o sol escondia-se por detrás de muitas nuvens, mas o Rei decidiu que as cortinas tinham a maior culpa do quarto estar tomado pela escuridão.

Teve outro acesso de tosse. Estavam ficando cada vez mais comuns. Suspirou, desejando que Valéria retornasse logo da reunião com os conselheiros. Queria a companhia de sua Rainha.

Quando a pesada porta de madeira se abriu, Lázaro ergueu o corpo alegre esperando ver o rosto sorridente de Valéria, mas encontrou apenas a face ossuda e com a eterna careta de seu irmão. Zaras parecia estar sempre sentindo algum cheiro ruim, quando não trazia seu sorriso torto zombeteiro. Lázaro deixou o corpo relaxar sobre a cama, sendo engolido pelos muitos travesseiros. Se fosse criança, tentaria se esconder do irmão por entre os cobertores e almofadas.

— O que foi? — Lázaro perguntou, sem esconder a irritação na voz.

— E precisa de alguma coisa? Não posso só ter vindo visitar meu irmão? — Zaras falou, ao se aproximar da cama. Sentou-se em uma poltrona, ainda um pouco distante do Rei.

— Você não me procura quando estou bem, por que viria enquanto estou tossindo sangue e talvez passando a doença pros outros? — Lázaro respondeu, e depois tossiu.

Zaras deu de ombros.

— Ok, certo. Vim me gabar, eu acho.

Lázaro revirou os olhos, não disse nada. Não tinha interesse nos feitos do irmão. Zaras esperou por pouco tempo antes de continuar a falar:

— A Virtude fez um excelente trabalho em D'tar, com ajuda do Barão, é claro. Foi impressionante a quantidade de criaturas que se interessou pela nossa religião. Você precisava ver, cheguei a ver um anão desfilando pelas vias com uma cruz de madeira no pescoço!

Lázaro se perguntou se a felicidade de Zaras não estava mais relacionada a quantidade de cruzes de madeira ou de prata que haviam vendido, do que com a conversão dos seres à religião humana. Não disse nada disso, como talvez dissesse no passado. Mantinha-se afastado de discussões, agora que sua garganta reclamava a cada fala.

— Parabéns, irmão. Fico feliz com seus avanços.

Havia pouca animação e um tanto de desdém em sua voz, mas Zaras ignorou.

— Agora, além da grande maioria das cidades humanas, a Virtude também está ganhando força nas cidades mistas. É um avanço e tanto. Educar humanos é fácil, quando eles não creem em Deus eles costumam cultuar o sol, ou algo do gênero. Todas essas crenças são possíveis de encaixar na nossa religião de alguma forma, e fica simples. Não é o melhor dos casos quando eles mantém a adoração desnecessária ao sol, mas pelo menos participam de nossos cultos, já estão no caminho para salvação.

Ou para lhe fazer doações e pagar impostos, Lázaro pensou.

— Mas os anões são cabeça dura — Zaras continuou —, eles são cismados com a heresia que eles chamam de deus, a tal da alma da montanha, e se recusam a acreditar. Você não imagina a minha alegria quando vejo que conseguimos converter algum deles.

Lázaro não conseguia imaginar mesmo. Tinha pouco interesse na religião, mantinha suas conversas solitárias com Deus, mas não gostava do tratamento que Zaras e seus padres davam a coisa toda. A obrigatoriedade, as dívidas, a quantidade enorme e confusa de procedimentos que eram realizados e repetidos a exaustão para cultuar Deus. Não, o Rei preferia sua pequena capela, simples, mas bonita e quase sempre vazia. Zaras fazia questão de celebrar todas os cultos importantes na igreja alta e cheia de decorações exageradas que ele havia construído fora dos muros do castelo, então a capela de pedra do Rei estava sempre sossegada para que ele rezasse em paz. No máximo com Valéria junto.

— Houve um jantar excelente também. — Zaras continuou.

Mas é claro, o Rei pensou.

— Você não imagina meu orgulho. O palacete do Barão de D'tar é uma construção linda! E ver o nosso estandarte estendido ali, foi impactante.

O estandarte da Virtude era uma águia em meio do voo, vista de frente, um ângulo que Lázaro achava estranho. O propósito era que as asas do animal formassem a letra "V", mas não havia funcionado muito bem e, à distância, chegava a parecer uma criatura com chifres. Zaras acabou por inserir a letra "V" nos estandartes, abaixo da águia. Não era uma imagem muito amigável, difícil de imaginar que ajudaria na conversão daqueles que Zaras chamava de descrentes.

— Imagino que tenha sido esplêndido. — Lázaro disse, ao perceber que estava calado havia muito tempo. Poderia ao menos fingir que prestava atenção no irmão, não poderia?

— Ah, e como foi. — Zaras exclamou, se levantando. Começou a caminhar pelo quarto. — O Barão se comprometeu com a nossa causa, ofereceu suas propriedades como fortaleza, caso necessário, e até mesmo seu exército privado. A maior parte é de mercenários e não de seguidores, mas imagino que o dinheiro também seja uma boa motivação.

Lázaro franziu o cenho. Sentiu algo em seu interior soar um alarme.

— E por que a Virtude precisaria de um exército?

Zaras deu seu sorriso, que fez o irmão sentir um calafrio na espinha, mas então deu de ombros, acalmando o Rei.

— Também não consigo imaginar. Talvez escolta? Se bem que para isso já temos alguns guardas pagos. De qualquer forma, é a simbologia da oferta, não acha?

Lázaro assentiu, ainda cuidadoso. Duvidou seacreditava ou não nas palavras do irmão, pensou em fazer mais perguntas, masoutra crise de tosse, dessa vez com sangue, o distraiu, e esqueceu doassunto. 

Livro 1 - A Elfa, O Homem e a Ordem [completo]Where stories live. Discover now