Parte 24

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Ara adentrou a pé a pequena vila sem nome próxima à Ponte de Pedra. Deixou seu cavalo em um estábulo nos arredores e seguiu a passos lentos, como se não tivesse um lugar específico para ir. Usava capuz, os poucos fios de cabelo que escapavam estavam tingidos de negro. O rosto não era completamente o seu, mas, como a vila da Ponte de Pedra era um lugar de passagem, por onde todo o tipo de viajante cruzava, não havia tanta necessidade de disfarçar os traços élficos. Sequer precisava disfarçar suas armas.

Caminhava nos passos treinados, que Maguí havia lhe ensinado, e observava seu arredor. Revisava em sua mente o que havia aprendido, foram dois sóis intensos nos fundos da Taverna do Corvo Branco, mas Ara mal havia visto o tempo passar. Ficou entretida com um treinamento muito diferente do que estava acostumada, uma técnica muito mais sutil, mas também de grande precisão.

Maguí a ensinara a pintar.

Ao ser informada de qual era a habilidade que a humana queria lhe ensinar, Ara havia ficado confusa. A imagem que lhe veio na cabeça foi das grandes telas que vira em casas humanas, retratando paisagens ou flores, e muitas vezes até os próprios humanos. Pensou também nas gravuras dos poucos livros que ficavam em Lannuaine, mais próximo, porém ainda não era do que Maguí falava. Trabalharia no papel, apesar de sem as gravuras — os documentos que começaria a recriar não costumavam ter muitos desenhos — mas está não era a sua tarefa mais relevante. Ara teria de aprender a pintar o seu próprio rosto, bem como o dos outros.

O primeiro estágio era conseguir se fazer passar de humana. Fora bastante divertido usar o rosto de Anluath como tela, e em algum momento Ara havia conseguido fazer com que suas linhas com características élficas fossem se tornando menos acentuadas. Precisaria, também, ter a capacidade de transformar o rosto de uma humana, para dar-lhe outra aparência. Essa parte treinou em Maguí, que fazia o máximo para atrapalhá-la. Tinha conseguido, no fim das contas, ao menos com o mínimo de segurança necessária para realizar um primeiro e simples trabalho.

Os documentos Maguí poderia criar, por enquanto. Era capaz de papéis nem mesmo se moestrarem necessários. Carstvo, como a humana se referia a Talmhainn, não demandava tanto documentos de seus habitantes. Mas os disfarces, como Maguí chamava as pinturas nos rostos, não duravam muito, e por isso Ara precisava aprender a fazê-los ela mesma. Por isso dois sóis foram necessários até que Ara partisse para a vila perto da Ponte de Pedra.

A viagem, ao menos, não tinha demorado muito, e logo a elfa seguia pelas ruas sinuosas da vila, que subiam uma colina se afastando cada vez mais da Ponte. Ara caminhava invisível a quase todos, mas uma mulher a observava ao longe, seguindo-a.

O destino final da elfa era uma cabana construída com barro, não muito grande, nem pequena, um pouco afastado das vias mais centrais daquela vila sem nome, chegando a beirar o bosque. Ara empurrou a porta de madeira, que não tinha nenhum tipo de trava e entrou na escuridão da casa. Com o mínimo de movimentos possíveis, retirou de sua manga uma adaga, que estivera amarrada junto ao seu antebraço. Preparou-se.

A mulher que entrou na cabana logo em seguida não emitiu qualquer ruído, nada teria delatado sua posição, se Ara não já soubesse que estava vindo. Enquanto a humana erguia sua própria adaga, pronta para enterrá-la nas costas da elfa, Ara girou o corpo sob seus calcanhares e levantou sua arma. No silêncio daquela cabana afastada das ruas, o tilintar das lâminas se chocando ecoou alto.

Ara sorriu, a humana riu em resposta.

— Acho que não preciso me apresentar? — a mulher perguntou.

Não precisava. Seu nome era Iolanda, ninguém tinha conhecimento do nome da família. Assim como todos aqueles na lista que Ghrèin havia repassado para Ara, Iolanda havia anteriormente trabalhado com a Virtude, mas, ao demonstrar seu desejo de se afastar da ordem, tinha sofrido diversas ameaças e atentados.

— Bom, eu preciso — Ara disse. — Você deve achar que fui enviada pela Virtude.

Iolanda ergueu as sobrancelhas, baixou sua adaga, mas não abandonou uma posição de alerta. Se a mulher fosse tão boa quanto as informações de Ara sugeriam, fazia pouca diferença aquela arma estar erguida ou não. Felizmente, o mesmo poderia ser dito da elfa, que então ergueu os braços e girou a adaga em sua mão, mantendo-a em uma posição de aparência menos ofensiva.

— E não foi a Virtude que te mandou? — Iolanda perguntou.

Ara fez uma careta. Calculada.

— Foi. Mas isso não quer dizer que eu planejo executar o pedido deles.

Iolanda riu.

— E por que eu deveria acreditar em você? — ela perguntou.

— Você vai atirar essa adaga em mim se eu tirar minha mochila das costas? — Ara rebateu.

— Só se você se movimentar de forma estranha. — Iolanda deu de ombros.

A elfa carregava uma sacola em um dos ombros, inclinando o corpo, deixou que caísse no chão, e chutou em direção à humana.

— Aí dentro tem documentos. Para mim e para você. E material o suficiente para mudar sua aparência.

Foi a vez de Iolanda fazer uma careta.

— O que?

Evitando ao máximo retirar os olhos da elfa, agachou-se e abriu a sacola. Tateando, retirou alguns objetos e os elevou para mais próximo de sua visão: um pote com pó, pincéis, papéis declarando a identidade de uma humana nascida nos arredores de Cáhida. Iolanda pegou a sacola, se levantou.

— Você sabe como usar? Isso que tá na mochila. — Ara quis saber.

Iolanda não respondeu. Ao contrário, perguntou:

— Por que você faria isso?

Foi a vez de Ara dar de ombros.

— Eu não gosto da Virtude — disse, quase completando com e eles se aproveitaram da minha ingenuidade e falta de informação para que eu fizesse o trabalho sujo da maldita organização. Iolanda não precisava saber dessa parte.

— Eu sei desaparecer sozinha. — Iolanda respondeu.

A elfa mediu suas próximas palavras.

— Iolanda, não conheço suas capacidades a fundo. Tudo o que sei é que alguém da Virtude sabia onde você estava, e me mandaram aqui para matá-la. Você não estava escondida para eles. Talvez, com minha ajuda, você consiga.

Iolanda colocou a sacola em cima de uma mesa, e disse:

— Me diga o plano. 

Livro 1 - A Elfa, O Homem e a Ordem [completo]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora