08 - Pra correr entre os canteiros e esconder minha tristeza

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música do capítulo: Fagner - Canteiros

*POV: Clarice*

No dia seguinte, voltei com Marina ao consultório e realizei o procedimento. Foi uma dor mais de alma do que física, como se as raízes do meu amor por Otávio ainda estivessem em mim, mas, ao fazer aquilo, tivessem arrancado de uma vez por todas, com uma foice, tudo que havia restado em mim daquele amor, não me tiraram o amor, mas a vida me disse, com aquela ação, que ele não seria mais uma realidade, foi como se me interditassem o caminho. E só ficaram as lembranças.

Saí da clínica chorando e nem sei a que horas parei, afinal. Marina me ajudou a esconder de todos, mas eu também estava fisicamente bem, muito melhor que psicologicamente, mas fingia estar bem em ambas as partes para que papai e Lina não percebessem nada.

Meus pais nunca suspeitaram de nada. Durante um tempo, fiquei tão traumatizada. Sem querer conhecer gente nova, sem vontade de sair... nisso meus pais se preocupavam. Pela graça divina, papai melhorou. Curou-se da tuberculose, depois de alguns meses ainda em tratamento. Naquela época, tuberculose era algo sério e dificilmente os mais pobres conseguiam um tratamento digno e acabavam por findar ali a vida. Alguns até precisavam ficar isolados porque não era de conhecimento geral as causas da infecção. Papai se tratou com um médico pesquisador e especialista em tuberculose, gastamos muito com seu tratamento e também por isso precisávamos mesmo cuidar das finanças da construtora, então, eu e mamãe cuidamos disso da melhor forma, juntamente com o time de funcionários que tínhamos. Eu consegui passar no vestibular para continuar meu curso de arquitetura na UFRJ, aqui no Rio mesmo, e preferimos que assim ficasse, já que, depois do período que passei cuidando da empresa com minha mãe, papai quis me deixar à par de tudo e administrando com ele.

Assim, a vida seguiu e em 1987 eu encontrei Arthur, na faculdade. Alto, olhos azuis que até me lembravam os de Otávio, com um charme que enlouquecia qualquer mulher que cruzava com ele. Ainda com tanto receio de me envolver com alguém, mas, ele foi gentil comigo, esperou o meu tempo, respeitou a minha ferida e entendeu os meus espinhos. Apesar de nunca ter entendido completamente, até porque o que lhe contei foi "terminei um relacionamento há pouco e ainda não quero me envolver", mas a ferida era muito, muito mais profunda. E já nem era tão pouco tempo assim, mas eu preferia dizer assim para ser melhor compreendida e ele, como o homem gentil que foi e é, sempre me entendeu. Era inevitável não lembrar de Otávio com Arthur, e acredito que assim seria com qualquer outro amor que viesse depois dele, mas o pior é que Arthur tinha o mesmo par de olhos azuis que Otávio e isso doía ainda mais. Mas, as diferenças entre eles eram abismais: Otávio era boêmio, tinha um charme de homem galinha - apesar que não fosse -, mas Arthur era um gentleman, educado, não recitava poemas mas tinha um bom gosto musical, e seu charme era mais elegante, sem o ar boêmio de Otávio, mas sim, com seu ar burguês. São pessoas diferentes! Por mais que eu os compare, não posso fazer isso. Tenho que pôr uma pedra e um ponto final do tamanho do mundo no meu amor por Otávio. Já se passaram quase dois anos e eu simplesmente não posso continuar assim... mas histórias mal terminadas sempre deixam reticências.

Em 1988, quando eu e Arthur já estávamos namorando, quando ele já havia me conquistado por inteiro e também aos meus pais, que sempre o pressionavam para me pedir em casamento, finalmente conseguiram. Nessa noite, meus pais organizaram um jantar e ele me pediria em casamento. Meus pais amavam Arthur e o tinham como um filho. Seríamos só nós dois e nossas famílias, tudo muito simples, até porque éramos de família pequena. Eu, filha única e ele, tinha apenas um irmão mais novo. Enquanto eu estava tomando banho, Lina bateu na porta do banheiro desesperadamente.

L: Clarice! Clarice! Saia já desse banheiro, é urgente!!! - levantei da banheira enquanto puxava meu roupão e o vestia rapidamente
C: Já vou, Lina! - em questão de segundos, abri a porta
L: Seus pais acabaram de sofrer um acidente enquanto vinham pra casa.
C: O QUE??? AONDE??? MEU DEUS! MEU DEUS, LINA!!! -
L: Ai, meu Deus! Foi ao lado daquele restaurante que tem aqui próximo, não lembro o nome agora! - Lina estava tão nervosa quanto eu, além de patrões, meus pais eram amigos dela. Nossos empregados sempre foram muito bem tratados e eram praticamente parte da família.
C: Peça ao Jonas para ir ligando o carro. Vou me vestir e desço em um minuto para irmos lá!

Lina desceu as escadas e eu corri para trocar de roupa. Nem ao menos penteei o cabelo, apenas coloquei uma roupa e desci. Antes de sair, liguei para a casa de Arthur e informei o que estava acontecendo. Ele avisou que me encontraria no local do acidente, eu desliguei e fui correndo para o carro, onde eu e Jonas nos encaminhamos pro local do acidente. Em pouco mais de 15 minutos conseguimos chegar lá, havia um pequeno engarrafamento no local por conta do acidente, normalmente conseguimos chegar lá em mais ou menos 5 minutos, e isso fez com que Arthur conseguisse chegar um pouco antes de mim. Paramos o carro um pouco distante, já que a via do acidente estava interditada. Fui correndo em direção ao local do acidente, já via uma aglomeração de pessoas, carros da polícia e ambulância, me desesperei e pude ver Arthur, que já vinha correndo em minha direção. Ao chegar mais perto de mim, ele me abraçou, depois segurou nos meus dois braços e ficou me olhando com uma expressão tensa.
C: O que aconteceu, Arthur? Eu quero ver meus pais! - soltei meus braços dele e já ia saindo quando ele me tomou por um dos braços
A: Clarice, calma, por favor. É só isso que eu peço. - eu respirei e segui caminho, dessa vez, realmente mais calma e com ele segurando minha mão, mas antes mesmo que chegássemos ao local exato, ele apertou meu pulso e me virou pra ele
A: Não, Clarice. Eu não posso permitir que você veja. Por favor, fique aqui.
C: Arthur, me solta! Eu preciso saber o que aconteceu com meus pais! Eles morreram, Arthur? - um breve silêncio se instalou enquanto eu olhava pras pessoas - Me diz, Arthur!!! - eu chorava descontroladamente

Arthur não me dizia nada, só tentava segurar o choro, eu já imaginava o pior. Soltei minha mão da sua e corri até o local e ele veio atrás dos meus passos. Consegui ver o carro de meus pais, que estava completamente acabado, nem se quer vi meus pais direito, não tinha coragem, mas havia muito sangue. O carro colidiu com uma van, o acidente parecia tão grave que o motorista da van estava um pouco distante do local, havia sido arremessado pra fora do carro. Não consegui e nem queria chegar mais perto, me sentei na rua e comecei a chorar.

C: Porque, meu Deus? Porque? Será que meu destino é mesmo ser infeliz? - falava chorando e olhando pro céu, enquanto Arthur se aproximou e agachou perto de mim
A: Não diga isso, meu amor... - Arthur também chorava, ele segurava no meu ombro e beijava minha cabeça
C: Meus pais, Arthur... eles morreram mesmo? Eu não quero acreditar!!! - Arthur baixou a cabeça e chorou mais ainda - Vai, Arthur, diz que isso é um pesadelo, diz
A: Eu queria tanto poder te dizer isso, Clarice. Mas eu estaria mentindo.

Aquela noite, que seria uma das mais felizes da minha vida, ficou marcada por ser uma das piores, que eu quero simplesmente deletar da minha memória.

Lembra de mimحيث تعيش القصص. اكتشف الآن