REINO THIMORE

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Há quase sempre um penhasco quando se precisa de um

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Há quase sempre um penhasco quando se precisa de um. E - não por acaso - sempre que se precisa de um existe a expectativa de que seja o mais alto e isolado possível de tudo aquilo que lhe é a razão para se precisar de um penhasco.

No reino de Thimore não era diferente. Em realidade, foi de lá que veio a inspiração para o uso de um cenário tão particular e funesto. A trilha que se desenrolava até seu destino era embrenhada em uma floresta de pinheiros tão densa que a luz do sol lhe perfurava em ralos raios nos buracos pontuais em meio a copa das árvores. Tão inconveniente quanto um assassino que espreita suas vítimas do lado de fora de suas casas, bisbilhotando pelas frestas das persianas. Do outro lado, a vista do penhasco - como seus visitantes hão de concordar - era de tirar o fôlego. Literalmente, na maioria das vezes. Uma janela aberta a uma enorme imensidão... de nada. Nem um oceano gélido para se deixar mergulhar no fim da queda, nem estalagmites de rochas para empalar os descuidados que escorregavam no rochedo. Só um grande amontoado de nada, encoberto por uma névoa cinza e densa demais para vislumbrar o que poderia haver no Além. Babel era o nome dado àquele pedaço de terra, abandonado pelos que prezavam por demais suas vidas miseráveis para se aventurarem em solo profano.

Palco de grandes tragédias, recebia vez ou outra seus atores. Em sua maioria, inexperientes neste ramo profissional: viúvas desamparadas, trupes de assassinos e suas vítimas, velhos decrépitos ansiosos pelo futuro, crianças rejeitadas, jovens apaixonados e deprimidos, pobres coitados atormentados por sua psique, plebeus mais abastados em saúde que dinheiro e, claro, os fantasmas saudosos e arrependidos trazidos pela nostalgia de suas vidas medíocres. E para não dizer que os espetáculos eram impopulares, havia constantemente uma presença que jazia na plateia.

Thimore sempre assistia a todos os atos sórdidos da primeira fileira, e em algumas vezes fazia participações especiais nas apresentações

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Thimore sempre assistia a todos os atos sórdidos da primeira fileira, e em algumas vezes fazia participações especiais nas apresentações. A Árvore não esbanjava em altura, comparada às suas iguais. Singelos 13 metros. E, por menor que fosse sua estatura, bastava para seu propósito. Afinal, sádica que só ela, seria difícil demais para os suicidas amarrarem as forcas se fosse mais alta que isso.

Seu corpo lenhoso era oco, já carcomido há muito por larvas de madeira e cupins. O tronco - deforme, velhaco e cheio de nós - se dividia em seis partes, e cada parte adornava seis galhos e cada galho brotava seis ramos. Dizem os espíritos mais antigos que tais números nunca foram diferentes. Nem um centímetro ou galho a mais ou menos. E apesar de não ostentar nenhuma folha, tampouco flores, seu topo era coroado de souvenires sombrios. Ninhos de corvos, cordas arrebentadas, tecidos rasgados, e ossos sortidos aqui e ali.

Sua secura e madeira podre confundia os olhares de seus espectadores, pois de fato aparentava toda a aura de um cadáver esquelético e, portanto, morto. Mas "árvore" não era o termo mais correto para descreve-la. Era mais como uma colossal erva daninha parasita. Vampira, se nutria do sangue derramado que penetrava o solo local. Lobisomem, se fortalecia à luz da lua cheia. Demoníaca, vivia pelo prazer de testemunhar os pecados mundanos. A maldita Thimore, enraizava-se no meio fio entre a vida e a morte, pois quanto mais agourava os vivos mais eterna permanecia.

Curiosamente, mesmo sua essência vil e amaldiçoada não era o bastante para conter a criatividade perversa de boa parte dos habitantes do reino. Ela serviu de inspiração para clássicos da literatura local. De lendas assombrosas a relatos factuais, cada morte, medo, trauma, pecado e horror carrega sua própria história, e perceber a beleza no mórbido é uma benção concedida a poucos. Não à toa a história de Thimore tem origem do primeiro flagelo de Literatus.

Poucos falam nessa lenda, talvez porque têm medo de admitir que a morte é inevitável e tão ou mais importante que a vida em si, mas Thimore é semente gêmea de Aurallyn. Ambas nascidas do último sopro de vida de Primus, cada qual cumprindo com seu propósito para manter o equilíbrio etéreo de Literatus.

 Ambas nascidas do último sopro de vida de Primus, cada qual cumprindo com seu propósito para manter o equilíbrio etéreo de Literatus

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A lágrima do olho direito vagou pelos ares depois das primeiras treze e se instalou em solo sereno e fértil. E, mesmo sendo a penúltima a pousar, germinou primeiro irrigando todo o continente em cura e vida. Mas a lágrima do olho esquerdo do Mago, não teve forças para seguir com o vento e deixou-se cair ali mesmo junto ao corpo de seu Pai.

Assim Thimore germinou solitária, velando o cadáver de Primus, no topo do mais alto penhasco de Literatus. Aurallyn levou o que restou da alma de seu criador, e Thimore ficou com a carne. Fez de seus cabelos, suas raízes; dos ossos, sua estrutura; da pele enrugada, sua casca; e dos órgãos, seu fertilizante. E desde então tem sido a sepultura inviolável do Mago Supremo.

Muito séculos se passaram, e com eles sua aura obscura se instalou na região de Thimore, moldando consideravelmente a índole dos thimoreses. A "morte" deixou de ser sinônimo de bênção, salvação e dádiva, a medida que a memória de Primus se diluía entre os feitos da humanidade e não demorou para que se tornasse uma moeda poderosa na mão dos tiranos.

Não é de se admirar que a Grande Guerra se deu início com o primeiro derramar de sangue entre os povos a mando do Rei de Thimore, e desde então Literatus prova do amargor de seu legado. Ainda que a chegada da Feiticeira tenha apaziguado o caos continental, Thimore permanece intacta, pois assim como Aurallyn continua ligada diretamente a Primus e portanto é essencial e inevitável.

Ao reino de Thimore não foi concedido nenhum consolo ou esperança. A Feiticeira apenas deixou que ele se afogasse em sua própria ruína, que provasse de seu próprio sangue.

Assim se fez sua vontade e o reino foi dizimado quase que por completo, sem que sua interferência fosse necessária. A única figura de autoridade ainda de pé após a Guerra é a Conselheira Gabriela, que hoje se ocupa em vigiar todos os dias o penhasco a espera daquele se curvará perante o túmulo de Primus e herdará o lado obscuro da balança do destino de Literatus como o próximo soberano de Thimore.

Pois, por bem ou por mal, esse foi o legado de Primus.

Pois, por bem ou por mal, esse foi o legado de Primus

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Escrito por: Cora Laheart (CoraLaheart)

Ilustrações desse capítulo:
Luis Perez-Banus

Concurso Reinos LiteratusWhere stories live. Discover now