47ª dose (Capítulo inédito)

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Perco a conta das vezes em que pensei que algo não iria acontecer e me enganei.

O dia seguinte foi insuportável. A dor persistia, machucando todas as partes do meu corpo. Eu sabia que precisava encontrar forças, não só para mim, mas principalmente para o Valentim, que dependia de mim mais do que nunca.

Cada canto, cada objeto, cada riso ecoando apenas na minha mente, lembranças de momentos felizes que agora pareciam distantes e irrealizáveis. Era como se um pedaço de mim tivesse sido arrancado, deixando um vazio que nada poderia preencher.

Agora, éramos apenas nós três. Mesmo sem a presença de Yara, decidi permanecer morando aqui com Ítalo. Não porque ele precisasse de mim — ele não precisava —, mas porque queria estar ao seu lado. E, surpreendentemente, estamos nos ajustando como uma família. Não estou mais forçando nada.

Três dias se passaram. Estávamos sentados, Ítalo e eu, no sofá, assistindo a um filme de comédia enquanto Valentim dormia tranquilamente no carrinho ao nosso lado. Não esperava nenhuma visita, mas, às quatro e quinze da tarde, alguém bateu na porta repetidas vezes, como se estivesse com pressa. Corri para atender antes que o apressadinho ou apressadinha acordasse meu filho. Quando abri a porta, Rômulo sorriu da mesma forma que Ítalo faz quando sabe que está errado e não liga para isso. Pensei em fechar a porta na cara dele, mas o pai não é meu. Não tenho direito algum. Ele reapareceu quando imaginei que nunca mais fosse vê-lo.

Retirei o carrinho da sala com bastante delicadeza para não acordar o Valentim e deixei os dois conversando. Me enfiei no quarto e gostaria de ter ficado ali com a minha revista de palavras cruzadas, mas, pelo visto, eu precisava ouvir a conversa, então fui chamada por Ítalo.

— Não quero atrapalhar vocês — Rômulo começou. — Não consegui ir embora antes de falar algumas coisas.

Tenho medo do que ele veio dizer, mas, diferente das outras vezes, sinto sinceridade no que ele fala, então decido ouvir tudo sem abrir a boca para dar nenhuma opinião, mesmo que me peçam. Consigo ver tristeza em seu rosto. Uma profunda e sincera tristeza.

— O que você quer? Por que ainda não foi embora? — Ítalo diz.

— Vou ser bem direto, Ítalo. Eu fui um covarde! Não queria ver a minha mãe morrer. Eu vejo em filmes como o câncer pode ser lento e doloroso. Eu não queria assistir a tudo aquilo. Fui um covarde!

— A sua vida inteira você foi um covarde — Ítalo acusa.

Fico quieta, observando os dois. Ítalo está ao meu lado, segurando minha mão, e Rômulo está no outro sofá, aparentemente nervoso por estar expondo tudo o que sente pela primeira vez na vida.

— Eu sei, mas me arrependo de ter saído por aquela porta quando sua avó precisou de mim. — Ele para por um instante, achando que abalou Ítalo o suficiente para obter o perdão. Quando não consegue nenhuma palavra, continua. — Não sou um monstro sem sentimentos! Sei que não fui um pai para você e, cada vez que pensava em te procurar, repetia que a sua vida seria melhor sem mim.

— Com certeza foi! — Ítalo interrompe.

— Eu sei! Fui um covarde em não te criar e fui um covarde em não ficar com a minha mãe quando ela precisou. Achei que fugir seria mais fácil. Não queria ver sua avó em um hospital, porque sei que eu mostraria fragilidade.

— A única pessoa que podia mostrar fragilidade era ela e isso não aconteceu. Foi forte até o fim.

— E eu sabia que seria assim, mas eu não consigo lidar com a doença. Não consegui lidar com a vontade de chorar. Não lido com sentimentos. Gosto dessa máscara de monstro. Carrego ela há anos, então quando te pedi pra vir comigo, eu queria te poupar da cena. Queria te tirar do que ia acontecer.

— Eu nunca deixaria a minha avó!

— E é por isso que você é mais corajoso que eu. — Uma lágrima escorre dos olhos dele e rapidamente ele limpa. — Eu sou um covarde, Ítalo. Sempre vou fugir! Quero te pedir perdão por todo mal que causei.

Estranhamente, não sinto raiva dele. Estou ouvindo todo o discurso há mais de meia hora, e ele continua dizendo que é um covarde e que suas frases foram formuladas para causar espanto mesmo. Quando fingiu não se importar com Yara e até propôs que Ítalo me deixasse cuidando dela até a morte, confessou que cada palavra saía da sua boca como um caco de vidro, mas ele tinha que falar porque esse era o papel dele de pessoa sem sentimento. Ítalo diz que não estamos em uma peça, e ele responde dizendo que ele só queria sair dali para não ver o caos todo se formar quando Yara partisse.

Não digo nada, mas quando ele conta que chorou pela primeira vez em anos, olho para Ítalo, pois essa história é bem parecida com a dele. Rômulo repete que é um covarde por mais vezes do que posso contar, e, quando decide ir embora, não sinto nada por ele. Nem ódio, tampouco pena.

Não sei o que pensar, mas sinto que ele fala de uma forma muito sincera. Ele se embola, já não escolhe as palavras. Não parece que tem um texto pronto. Não parece estar atuando. Tirou a roupa de monstro e veio se mostrar da forma mais vulnerável que conseguiu.

Ítalo quebra um pouco o muro que construiu assim que Rômulo apareceu na porta. Não está cem por cento convencido com as desculpas, mas baixou um pouco a guarda. Depois de duas horas de conversa, estou no quarto trocando a fralda do Valentim quando Rômulo vem atrás de Ítalo querendo conhecer meu filho. Penso em recuar, lembrando que ele propôs Ítalo me largar, que queria que meu filho crescesse sem pai. Então, penso em sair de perto dele, mas eu travo. Não é uma decisão minha. Quero que ele conheça o avô, apesar de tudo.

— Desculpa por tudo o que falei — Rômulo diz, dessa vez para mim.

Quando olho para Ítalo e não vejo um semblante de mágoa, tudo de ruim que pensei em dizer some. Aceito as desculpas dele porque sinto sinceridade.

Rômulo segura a mão de Valentim, e deixo que ele o pegue no colo. Não preciso guardar rancor. Consigo sentir pureza nas ações dele.

Quando Rômulo diz que precisa ir porque tem que pegar um avião, pego meu celular na cômoda e tiro uma foto dele com o Valentim. Ítalo está no canto me olhando, e, sem pensar muito, peço que ele se aproxime e tiro uma foto dos três juntos. Sinto que Ítalo precisa de pelo menos uma lembrança boa. Não sei se ele vai aparecer de novo em nossas vidas.

Não há ódio quando ele passa pela porta e dá tchau. Não há ressentimento algum. Ítalo foi criado pela melhor pessoa do mundo e terá histórias boas para contar. Rômulo foi um covarde a vida toda, e nem se fosse diferente ele teria alguém para contar. Ele se recusou a sentir qualquer emoção que chegasse. Se agarrou a uma máscara e moldou sua vida a partir disso. Por medo de sentir, não sentiu. Um grande covarde, e eu não sinto ódio algum.

Agora consigo perdoar tudo o que Rômulo fez, mas não esqueço. Ítalo também o perdoa porque teve uma vida boa, e diz que não há motivos para guardar rancor. Confidencia que não há ódio, nem amor. Rômulo é apenas alguém que apareceu e foi embora. Nada além disso.

Penso no que Yara diz que há pessoas que são feitas para o mundo e que Rômulo nunca foi dela, e fica mais fácil fechar a porta quando ele passa. Sei que Ítalo vai sentir falta, mas não ao ponto de sofrer. Ele deixa um número anotado em um papel antes de se despedir, e eu guardo. Sei que Ítalo não tem intenção de ligar, mas deixo ali como uma opção que ele nunca teve, e agora tem.


Quando estiver sóbrio (COMPLETO)Where stories live. Discover now