23ª dose

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No dia seguinte, vou bem cedo para a casa dos meus pais. Ítalo ainda está dormindo quando saio. Recebo uma ligação desagradável durante a tarde e decido voltar para casa imediatamente. Quando chego, encontro Ítalo na sala. Yara está na cozinha, concentrada em preparar o almoço, sem perceber minha chegada. Estou furiosa e não me importo com o que direi assim que abrir a boca.

— Qual é o seu problema? — falo baixo, tentando, de forma inútil, manter a calma.

— O principal deles é que tem uma garota chata atrapalhando meu programa.

Caminho até a televisão e a desligo.

— Se você tivesse levado os documentos, essa hora eu estaria na minha casa! — aumento o tom.

Ítalo não entregou os documentos que pedi. Fiquei sabendo disso hoje durante uma ligação. Quando fui à loja, já havia outra pessoa ocupando o meu lugar. Disseram que não podiam esperar. Nem sequer consegui alugar a casa. Pensei que ele estivesse ansioso para que eu me mudasse, pois levaria os documentos em questão de segundos, então eu só precisava aguardar a ligação. Mas Ítalo é mais complexo do que um cubo mágico, e eu não consigo decifrá-lo.

— Eu esqueci.

— Mentira! — gritei.

— O que foi, minha querida? — Yara entra na sala secando a mão com um pano de prato.

— Seu neto me fez perder um emprego.

— Não era bom o suficiente — ele diz.

— O que é bom o suficiente para você? Ficar dormindo no mesmo quarto que eu? Me aturar?

— Por que você fez isso, Ítalo? — Yara pergunta calmamente.

— Porque eu fiquei com vontade, Vó. Fiz um favor para essa mal-agradecida.

Ele joga o controle na mesinha de centro e se mantém quieto, apoiando as mãos no rosto para não me olhar. Ouço-o respirar fundo. Fico durante meia hora perguntando o motivo de ele ter feito isso.

— Parem! — Yara grita. — Não quero que meu bisneto nasça nesse clima. Vocês vão fazer terapia. Ítalo, pare!

— Vó, eu não vou fazer terapia.

— Vai sim, Ítalo Moraes! Meu bisneto não pode nascer no meio de uma guerra.

Não digo nada, mas estou disposta a tudo para ficar bem com Ítalo antes do nosso filho nascer. Não me importaria de ter transado com ele e nunca mais precisar olhar para sua cara. Não me importaria fingir que Ítalo nunca existiu. Foi uma noite de sexo e só, mas eu engravidei e não posso mais escolher só por mim. Eu quero a calmaria da relação dos meus pais.

Vou até o quarto arrumar a minha mochila. Passaria uns dias em casa tendo o colo da minha mãe como meu refúgio. Depois voltaria apenas para pegar o resto das minhas coisas. Não quero encarar Ítalo. Isso tudo começou errado desde o dia que me apaixonei por ele sem nem saber seu nome.

Aquilo me abalou muito, mas eu não quero perder a cabeça. Ítalo tirou a minha única chance de ter paz. Tirou a fase nova da minha vida. Estou frustrada e irritada.

Passo pela sala e vejo que Ítalo ligou novamente a televisão. Tento não dizer nada antes de sair rumo à minha casa, mas eu preciso mostrar para ele como me sinto. Preciso contar que suas ações não afetam só a mim, mas também ao seu filho. Tenho que deixar claro que ele me magoou e eu não quero mais participar dos seus shows de imaturidade. Não quero fazer parte dos seus impulsos que só beneficiam a ele mesmo.

— O que você ganha com isso? — digo, parando na frente dele.

— Não começa!

— Fiquei aqui até agora porque gostei de você desde a primeira vez que te vi. Só que você insiste em ser esse tipo de pessoa que detesto.

— Desculpa destruir o seu conto de fadas — ele diz com um sorriso debochado.

Sinto vontade de pular em Ítalo e bater até arrancar aquele sorriso de seu rosto, mas não vale a pena tanto escândalo.

— Meu erro foi ter imaginado que você é uma pessoa boa.

— Eu sou bom — ele diz, irritado.

— Pra quem? Você não precisa gostar de mim. Acho que ainda não entendeu isso. Só que tudo o que fizer contra mim vai influenciar na vida do nosso filho — respiro fundo. — Ítalo, você não precisa assumir mais nada se não quiser. Eu dou conta!

Não dou chance para ele responder nada. Caminho até o ponto com pressa e agradeço por ter vindo o ônibus dois minutos depois. Me sento no último banco e choro.

Meu pai trabalha quase vinte e quatro horas e minha mãe trabalha quase doze. Eles trabalham muito e eu não queria que eles perdessem a noite bela e silenciosa de sono por causa de um bebê que nem foram eles que fizeram. Só que não tenho para onde ir. Não é justo largar a minha casa e me enfiar no quarto de Ítalo só porque engravidei dele. Não é sensato passar por isso só porque acredito que Ítalo vai mudar de uma hora para outra e seremos felizes.

Penso bastante no trajeto de ônibus e chego à conclusão de que não sei onde estava com a cabeça quando aceitei morar com Yara e Ítalo. Pela primeira vez, percebi que não pensei direito no que poderia acontecer. Quis me inserir na vida de Ítalo porque senti que podia dar certo. Me inseri em sua casa porque ainda gosto dele. Só que nesse filme fracassado, descubro que ele é bem diferente do cara dos meus sonhos, e esse eu não gosto.

Chego em casa com meu rosto vermelho de tanto chorar e meu cabelo enrolado em uma tentativa falha de deixá-lo preso. Meus pais estão em casa e me olham como se eu fosse um fantasma. Não sei como começar a contar o que houve, mas logo estou falando tudo com a voz carregada de mágoa.

— Ju, você sabe que pode voltar, não sabe? — Meu pai diz. — Não te expulsamos.

Assinto. Se eu disser algo a mais, vou começar a chorar, e dessa vez vai ser difícil de parar.

— Seu bebê precisa de um lugar calmo — Minha mãe alisa meu rosto. — Quando você disse que moraria com o pai do seu filho, imaginei que vocês se davam bem. Essa casa é sua!

— Eu sei. — Coloco a mão no rosto, chorando. — Eu sempre acredito que Ítalo vai melhorar, mas ele nunca toma vergonha na cara.

— Filha, quando sua mãe engravidou, eu fiquei perdido, mas ela me mostrou que juntos poderíamos criar você e te educar muito bem. Falta parceria com vocês dois.

Meu pai me olha como quem olha para um cachorro abandonado na rua. Talvez eu me sinta abandonada mesmo. Eu tenho as melhores pessoas ao meu lado, mas me sinto sozinha por não ter Ítalo. Acho que é egoísmo ou minha velha mania de querer mais do que posso ter. Não posso desejar a presença de Ítalo depois de tudo o que aconteceu. Ele não é bom para mim.

Penso no que meu pai disse e percebo que Ítalo e eu não temos parceria alguma. Parece que estou casada com Ítalo há anos e estamos naquela fase perturbadora que os filmes adoram retratar: o marido não consegue ficar em casa, então bebe e só volta quando a mulher está quase levantando da cama para ir trabalhar. Somos um casal fatigado, mesmo não sendo um casal.

O pior tipo de relacionamento é aquele que não existe oficialmente, mas que se comporta como se fosse. Eu não quero isso para nós. Apesar de ter dito que posso lidar com tudo sozinha e que ele não precisa assumir mais nada, não é assim que eu quero que seja. Faltam apenas quatro meses para o nosso filho nascer, e não posso simplesmente excluí-lo da minha vida. Eu sei que Ítalo já ama nosso bebê, mas ele falha ao pensar que estarei sempre ao seu lado, aceitando suas ofensas e seus momentos de infantilidade. Só há uma criança aqui, e essa está dentro de mim, esperando que o pai se torne um homem maduro.

Molho meu travesseiro de tanto chorar e percebo que meu filho está agitado. Tento manter a calma quando sinto meu celular vibrar, anunciando uma nova mensagem. Se for do Ítalo, não vou responder.

É Jessica:

Jess: Yara contou o que aconteceu! Fui até a casa do Ítalo e dei um chute nele :) Se alguém perguntar, vou dizer que foi em legítima defesa. Estou protegendo minha paciência. Quando eu sair do trabalho amanhã, passo na sua casa para pintar suas unhas e levo jujubas, então não pire. Te amo! ♥

02:30

Em vez de meu choro cessar, aperto o celular contra o peito e as lágrimas escorrem ainda mais. Só quero que tudo se torne mais fácil.

Quando estiver sóbrio (COMPLETO)Donde viven las historias. Descúbrelo ahora