Cap 9 - NuNew

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Em sua clínica clandestina, Havers ergueu a vista do microscópio, mas sua concentração foi quebrada por um sobressalto. O relógio do avo, num canto do laboratório, indicava que era hora do jantar, mas não queria parar de trabalhar. Voltou a fixar a vista no microscópio perguntando-se se teria imaginado o que acabava de ver, se o desespero podia estar afetando sua objetividade.

Mas não, as células sanguineas estavam vivas, exalou um suspiro e estremeceu. Sua raça estava quase livre. Ele estava quase livre. Finalmente, havia conseguido que o sangue armazenado ainda fosse aceitável.

Como médico, sempre encontrara dificuldades para operar pacientes ou para tratar de certas complicações no parto. As transfusões em tempo real de um vampiro para outro eram possíveis, mas como sua raça estava dispersa e seu número era pequeno, podia ser muito difícil encontrar doadores a tempo.

Durante séculos, quis montar um banco de sangue. O problema era que o sangue dos vampiros era muito variável, e seu armazenamento fora do corpo sempre fora impossível. O ar, essa cortina invisível que sustenta a vida, era uma das causas do problema, e nem eram necessárias muitas dessas moléculas para contaminar uma amostra. Com apenas uma ou duas, o plasma se desintegrava, deixando os glóbulos vermelhos e brancos sem defesa. Coisa que, evidentemente, não podia acontecer.

A princípio, não compreendia muito bem como se dava tal processo. No sangue havia oxigênio. Por essa razão, era vermelho ao sair dos pulmões. Aquela discrepància o tinha conduzido a algumas descobertas fascinantes sobre o funcionamento pulmonar dos vampiros, mas não o aproximara muito de seu objetivo.

Havia tentado extrair sangue e armazená-lo imediatamente em um recipiente hermético. Tal solução, a mais óbvia, não funcionou. A desintegração acontecia da mesma forma, só que em ritmo mais lento. Isso lhe sugeriu a existência de outro fator, algo inerente ao ambiente corporal que faltava quando o sangue era extraído do corpo. Tentou isolar amostras no calor e no frio, em suspensões salinas ou de plasma humano. Nada conseguira a não ser frustração, mesmo com tantas experiências diferentes. Realizou mais testes e tentou diferentes abordagens. Tentou novamente. Abandonou o projeto. Retomou-o. Várias vezes. Décadas se passaram, e mais décadas. Então, uma tragédia pessoal lhe deu um motivo muito particular para buscar a solução do problema.

Depois da morte de sua companheira e de seu filho durante o parto cerca de dois anos antes, tornou-se obcecado e recomeçou tudo do zero. Sua própria necessidade de alimentação o havia incentivado. Normalmente, só precisava beber a cada seis meses, porque sua linhagem era muito forte.

Depois que sua bela Evangeline morreu, esperou o máximo de tempo que pôde, até que ficou de cama devido à dor da fome. Quando finalmente pediu ajuda, odiou-se por sua vontade de viver ser suficientemente forte a ponto de levá-lo a beber sangue de outra ômega. E só se permitiu considerar a possibilidade de se alimentar porque estava convencido de que não seria a mesma coisa que fora com Evangeline. Certamente, não obteria prazer algum no sangue de outra e, sendo assim, não trairia sua memória.

Havia ajudado a tantos, que não foi difícil encontrar uma ômega disposta a se oferecer. Escolheu, então, uma amiga que não tinha um par, e esperou que fosse capaz de guardar sua tristeza e humilhação para si próprio. Aquilo se revelou um pesadelo. Havia se segurado por tanto tempo que, assim que sentiu o cheiro do sangue, o predador que havia nele veio à tona. Atacou sua amiga e bebeu com tanta voracidade que, depois, foi preciso suturar-lhe a ferida que lhe fez no pulso. Por pouco não lhe arrancou a mão a dentadas.

Aquilo fez com que reconsiderasse a imagem que tinha de si mesmo. Sempre fora um cavalheiro, um erudito, alguém dedicado a curar. Um Alfa não subordinado aos desejos mais primitivos de sua raça. Só que sempre estivera bem alimentado. E a terrível verdade era que tinha se deleitado com o sabor daquele sangue. O suave e quente fluxo que desceu por sua garganta, e a força selvagem que lhe sobreveio. Sentira prazer. E quisera mais.

Anjo Sombrio (MALEC)Where stories live. Discover now