48 - Ela come demais

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Kira

Ela come demais

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Ela come demais.

Por isso quase nunca é elogiada após os desfiles.

Eu até consigo entendê-la, antes foi difícil me adaptar a essa novo mundo da moda, era como se o meu corpo e minha mente fossem duas camadas diferentes de mim que estavam em constante guerra. Se o meu corpo pede por comida, minha mente luta contra ele, e vice-versa. Eles se odeiam e me odeiam. O problema é que às vezes eu não sei qual eu devo escutar e meu corpo acaba vencendo, mas em alguns minutos no banheiro após cada refeição fora da dieta, eu resolvo os meus problemas.

—Kira! estou falando com você. —O mestre Tácio chamou minha atenção mais uma vez.

Ando meio desatenta, parte se deve a maior parte do tempo em que eu penso em quando vou poder comer de novo e me odeio por isso. A outra parte se deve ao meu cérebro cansado de tudo isso.

Há 5 meses atrás eu só estava pensando em ser uma boa lutadora de muay thai, e agora eu estou aqui nessa sala enfeitada de modelos perfeitas nas paredes, enquanto tento focar nas palavras que saem da boca do meu empresário.

—Estamos falando de 25 mil. Será que pode me escutar? —A voz do mestre fez eco na minha cabeça.

A minha última refeição foram 5 uvas.

Foi tudo o que consegui lembrar antes da minha visão escurecer e eu acordar sendo abanada por várias modelos em volta de mim.

—Ela acordou! Tá tudo bem, foi só um desmaio. Circulando meninas. —Disse o mestre a todas. —Pedi uma salada pra você. —O mestre me entregou.

O meu estômago embrulhou.

—Não quero. —Pus a mão sobre a boca.

—Não quer repetir esse vexame na passarela, quer? —Ele olhou fixamente nos meus olhos, de uma forma assustadora. —Coma.

Senti como se estivesse passando arame farpado na minha garganta, mais uma vez comendo a mais do que o prometido a mim mesma, porque mais uma vez eu fui fraca.

Um ciclo vicioso.

🔁Comer. Colocar para fora. Sorrir para ninguém desconfiar. Chorar sozinha. 🔁

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Chegar em casa todos os dias e encontrar o jantar servido e negá-lo seria um crime contra minha mãe. Ela se esforça tanto e fazer o jantar todos os dias era um claro sinal de que ela estava vencendo a depressão, eu não poderia negar nem se fosse obrigada, mas os sinais de que todos os dias eu vomitava tudo que comia já estavam aparentes.

As comidas já não têm o mesmo gosto.

Surgiram cáries nos meus dentes e minha boca está sempre seca.

Dores de garganta, frio extremo, ansiedade e culpa fazem parte do meu dia a dia.

Devo ter o mesmo peso do meu irmão de 8 anos.

Em um lampejo de realidade enquanto me olhava no espelho, eu não me reconheci. Eu não sou mais aquela lutadora forte que nocauteava as adversárias facilmente, há dias que eu mal consigo me levantar da cama.

Abri minhas redes sociais, e em meio a várias modelos, uma foto da Rosa surge na minha tela.

Rosa foi representar o ISC no campeonato de muay thai feminino nos estados unidos. Ela evoluiu ao ponto de realizar um sonho que sempre tive.

Acho que me perdi no caminho, só que agora é impossível voltar.

—Quem é você? —Pergunto para o meu reflexo no espelho.

Uma mensagem do Julian tira minha atenção do espelho.

Quando nos encontramos no alto do prédio, e eu ouvi seus questionamentos sobre o que eu ando fazendo comigo mesma, eu desabei. Ali caiu a ficha de que eu precisava de ajuda.

Julian sempre foi o meu anjo da guarda desde que entrei nesse prédio pela primeira vez. Ele me arranjou um emprego no Raices Colombianas quando eu achava que não conseguiria nada, mesmo não me conhecendo bem. Agora, cá estou eu novamente no fundo do poço.

—Eu não consigo sair dessa sozinha. —Eu disse sem se soltar do seu abraço.

—Eu estou aqui. —Beijou minha testa.

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Julian

A cura é um processo diário.

De um lado, minha mãe, a mulher que me deu a vida, quis tirar a sua por não ter mais o amor do meu pai. Do outro, a minha namorada que se perdeu de si há um tempo, pesa como algodão e mal se mantém em pé. E Em ambos os casos, eu não percebi a tempo para salvá-las.

Nem todos os dias eu consigo ser forte por elas, mas todos os dias eu tento.

Anti-depressivos de um lado, suplementos vitamínicos do outro, lágrimas silenciosas a noite. O meu avô, que há um tempo atrás era minha única preocupação, se tornou a minha fortaleza.

—Pequenos passos todos os dias, neto. —ele repetiu enquanto me servia um café.

—Pequenos passos todos os dias.—repeti.

Minha mãe surgiu na cozinha, pela primeira vez em semanas eu não precisei acordá-la para tomar banho para irmos para a terapia, ela mesma fez isso sozinha hoje. A frase que meu avô sempre me diz nunca fez tanto sentido quando a felicidade em vê-la evoluindo me invadiu. "Pequenos passos todos os dias."

—Estou orgulhoso. —eu disse á ela, que depositou um beijo na minha testa. —Te amo.

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Depois da terapia da minha mãe, fui acompanhar a Kira em algumas fotos.

Faltava 1 mês para o contrato dela acabar e eu estava ansioso por isso, aquele trabalho estava acabando com ela. difícil vai ser convencê-la de sair dele, a Kira chegou em um estágio onde ela não acredita que consegue voltar a lutar, mas é como o meu avô sempre diz: Pequenos passos todos os dias.

Não passamos 100% do tempo juntos, é difícil ter certeza se ela não anda tendo recaídas. Ela chegou a pesar 45 quilos, considerado extrema magreza para alguém de 1,75m como a Kira. Já perdi as contas de quantas vezes tivemos que ir até o hospital por ela estar passando mal, e isso me mata por dentro. Ela é uma garota forte, mas está rodeada de más pessoas, e dentre todas, eu destaco o Tácio, o cara está ganhando muito dinheiro em cima da doença da Kira, e está na cara que ele não se importa nenhum pouco com a saúde dela.

—Kira, fique longe da mesa antes das fotos. —Alertou o Tácio sobre a mesa de café da tarde posta.

—Isso nem passou pela minha cabeça. —Respondeu Kira.

Eu estava de longe para não atrapalhá-la, mas estava prestando atenção em cada passo dela, e principalmente em cada passo dele. Eu não confio e nunca confiei nele, e ouvir que ele incentiva o amor da minha vida se matar aos poucos todos os dias, mexeu com meu psicológico.

Quando me dei conta, eu já estava o seguindo até o banheiro, e o enforcando por trás com um mata leão.

—Acho bom você parar de brincar com a vida dela desse jeito, seu merda. —Eu disse no auge da minha raiva inconsciente.

Tão inconsciente que eu me esqueci que se tratava de um mestre profissional do muay thai.

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