BAD THINGS

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Sou ligada ao improviso, à possibilidade de ser surpreendida por uma canção inesperada, algo que não sei ou não tinha noção. Fico navegando nas escolhas que o Spotify acha que eu poderia gostar, deixando o coração suspenso pelos próximos acordes.

Aguardo que venha uma melodia do acaso, potente o suficiente para me despertar lembranças longínquas e me inspirar a cantar alto refrões que não suspeitava recordar. É a adrenalina de reaver a memória amorosa por trás das camadas das idades. Recupero um encontro, a trilha de uma viagem, uma brincadeira da infância. Penso que aquela música aparecendo do nada é um sinal de que devo mandar mensagem para um amigo esquecido.

Hoje existe um controle excessivo dos ouvidos. Ouvir tudo o que se quer é surdez. É como se todos vivessem em uma bolha e não existisse o mundo lá fora.

O acaso quebra as obsessões e me abre para a diversidade. Trata-se de um lançamento de um ritmo que nunca descobriria em meus filtros, de uma cantora que jamais tomaria conhecimento, de uma banda que passaria despercebida entre as modinhas.

O que quero mesmo é ser incomodada pelas emoções, ser levada para um destino que estava dentro de mim e é absolutamente desconhecido para o meu GPS. Quero sentir algo em meio ao meu nada.

—Mary, o David está com problemas na passagem de som. August ou Peter já foram pro casting? — Joguei todo o conteúdo da minha bolsa sobre a mesa da recepção, nunca tive paciência para bolsas grandes onde nunca encontro nada.

—August está na comics e Peter acabou de passar aqui com uma linda jovem.— Me olhou estranho, tive a impressão que ela queria me dizer mais.

—Mas que caralho! Não acredito que ele tá trazendo putas pro serviço. Ele acha que essa merda aqui é o que?— Falei talvez um pouco mais alto do que deveria, e com muitos palavrões. Estou me educando para não usá-los, mas as vezes não dá para segurar.

—Ele disse que tá dando aula pra ela.— Sorriu irônica.

 —E desde quando esse fil.. Deixa! Onde ele está?

Mary apontou o estúdio, indignada larguei minha bolsa na recepção e a passos largos fui até lá.

 Quando entrei na sala de mixagem, meu coração atropelou um batida. Sabe quando quase escorregamos e o corpo congela naquela posição e temos a impressão que o estômago foi para as pernas. Foi exatamente assim que me senti.

Peter estava no estúdio dando aula para uma jovem que conheço muito bem. Intimamente até. E Camila estava animada, muito animada escutando atentamente tudo que ele explicava. Bati no vidro que separava a sala do estúdio da nave de mixagem e ambos me olharam. Como esperado, Camila abriu um grande sorriso, e Peter se assustou, levantando rápido do piano e vindo em minha direção.

Liguei o microfone do estúdio para que ela escutasse nossa conversa.

—Lauren, achei que estava no casting. Eu estou só dando aula para uma amiga.— Ele esfregava a mão nervosamente.

—E a quanto tempo vocês são... amigos?— Cruzei meus braços e o encarei.

—Nos conhecemos na casa de shows no final de semana. Olha, não estamos fazendo nada demais. Ela precisa aprender urgente algumas músicas e eu estou só ajudando.

—Ajudando, Peter? E desde quando você ajuda alguém?— Me olhou ofendido —David precisa de você urgente. Tivemos problemas com uma passagem de som, eu cuido disso aqui.— Apontei para o vidro.

— Então quem vai no casting? Eu sei que você não vai. — Me olhou de cima a baixo. — Eles não aceitam muito bem você lá. 

Ele estava ofendido e queria me ofender também. Conseguiu.

Intersex - a história  de LaurenWhere stories live. Discover now