Shameless

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Olha, ela lembrou que escreve.

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Charles Darwin relatou que existe 6 emoções base: nojo, raiva, surpresa, felicidade, tristeza... e medo. Todos nós sabemos como reagir a essas 6 emoções.

Um bebê sabe sentir medo, é uma ferramenta natural dele; mas aí a vida vai passando e vamos bloqueando a nossa relação com essas emoções de base. Vamos deixando de senti-las. Vamos fugindo do que somos para encaixar no que os outros querem que sejamos.

A gente vai evitando situações que geram medo, que geram tristeza e por ai vai. E quando bloqueamos a compreensão das nossas emoções de base, sabe qual nome isso se dá?
Distúrbio emocional.

A gente não sabe mais como funciona dentro da gente.
"Quanto mais eu evito, menos conheço o que me dá medo de verdade. E começo a sentir medo de tudo."
E a ansiedade é o medo que ainda não aconteceu.

— Você acha que tô errada, Pinoquita? — Dinah colocou com força a xícara de café com sorvete e Chantilly sobre o pires, fazendo o creme branco se esparramar pela mesa.

— Ai meu Deus, nunca vai parar de me chamar disso não? — Coloquei um sachê de açúcar mascavo no meu café puro e preto, como deve ser.

— Já era, já acostumei, muda seu nome no cartório. Mas tô errada? Claro que não tô. — Ela limpou com raiva o Chantilly da sua mão. — Não tem como eu tá errada com isso, concorda?

Apertei os lábios, se eu falasse que ela estava errada eu receberia uma xícarada na cabeça. Para minha sorte Dinah estava certa. Se há controle excessivo, há algo sendo escondido por trás. — Não, claro que não tá errada. Ele tá muito na sua cola, sério, mais que o normal.

— Exato! Acho que o Brian deve ta aprontando alguma. Sinto isso.

— Separa dele então.

— Mas ele é homem bom, homem raro, homem sem calvície, homem da tropa do arranca diu. Tinha tudo pra dar certo.

— Continua com ele então.

Dinah me olhou séria, semi serrando os olhos. Sorri e ela respirou fundo. — Por que pessoas precisam ser tão complicadas?

Lembrei da Camila, da sua cara de sono de manhã carregando uma tigela de sucrilhos e me entregando, envergonhada de não poder me oferecer algo a mais. Mal sabia ela que me ofereceu mais que qualquer um já ofereceu: conchinha e pés dados.

— Acho que as vezes complicamos demais as coisas, Dinah. Queremos que a pessoa venha pronta pra gente, sabe? Não tiramos um tempo pra aprender o idioma da pessoa, a visão que ela tem do mundo ou até o que ela é alérgica. Só queremos alguém que venha como miojo: pronto em três minutos. E se não for assim, a gente complica tudo e fica arrumando defeitos na pessoa.

Dinah colocou as duas mãos no rosto admirada. —Não "quedito" que minha amiga ta xonada! Não "quedito"!

Segurei o sorriso. — Estamos falando de você e do Brian.

— Para de show, você sabe que estamos falando de você e dessa cara de sonsa apaixonada que você tá. Me conta tudo!

Ela levantou a mão e chamou pelo garçom. Pediu um flapê e voltamos a falar do Brian. Não falamos mais da Camila por opção minha, Dinah estava triste, eu sentia isso, não era momento de eu estar no foco. E também porque eu não queria falar daquela garota de sorriso fácil e tropeços constantes. Deus como Camila era desajeitada!

O final de semana chegou a galope, que semana agitada eu tive no trabalho, mas reservava alguns minutos para olhar meu celular. Camila voltou a ter celular, conversamos um pouco por mensagem confirmando nossa viagem, mas isso não evitou minhas mãos frias no volante em frente ao apartamento dela.

— Camila vem? — Meu irmão perguntou da sua cadeirinha.

— Já tá vindo, Kid. — Olhei para trás encontrando seu grande sorriso. Ele segurava um boneco de ação do Batman.

— Ontem vamos na sua casa? Sabia que eu sei correr de patins muito rápido?

— Vamos na casa da vovó, Kid, lembra que falei? E eu quero ver você de patins, você me mostra?

Ouvi batidas no vidro, meu estômago esfriou. Camila sorria do lado de fora, uma grande bolsa em seu braço. Destranquei e ela entrou, se virando para meu irmãozinho que começou a pular na cadeirinha.
Eu a observei, seus cabelos em cachos escovados caiam por seus ombros; sua maquiagem leve realçando cada detalhe perfeito de sua beleza; sua calça jeans justa e botas pretas enfatizando suas curvas. Ela vestia uma blusa fina branca e ei! Aquela era minha jaqueta!

Eu queria elogiar o quanto ela estava mais bonita que o comum, o quanto seu perfume novo me encantou. Mas me calei e dei partida no carro enquanto ouvia ela conversando com meu irmão.

Conversamos sobre filmes, músicas, preferi manter a conversa no superficial, tive medo de me expor, não sei o por quê tenho essa tendência a evitar a profundidade com ela.



— Meu pai ouvia muito, tipo, muito mesmo, por isso gosto tanto dessa cantora. Meu Spotify já desistiu de mim até, não sabe nem o que me oferecer, tadinho, escuto de tudo.

Camila falava tão animada.

Respondi mais contida. — Mas é bom ser eclética. Devido ao meu trabalho eu escuto muita coisa, mas sempre volto nos meus favoritos.

Ela sorriu largo e tocou minha coxa. — Hoje na hora que minha mãe tava escolhendo minha roupa...

— Pera, sua mãe escolhe suas roupas? — Parei no sinal e a encarei.

Ela ficou tímida e se encolheu. — Quando eu escolho fico, sabe, parecendo uma mendiga. Eu queria ficar bem hoje, então pedi ajuda pra ela. Fizemos, tipo, uma video chamada e ela escolheu essa roupa.

Minha garganta queimava de vontade falar sobre o quanto ela estava maravilhosa. — Você falava sobre a hora que tava escolhendo sua roupa.

Ela mordeu a língua e ficou pensativa por alguns segundos. — Ah sim, hoje quando a genta tava escolhendo a roupa, tipo, tava tocando umas músicas e começou a tocar Celia, conhece? Tô aprendendo a dançar ritmos latinos e ela é muito boa pra isso. A Celia, não minha mãe, ela não sabe dançar. Apesar que eu dançando sou uma negação, tipo, minha professora já me entregou pra Deus. Acho que ela já deve ter olhando alguma forma de rescindir minha matrícula. Não sei o que acontece com meu corpo, ele não me obedece e fico parecendo um boneco de posto dançando. Tipo quando a calcinha enfia e a gente quer tirar sem colocar a mão, sabe?

Apenas sorri. Ela estava tão falante.

Após duas horas de viagem, 4 paradas e um almoço, chegamos a casa da minha avó. Nada havia mudado nos últimos 15 anos, foi apenas pintada. A mesma mesa na varanda, o balanço que tanto brinquei no quintal. Um carrinho de mão repleto de flores, minha bicicleta azul de infância também usada como adorno de flores. Havia tantas lembranças ali, toda uma vida que deixei pra trás.

— Delaware é lindo. Para o segundo menor estado da America, é tipo, lindo demais. Bem completo, ne?

Eu não consegui responder, apertei o volante, minhas mãos tremiam; meu coração quereria sair pela boca e parecia que eu ia vomitar. Senti que havia cometido um erro, deveria ir embora. O que eu ia falar para minha avó? Como ia me apresentar daquele jeito para ela? O que ela iria pensar de mim? Eu era uma vergonha para ela, tinha certeza disso. Queria sumir, me encolher a ponto de não existir mais. Por alguns segundos pensei em cortar o cabelo e vestir roupas de menino, eu queria correr dali.


Camila tocou minha mão e entrelaçou nossos dedos. — Ei, eu tô aqui, vamos fazer isso juntas. Vai dar tudo certo, respira.
Notei minha respiração acelerada, Camila foi me acalmando, conversando comigo.
Quando me acalmei, beijei nossas mãos juntas e me virei para meu irmão, ele estava dormindo na cadeirinha.
Mesmo contra a vontade das minhas pernas, sai do carro e fui em direção a porta, Camila estava ao meu lado, nossas mãos se entrelaçaram de novo. Antes que eu pudesse bater, minha avó abriu a porta, aquele sorriso, meu Deus! Foi o sorriso mais puro e feliz que vi na vida.

Seus olhos estavam mais enrugados do que eu me lembrava, e seus cabelos completaram o branco. Ela estava com seu casaco florido. Havia felicidade em me ver, eu era convidada, aceita e amada através daqueles olhos. Mas eu não merecia aquilo. A vergonha me tomava, queria fugir, não queria olhar em seus olhos meigos.

Ela estendeu os braços, eu ainda estava congelada, tudo em mim queria fugir dali, me esconder bem fundo.
Ela deu alguns passos na minha direção  e me abraçou. Um abraço forte, quente, eu queria morar naquele abraço.
Não me contive e comecei a chorar, foi como romper uma represa. Abracei forte também e ficamos ali, curtindo aquele abraço entre fungadas e suspiros.

— Não faz mais isso comigo não. Tenho idade pra isso mais não. — Ela separou do abraço, senti falta daquele calor, queria abraçar mais. Aquele sorriso molhado mexeu comigo.

— Me perdoa, vó. — Falei enxugando minhas lágrimas com as mãos quando nosso abraço terminou.

— Se estiver falando sobre ter me abandonado sim, perdoo. Mas se tiver falando de outra coisa, não tenho nada que precise de perdão. Você é... minha netinha.

E desabei de novo no choro, não consegui segurar. Ela sempre foi minha referência de vida, a parte de mim que sempre quis voltar.
Camila me abraçou de lado e meus ombros se acalmaram, minhas lágrimas reduziram até eu conseguir respirar direito e bem.
Sentir o calor da mão pequena da Camila em meu ombro me trouxe a realidade, me trouxe ao conforto.

Minha avó olhou para a Camila que sorria encantada. — Essa é sua namorada, Lauren?

Ouvir o meu nome vindo da boca da minha avó fez toda a enxurrada de sentimentos voltar, segurei para não chorar. Camila corou, minha avó sorriu confusa e eu fiquei alguns segundos sem responder.

— Somos amigas. Apenas amigas. — Falei após um tempo, notei que Camila abaixou os ombros e se encolheu um pouco.

— Amiga linda você tem. — Ela fechou o casaco — Vamos, pega meu netinho lá, já preparei uma caminha pra ele. Aqui fora tá frio.

Voltei ao carro, Camila pegou a bolsa dela e a minha, eu peguei o Nathan ainda dormindo. Ela não falou nada e eu também não. O silêncio nos seguiu dentro da casa.

Enquanto subia para o quarto, meu irmão acordou, fui colocá-lo para dormir e apaguei junto. Acordei não sei quanto tempo depois sentindo cheiro de biscoitos.
Quando desci a escada me deparei com Camila e minha avó rindo, conversando em espanhol enquanto olhavam meu álbum. Minha vergonha só não foi maior que o ronco do meu estômago ao ver aqueles biscoitos no tabuleiro em cima da bancada da pia.

Senti um aperto na minha perna, era meu irmão, trocamos olhares e dissemos tudo um para o outro: iríamos roubar biscoitos!

Devagar terminei de descer as escadas com ele atrás de mim, abaixados fomos até a cozinha, aproveitando a mão pequena dele, ele a enfiou por uma fresta da madeira da mesa e pegou um, dois, depois três biscoitos. Senti uma mão no meu ombro e dei um grito, fui correr e a mão me segurou.

— Mas não aprende mesmo. — Era minha avó rindo — Foi assim, Camila, foi assim que ela perdeu o primeiro dente de leite daquela foto. Pensa em uma ladra de biscoitos e frango frito.

Levantei com o rosto queimando, escutei os risos do meu irmão subindo as escadas.
Camila se aproximou e me ofereceu um biscoito. — Amei essa marca, quando a gente for embora, tipo,  vou comprar uns três pacote.

Sem graça mordi o biscoito, Nathan estava longe comendo os biscoitos a salvo,  sortudo. — Como eu perdi o dente? — perguntei de boca cheia.

Minha avó pegou um biscoito. — Quando eu queria te acordar, porque você sempre foi dorminhoco, desculpa, dorminhoca. — seu rosto corou — eu assava esses biscoitos e você sempre descia pra furtar alguns e saía correndo pela parte de baixo dessa porta, que quase sempre estava trancada. Foram uns três galos e um dente quebrado e mesmo assim não aprendeu a correr pra outra direção.

Olhei para a porta que dava ao jardim, eu ia correr por ela, não iria passar pela divisória, mas iria fugir por aquela porta, como um adulto deve fugir. Quantos galos, dentes e dores é necessário ter até aprender com um erro?

— Mas você não come mais frango frito, o que aconteceu? — Camila perguntou pegando um biscoito.
Eu também não sabia essa resposta, apenas não gostava, até o cheiro me enjoava. Olhei para minha avó, ela olhava triste para baixo, colocou o biscoito sobre a mesa e me olhou compadecida.

— Aqui na minha casa nunca me importei de ter frangos e biscoitos furtados, porque era pra isso que eu comprava. Mas o mesmo vício que uma criança tem em uma casa, tem em outra. A sua mãe não tem o mesmo pensamento que eu, não gosta dessas coisas.

Por algum motivo meu estômago embrulhou, como se estivesse muito cheio e eu fosse vomitar.

— Soube que uma vez você furtou alguns frangos que ela tinha comprado pra uma festa lá. Ela não gostou e após a festa comprou três combos daqueles bem grandes e completos só pra você.


Ela respirou fundo, eu respirei também para não vomitar.

— E então, ela... — minha avó travou os dentes— ela falou que era só pra você e te fez comer tudo pra você "aprender" a não furtar mais. Soube que você não pôde sair da mesa enquanto sobrasse um frango no prato, ela ficou lá do seu lado esperando. Eu nunca mais voltei a aquela casa, isso não é uma coisa que se faça a uma criança.

Entendi da onde vinha tantos distúrbios alimentares e alguns emocionais.
Senti uma mão quente na minha, era a mão de Camila, ela me olhava com os olhos molhados. Ficamos algum tempo nos olhando.

— Soube que a Camila estreou uma peça, quando você vai me levar? — minha avó perguntou/ordenou.

— Quando a senhora quiser.

— Então vou combinar com minhas amigas e vamos todas juntas. Lauren, você sabia que a Camila gosta de muitas músicas que eu gosto? Já falei com ela, ela vai ficar aqui e você volta sozinha. E não bastasse gostar de ouvir, ainda sabe cantar elas. Me apaixonei, já é minha neta também.

Rimos e eu peguei outro biscoito.

— Mas tipo, eu conheço elas por causa do meu pai. Ouvimos elas juntos, as vezes fazemos algumas sessões de karaoke, os vizinhos vêm até assistir.

— Foi assim que você decidiu ser cantora também? — Minha avó perguntou e eu peguei outro biscoito.

— Eu sempre quis, mas tinha muita vergonha. Tentei fazer como meu ex e colocar músicas couvers no youtube, mas não deu em nada, então apaguei. No teatro tenho mais chance de ser reconhecida.

— O marketing que funciona pra um nem sempre funciona pra outro. — falei pegando outro biscoito. — Não basta talento, é necessário o público ter identificação com você e com o que você quer passar.  Tem cantores que começam um relacionamento, fazem músicas, ganham em cima dessa música, e depois falam que foram traídos e ganham em cima disso também. Infelizmente tudo é marketing hoje.

Camila ficou pensativa o resto da tarde e noite, conversava pouco, falava mais com minha avó e com meu irmão, isso me deu uma ansiedade muito incomoda.
Será que fiz ou falei algo de errado?

Intersex - a história  de LaurenWhere stories live. Discover now