Liar

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O desejo só pode ser reconhecido  posteriori, antes é só projeção e fantasia. Como disse a poetisa “não fique onde não te cabe”, mas ficamos por comodismo. Falamos: “o trabalho é ruim, mas paga bem”:  “ele me trai, mas sempre volta pra mim”; “não sinto nada por ele, mas ele me trata bem”; “meus amigos  não são bons comigo, mas ao menos não estou sozinha”. E assim vamos referenciando nossas vidas no “poderia ser pior”, no desejo do não vazio. Mesmo sem espaço vamos nos modelando para caber, para nos adaptar, para viver. Mas o que fazer quando não cabemos mais? O que sobra quando não há espaço nenhum? O que realmente desejo?


Camila e eu estávamos sendo sinceras. Então eu queria acabar com algo que me incomodava até os ossos.— Você vai me contar sobre aquele homem que apertou seu braço?

Camila respirou fundo, soltou o ar devagar e se virou mais para mim. — O Tony é uma pessoa muito especial na minha vida. Quando vim pra cá ele veio junto e tem cuidado de mim desde então.

— Então é um amigo?

— Ele é um amigo do meu pai que se tornou meu amigo também.

— Amigo da família então? — Camila apertou os lábios, ela não gostou do tom de desdém que usei. — Ele é um pouco controlador demais pra um simples amigo,  não acha?

— Não é um simples amigo, é meu grande amigo, me ajuda quando pessoas que confio me tratam como uma louca.

Foi minha vez de apertar os lábios em desaprovação. — Você não é louca, ok? Tem algo diferente em você, o diferente assusta pessoas medíocres, mas isso não te faz ser menos que os outros, muito menos ser louca.

— Foi sua terapeuta que disse isso?

Confirmei com a cabeça, Camila parecia mais ríspida, distante. — Então você vai comigo na minha avó?

Ela olhou ao redor. — Já disse que vou, só... só me deixa resolver uma coisa antes.

— Tudo bem, eu falo com seu amigo não controlador lá.

Não consegui decifrar seu olhar. Ela se aproximou e me deu um beijo na bochecha,  então se levantou indo em direção a porta.

— Quase esqueci. — Tirou um papel da sacolinha da farmácia.— Esse é o QRCODE dos seus ingressos de hoje. Ficaria feliz se você fosse.

Ah sim, a estreia da peça em que ela toca piano. Quando ela saiu, tive a impressão que a sala ficou maior e mais fria.

Quando a noite chegou eu estava parada dentro do carro, um buquê enorme de rosas brancas e vermelhas no meu colo e o cartão ainda vazio, não sabia o que escrever.

— Vai dar a hora de entrar e você tá aí parada feito poste. — Dinah reclamou do banco de passageiro. — Já não basta me trazer aqui, ainda tenho que ficar te esperando voltar de Marte?

Olhei para ela, já era o terceiro ruffles que ela estava comendo, as migalhas soltas no banco e no console do carro me fizeram revirar os olhos. Rodei a caneta na mão e escrevi "Quebre a perna e muita merda, estarei na primeira fila. LJ"

— Puta que pariu, é sério isso? Você vai escrever isso mesmo? — Dinah arregalou os olhos e quase engasgou com a batata.

— "Quebrar a perna" é porque se desejar boa sorte acaba desejando azar, ou algo assim. E "muita merda"  é porque antigamente quando a peça era boa, a rua ficava cheia de merda dos cavalos, porque vinha muita gente assistir e eles vinham de carroça. Desejar muita merda é desejar muito sucesso.— Sorri orgulhosa— Sou uma CDF do caralho, né?

— Tá mais pra emocionada. Mulher, acho que você tá se apaixonando pela latina. A Ashley nunca ganhou um buquê seu e olha que vocês namoravam.

— Ela nunca estreou uma peça, senão teria ganhado.

Entramos, pedi que entregassem o buquê no camarim, eu sei que ela iria receber quando saísse.

A peça foi boa, no primeiro ato Camila apareceu pouco e Dinah reclamou demais que estava com fome, mesmo comendo dois amendoins e minha pipoca. Me incomodou o fim desse ato porque Camila simulava sexo com um cara, droga, ele era muito bonito e ela parecia se divertir com "o ato".

No intervalo levei minha capivara Dinah para lanchar, ela reclamou o quanto odiava teatro, reclamou da comida, mas comeu tudo.
— Que gatão, hein? Se eu fosse a Camila pegava ele, mas pegava muito. —Dinah fingiu se abanar.  — Aquela cena de sexo lá, uh la la, Camila de Topless, aquele tigrão peludo; acho que tiveram que torcer o pano que passaram na poltrona que eu sentei.

— Você não vai me fazer sentir ciúmes, sei que ela é profissional. E o Brian? Ele ficaria feliz ouvindo isso?

— Hoje quando eu falei que ia sair com você ele falou "Beleza, vai lá com o outro", como se eu não fosse sair com você, mas fosse trair ele.

— E o que você respondeu? — Bebi do meu suco.

— Você que é o outro vida, se põe no seu lugar. E bloqueei ele. Ele me trata do jeito que me tratou e ainda quer dar uma de bonitão?

Quase engasguei com o suco. — Queria ser assim como você, mas meu sol em câncer não permite.

— Faz-me rir, porque sua lua em escorpião faz muito mais estragos.

A luz de retorno acendeu, voltamos aos nossos lugares. Começou o segundo ato com Camila tocando What I'm doing with the rest of my life, ela tocou tão lindamente, muito melhor do que nas aulas. Depois teve mais beijos com o feio de barbicha de bode lá que faz par romântico com ela. E então ela tocou uma música difícil de ser tocada, essa eu não ensinei. Dinah desbloqueou o Brian e estavam discutindo por mensagens durante quase todo o segundo ato.

A peça terminou, aplaudi de pé. Esperei Camila na saída, ela saiu admirando o buquê que eu dei a ela, me incomodou que ela tinha outro buquê nos braços. Do seu lado tinha um armário vestido de terno preto. Ela sorriu largo quando me viu, e o armário idiota fechou a cara.

— Você gostou? — Camila parecia tímida quando se aproximou.

Me aproximei e dei um selinho na bochecha dela, ela ruborizou e olhou ao redor envergonhada. — Amei, já comprei mais ingressos. Você foi demais, Camz!!

— Esse é meu amigo Tony. — Camila indicou o armário idiota que estava me encarando como se eu fosse uma barata pronta para ser pisada. — Tony, essa é Lauren.

— Eu sei quem ela é. — Sua voz era grave e autoritária. Me estendeu a mão, estendi a minha e ele apertou mais que o necessário. Apertei de volta dando tudo de mim.

Com certeza vou aumentar os pesos e cargas na academia.

— Cadê a Dinah? Ela disse que viria. — Camila olhou ao redor, me aproximei e passei o braço em sua cintura, "Tony" ficou do outro lado ainda me encarando.

— Brian queria ter certeza que ela estava comigo e veio buscar ela.

Camila me olhou esperançosa. — Estamos indo jantar pra comemorar a estreia, quer ser minha acompanhante?

Olhei pro Boneco de Olinda. — Ele irá?

Camila o olhou e depois olhou novamente pra mim. — Tony trabalha na casa de shows hoje. É segurança lá.

Uma mulher baixinha e um rapaz se aproximaram. Ela deu um abraço forte e carinhoso na Camila. — Ai, irmã, estou tão feliz, você arrasou demais! Foi muito show!

Deu alguns pulinhos fofos. O rapaz ao lado dela deu um abraço respeitoso em Camila e depois ambos me olharam.

— Essa é a Lauren. — Camila me apresentou, e eu sei que eles sabiam quem eu era. — Essa é minha irmã Ally e o marido dela Will.

Cumprimentei ambos com um aceno de cabeça, mas Ally se aproximou e me abraçou. Eles se despediram para irem trabalhar e convidei Camila para entrar no meu carro.

Odiei o abraço forte que ela e o armário idiota lá trocaram, seria crime passar o carro por cima dele? Será que as várias pessoas em volta iriam contar se eu acidentalmente acelerasse só um pouquinho quando ele atravessasse e depois dar uma ré dupla em cima dele? Ou eu poderia alegar que atropelei ele achando que era um boneco de Olinda fora de época.

— Seu amigo não gostou de mim. — Coloquei o cinto e liguei o carro.

— Pode ter sido impressão sua. Ele é um amor de pessoa. Mas se quiser posso conversar com ele. — Um amor de pessoa? Confia. Ela colocou o cinto e se virou para mim.

— Não precisa. E que bonitão que você faz par romântico, você não me falou dele.

Camila corou. — Tyler é legal. — Ela parecia desconfortável.
— O que foi? O que está te incomodando?
— É que naquela cena do sexo eu tive que ficar de topless, nos ensaios eu não ficava, foi tipo minha primeira vez.
— Eu sei que eu nunca teria coragem de fazer algo assim.
— Mas se eu quero ser atriz também,  preciso me acostumar com isso. — Ela tirou um papel da bolsa e me entregou, era o restaurante que iríamos.
— Quando você vai voltar a usar seu celular?
— Logo. Mas você viu a hora que a madame Soha falou que...
Durante o caminho Camila estava agitada, contava animada dando pulinhos no banco sobre cada detalhe de bastidores da peça.

Chegamos no restaurante, minhas mãos estavam suadas, conhecer pessoas sempre me deixou desconfortável, faço de tudo para evitar isso, mas era por Camila, e ela parecia tão feliz.

Nos sentamos e ela apresentou um por um das várias pessoas sentadas a mesa. Dois segundos depois já tinha esquecido o nome de todos.

A protagonista da peça bufou e falou irritada. — Já que a rainha chegou podemos fazer o pedido agora?

Ela levantou a mão e escandalosamente chamou o garçom. Era um grupo de pessoas estranhas . A protagonista parecia irritada por estar lá. O par dela lembrava ela de uma forma estranha. Todos os outros pareciam tão... frios e irritados.

Senti Camila apertar meu braço. — Obrigada por ter vindo— Ela disse calmamente, seu sorriso com o dentinho torto me fez sorrir de volta.

— Então ela é de verdade. Juro que pensei ser coisa da sua cabeça. — Michael ou Paul, ou sei lá o nome do imbecil falou com Camila de uma forma que não gostei, conheço bem aquele tom, é o que minha mãe sempre usou para falar dos vizinhos.

— Ela é real sim, Paul. E é linda. — Camila me olhou admirada. — Muito linda.

— Xiii, mas tá apaixonada mesmo. Já era pro Paul. Perdeu a chance.

Quem era o futuro defunto Paul? Qual deles era mesmo? Olhei ao redor entre os vários homens.

— Ele nunca teve chance. — Camila sussurrou sem graça e se escondeu olhando o menu.

Ela estava tão diferente de quando chegamos. Estava cabisbaixa, encolhida e descascava o esmalte das unhas com o dente. O garçom chegou para anotar os pedidos.

Olhei o menu, eram preços altos até para mim. — Quero guacamole e um suco de laranja e você?

Me virei para Camila que olhou entre mim e o menu.

— Aposto que vai pedir só água gasosa de novo. — Uma mulher falou em tom jocoso. — Pede água da torneira que não paga.
Muitos riram, a raiva subiu na minha garganta.

— Você ainda está na vibe vegetariana, Camz? Porque os frutos do mar parecem apetitosos. — Fingi não ouvir o que aquela idiota falou. Camila me olhou assustada, frutos do mar eram do preço de um baço, e olha que nem sei para o que esse órgão serve.

Pisquei para ela e apontei o menu na opção mais cara. Ela escolheu minha indicação e devolveu o menu ao garçom.

Devolvi o meu também. — Cancela o suco e trás o melhor vinho da casa, quero a garrafa.

O garçom saiu e todos me olhavam de uma forma esquisita.
— Você é produtora, né? Quais seus sucessos?

Um deles perguntou, respondi sorrindo. — Isso é relevante para o jantar? Se for, quais suas peças receberam globos?

Um clima tenso pairou sobre a mesa. É, Dinah tinha razão, minha lua em escorpião estava dando as caras. Camila colocou a mão na minha perna. O garçom se aproximou mostrando a garrafa, experimentei, o vinho era bom mesmo. Ele encheu minha taça e a da Camila.

— Tem um vinho melhor que esse no cardápio.  — A protagonista falou com desdém

—.Compra ele então, vamos brindar junto ao meu.

E o clima ficou mais tenso ainda. Camila tentou aliviar puxando assunto. Acho que eu estava usando um tom mais agressivo.

— Você fez um ótimo teste Normani. — Camila falou com uma mulher que até então estava calada na mesa.

Essa mulher a olhou com desconfiança. — Tem certeza de que não está chateada por não ter conseguido a vaga de cantora desta vez?

—O que? Não! Foi justo. Ficou perfeito na sua voz.

— Ela provavelmente teve um ataque quando não conseguiu o que queria de novo. —  Um dos idiotas falou e todos começaram a rir.

Quando olhei para Camila, ela parecia  envergonhada. A cutuquei. — Ainda não ouvi você cantar. — sorri — Você terá que cantar pra mim algum dia.

Aquele olhar brilhante da Camila conseguia me acalmar. Ficamos nos olhando até eu ouvir que falavam sobre mim.
— Ela que lançou a Halsey, não foi? — A protagonista perguntou a um cara e depois olhou para mim — Você e a Halsey namoraram né? Vai lançar a Camilinha também?

Sabia que em algum momento meu namoro com a Ashley viraria assunto da mesa.
— Camila foi a atriz que mais brilhou naquela peça que assisti, com certeza merece sim um investimento, mas creio não ser a pessoa indicada pra isso.

Camila enlaçou seus dedos nos meus debaixo da mesa e colocou a cabeça em meu ombro. Ela estava tão frágil.

— Mas ela ainda tem que aprender muito. — Parecia que eu havia dado um tapa na protagonista, a mulher ficou muito nervosa.— Nem tudo é só talento não, tem que se esforçar igual eu. Sabe o quanto eu me esforcei pra esse papel?

Ela começou um monólogo onde era a vítima sofrida.

— Vocês estão juntas? — Normani interrompeu o monólogo graças a Deus.

— Somos apenas amigas. — Respondi um pouco envergonhada.

— Isso é inteligente da sua parte. — Um cara afeminado falou. — Essa garota é tão exigente quanto parece.

Camila bufou. — Não é bem assim...

— Cale a boca, secundária. Ainda é cedo e você já está me irritando.

Olhei para todos na mesa. Era sério isso? Camila mexia nas suas mãos encolhidas na mesa. Este foi um grande contraste com a Camila que parecia tão animada antes daquele jantar. Como é possível que os amigos dela sejam tão idiotas?
Eu não precisava daquilo, muito menos Camila. Fingi sentir uma dor na barriga. — Não estou me sentindo bem.

Camila se sentou em um pulo e olhou preocupada para mim. — O que foi?

— Acho que é meu estômago. 

Levantei a mão e chamei pelo garçom. Pedi para viagem nosso pedido. Ele trouxe pouco tempo depois, junto a conta. Paguei e saímos.

Quando entramos no carro Camila ainda me olhava preocupada. — Vamos em qual hospital?

A olhei e sorri. — Nenhum. Eu só queria te tirar de lá.  — Liguei o carro.

— Desculpa, meus amigos foram idiotas. Vou ter que conversar com eles.

— Acho que terá que ter mais que uma conversa.

— Eu só queria ter uma noite divertida com todos os meus amigos. Mas é claro que isso não poderia acontecer. E sinto muito por ter arruinado sua noite de domingo.
Ela parecia tão chateada. Colocou o cinto devagar, olhos perdidos no painel e no nada.
— Era isso ou ser uma vela no encontro da Dinah. Ou assistir Peter e David jogarem Xbox até o amanhecer. Ou curtir Netflix de calça de moletom a noite toda. Vou te levar pra sua casa.

Fizemos nossa jantar no carro, paradas em frente ao apartamento dela. Conversamos sobre filmes, sobre o namorado da Dinah e sobre os amigos idiotas dela.

— Obrigada novamente — Camila tinha um jeitinho tão doce — Apesar de tudo com meus amigos, eu realmente me diverti muito.
— De nada. Gostei também.

Notei Camila mordendo o lábio, como se estivesse tímida para dizer alguma coisa. — Vo-você vai para casa assistir TV a noite toda como era seu plano original?

— Provavelmente. — Dei de ombros.

— Você sabe que pode fazer isso aqui se quiser. Podemos assistir TV no meu quarto.

— Eu não sei. Está ficando tarde.

Ela me olhou esperançosa. — Então você pode passar a noite aqui.  — Camila falou alto, como se tivesse segurando aquela frase há muito tempo.

Pensei a respeito, eu estava um pouco alta do vinho. — Tudo bem.

Amigos dormem na casa um do outro, certo? E apenas dormir  não é o fim do mundo. Mas qual meu desejo real com ela?

Intersex - a história  de LaurenWhere stories live. Discover now