VI - Maven

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Mare me contou de seu irmão, morto antes da dispensa. A vejo sofrer em cada andar. Parece triste, desanimada e com medo. O que me entristece também. Minha mãe envolverá Cal nisso, e não quero perdê-lo. Ele sempre esteve ao meu lado, mesmo que minha mãe o afastasse de meus pensamentos sempre que pudesse. E Mare. Eu gosto dela, e não quero lhe ferir também. Não posso deixar que minha mãe a afaste. Não vou.

Adentramos em um grande e feroz veículo negro. A estrada que nos leva a casa do governador Welle - que por sinal governa a região de Palafitas - é larga e arborizada. Cheiro de pinheiros nos acompanha durante todo o trajeto.

Mare parece tensa. O lugar parece-lhe familiar. Seu olhar nostálgico me incomoda. Quero lhe confortar, mas não sei o que dizer.

A casa dos verdes faz jus ao nome. Árvores frondosas e jardins percorrem todo o terreno visível, envolvendo a casa de mármore branco em um cobertor florido.

Somos recebidos gentilmente por Heron Welle, uma das participantes da Prova Real. Antes, costumava invejar Cal por possuir tantas pessoas babando por ele. Agora, por algum motivo, me envergonho de tê-lo feito. Pela primeira vez, me sinto animado em viver. Não sei o que vem pela frente, minha mãe não sabe o que vem pela frente, então ela não tem como me dizer o que devo fazer.

Dias atrás, minha mãe me proibiu de demonstrar qualquer sentimento por Mare, a menininha elétrica. Mas não obedeci. Não pretendo. É uma chance de impedi-la de me controlar em tudo. Mas preciso manter meus pensamentos baixos, se não ela pode escutar.

- Alteza.

A voz de Heron me acorda. Antes que eu possa responder, minha mãe finca as unhas em meus braços e me puxa, sorrindo e mantendo sua pose.

- Com licença. Maven? Poderia me acompanhar? - Suas palavras são docemente disfarçadas. - Maven, basta.

Basta o que, minha gente? Não fiz nada.

Ela percebe minha confusão e sua expressão se alivia.

- Está feito. Não precisa mais ficar dividido entre mim, e - Ela se vira para meu pai e meu irmão - eles. Você é uma parte essencial para tudo dar certo.

Ah. Ela fala de matar meu pai, exilar meu irmão e assumir o trono como se dissesse as horas. Mais uma vez, minha mãe decide por mim. Tento contestar, mas ela é mais rápida, e me impede. Estamos atraindo alguns olhares curiosos e desconfiados, então ela se torna mais terna.

- Querido, já conversamos sobre isso. Irá acontecer, e não há nada que você possa fazer. - Sua voz doce me enoja.

- É a minha escolha. Você não pode e não vai decidir por mim. - Sou cético, não vou aceitar que ela passe na minha frente mais uma vez.

Minha mãe bufa, mas concorda.

- Pois bem. É sua escolha. - Desconfio de sua concordância inesperada. - Mesmo que já esteja decidido.

Antes de mais nada, ela pisca e se afasta. Me provoca a respeito do meu próprio futuro. Aos olhos dela, seus planos para mim são benéficos. Mas eu não vejo assim. Assumir o trono seria ótimo, mas perder meu irmão é outra coisa.

De repente, sinto tontura e enjoo. É ela. Pensei alto demais.

Ela invade meus pensamentos como um tigre arranhando a jaula. Tento resistir, mas sua técnica é tão sutil que não consigo. Seus olhos azuis e vazios me invade grosseiramente.

- Sabe? Cansei de pensar que você amadureceu. Que pode tomar decisões por si próprio. Porque não pode. Não consegue. - Murmura em minha mente. Uma discussão silenciosa para os olhos de fora, mas perigosa para os envolvidos. - Você deveria saber que desde seu primeiro suspiro eu arquiteto esses planos. E você não vai arruinar tudo. Eu jamais permitirei.

- Você se enganou. Eu amadureci sim, o suficiente para perceber o quanto você me controla. Você invade meu cérebro e comanda tudo, apaga ou mantém o que quiser, ou o que lhe convém. Mas se esquece que é MEU cérebro, eu decido as coisas por aqui.

Mesmo em minha cabeça, consigo perceber que ela se chateia com minhas palavras. Planejo me desprender dela a
há muitos anos, e quando o faço, sinto pena dela.

- Foi ela. ELA fez isso com você.

Uma breve memória de Mare transparece na minha mente. É claro que ela iria achar um culpado para minha pequena rebeldia. Eu não posso simplesmente acordar e bater o pé para ela. Ela não me moldou assim.

- Mare não tem nada a ver com isso. Lembre-se que você mesmo me obrigou a me casar com ela. Mas isso não vem ao caso. Eu cansei de você. Cansei do seus murmúrios. Do seu controle.

A raiva em minha voz a afetou o suficiente para que saia de minha mente. É como tirar o mal pela raiz. Um alívio. Ela me faz mal.

Quando a vejo colocando a mão sobre o peito e abaixando a cabeça, sinto uma pontada de arrependimento. Porém, algo mais me incomoda. Ela não costuma ser fácil de derrotar assim. Costuma penetrar o mais profundo no meu cérebro, apagar tudo que não lhe convém e me incinerar com suas ordens. Mas dessa vez, ela parece abatida.

Até que percebo a verdadeira razão dela estar tão capisbaixa.

Meu pai e Cal e conversam distraidamente com o governador Welle e sua família. Evangeline monta guarda ao lado de Cal, abrindo a boca apenas para se vangloriar acima de Heron. Já Mare nos observa. Troca algumas poucas palavras e sorrisos com a esposa do patriarca, mas seus olhos estão cravados em nós. Minha mãe e eu estamos afastados do restante, de modo que ninguém além de Mare nos vê. Ou a mulher que surge por trás da minha mãe.

Ela a toca, e a rainha estremece. Nunca vi minha mãe assim, tão pequena e impotente diante de uma estranha. A mulher tem seu rosto parcialmente coberto, de modo que não consigo a identificar, mas apenas pelo toque, minha mãe sabe quem é. E a teme.

- Elara. - A mulher murmura seu nome como uma melodia triste.

A voz. Eu a reconheço.

- Elara. - Ela repete, impaciente. - Querida, onde está suas aulas de etiqueta? Olhe para mim.

A rainha repele seu toque, e a olha numa mistura de raiva, medo e amargura. Há algo entre as duas, que se encaram numa conversa silenciosa.

Literalmente.

Concluo que minha mãe deve estar murmurando para a mulher, evitando qualquer suspeita externa. Mas não pode ser. A mulher revira os olhos e passa a me olhar, como se não estivesse sobre o controle de minha mãe. Talvez ela tenha autocontrole. Talvez também seja uma murmuradora. Talvez seja mais forte que minha mãe.

Os olhos dela.

São mais azuis que o azul cinzento de minha mãe. São como os meus. Mas as diferenças entre as duas para por aí. Seus longos cabelos loiros estão soltos, ostentando os mesmos cachos dourados da minha mãe. Até o sorriso angulosos e as altas bochechas são iguais.

Elas são iguais.

Príncipe EsquecidoWhere stories live. Discover now