Capítulo XVIII - Cal

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Me sinto morto. De novo.

O peso das pedras silenciosas ainda pendem sobre minha pele, me desgastando. Ninguém sabe o que passei lá. Trauma é uma palavra que não chega aos pés. Eu fui pego, e levado para aquela cela. Torturado pela irmã de Eliea, Mackenzie. Ela vasculhou meus pensamentos, minhas piores lembranças. Me contou, ou melhor, me mostrou como matou minha mãe. Esse tempo todo, culpei Eliea. Mas era Mackenzie, sempre foi ela. Ela achou lembranças que eu nem sabia que existia. A verdadeira Elara era doce comigo. Amiga de minha mãe, foi confiado a ti eu e meu pai. Ela cuidou de nós. Mas quando Mackenzie assumiu, arruinou toda minha vida, e fez questão de encobrir toda as minhas lembranças boas de Elara.

Torturaram meu pai também. Ele não foi obrigado a encenar para as câmeras, como eu. Mas teve sua dose de dor. Mackenzie invadiu sua mente, tão intensa, que o deixou praticamente morto. Eu gritava para que ela não fizesse isso, mas nada adiantara. Meu pai morreu porque não aguentava o peso do desgaste. E seu óbito foi outro motivo para me torturar. Mackenzie parecia brava quando terminou seu serviço com ele, e saiu em disparada. Ela viu algo que não devia. Ou não conseguiu ver.

Agora, cada movimento que faço com as alavancas e botões do jato, estremece dolorosamente cada músculo do meu corpo. Mare me encara. Seus olhos aparentam preocupação, e medo. Medo de mim. Devo estar parecendo um monstro. Atrás de nós, o cadáver de meu pai cai para o lado. Maven pula do banco, roubando risadas de todos. Ele também está sendo enforcado pela dor da perda.

A nossa frente, as nuvens ficam mais densas. Estamos nos aproximando. A região em que Mackenzie escolheu para combate costumava ser planícies verdes, com poucas árvores, mas exalava uma brisa campestre. Agora, só cheira a pólvora, carvão, fumaça, metal e sangue. Respiro fundo, e foco na real situação. Estamos indo em direção ao combate, precisamos acabar com o exercício de Mackenzie, e rezar para que seja apenas aqueles homens.

Com um piscar de olhos, saco o rádio. Mare arregala os olhos, curiosa.

- O que está fazendo? - Pergunta.

- Vou pedir reforços. - Respondo. Mas antes de falar, caio na real. - Mare, você estava no jato, qual era as ordens que Eliea deu as soldados?

- Bom, pelo que escutei, Eliea reforçou as tropas em Corvium, e foi em direção ao confronto, levando dois jatos de soldados consigo. São os únicos que estão lutando agora, mas não são muitos. - Diz. Agora, digito o número no rádio. O chiado estremece Mare.

- Aqui é Tiberias VII, sua alteza real. - Digo, desinteressado.

- Alteza? O código, por favor. - Diz a voz desinteressada.

- FP002NRT-S.A.R. - Digo.

- Alteza! Do que precisa?

- Cinco jatos com soldados, dois com curandeiros, dois com suprimentos. O mais rápido possível. Ao norte do Estado do Príncipe, extremo sul de Rocasta. Conflito aberto. Adversários visíveis: Prairie. Presenças de S.A.A.R., S.M.M.R., S.L.L.R.

- Entendido. Atendendo ordens. Chegada em vinte minutos. Câmbio desl... - Antes que possa terminar, interrompo a transmissão. Ao meu lado, Mare geme de dor.

- Costelas e mandíbula quebradas. Nariz e mãos sangrando, milhares de feridas abertas. - Diz. Esboço um sorriso, orgulhoso. Ela está aprendendo a fazer seu próprio relatório. - Não ria de mim, estou ferrada.

Dessa vez, nem preciso forçar o sorriso. Eu também não estou para melhor. A medida que nos aproximados, sinto um frio na barriga. Não só pelo clima da região, mas também pelo medo. A neblina, antes limpa e campestre, agora fede à cinzas. Oblívios. Me arrepio ao pensar em combate.

- Estamos nos aproximando. Vou pousar à 20 metros do perímetro. - Digo, roboticamente. O jato treme a medida que pousamos. Olho pela última vez para meu pai. Vou deixá-lo ali, seguro. Assim espero. Mare se levanta do assento copiloto, com as mãos nas costas. Parece uma idosa. - Aguente até o jato dos curandeiros chegar. - Digo, e ela assente, já não é doida de hesitar. Logo mais, ouço ruídos de motor, e o rádio chia.

- Alteza, indentificamos seu jato. Autorização para pousar próximo.

- Autorização concedida. - Assinto. Levamos sorte. Antes que possamos descer, as aeronaves já estão no solo. Totalizam dez, mesmo que eu só tenha pedido nove. Vou de encontro à primeira aeronave, que pende as cores Skonos. Mare me acompanha. - Ela. - Sibilo. O curandeiro atende, e com toques aqui e ali, a cor volta às bochechas de Mare, mas a maquiagem ainda persiste.

- Alteza! - Um soldado diz, descendo de outro jato. Sua ação acompanha uma reverência bruta. - Onde está Vossa Majestade? - Pergunta. Em resposta, olho tristemente para o pequeno jato em que viemos, ele compreende. É de minha legião.

- Não temos tempo. Vamos. - Grito. Em um segundo, estamos em posição. Um exército de no mínimo cem soldados. Todos prateados. Liderados por mim, Maven e Mare. Um sorriso satisfeito surge, sem meu consentimento. Estou animado, apesar de tudo.

*****

Marchamos silenciosamente. Atravessamos a cortina de fumaça, e lá estava ela. Vários soldados com uniforme amarelo-areia, com um P no peito. Soldados prairienses. Reconheço dos livros de batalhas que tanto li. Corro os olhos por toda a área. Eles estão ganhando. Estão com a vantagem. E eu estou pronto para roubá-la. Sinalizo, e atacamos. Meus soldados, todos de preto, adentram. Temos diversos poderes do nosso lado. Ninfoides, oblívios, telecs, magnetrons, silenciadores, forçadores, dobra-ventos e silfos. O adversário possui, em sua maioria oblívios. Há uns ou outros ninfoides, telecs e silfos. Vai ser fácil. Espero.

Um soldado contra-ataca em minha direção. Lanço labaredas com a direita, e a esquerda quebra seu pescoço. Ele cai no chão, e eu listo. Um. Logo dois vem. Crio um inferno para eles, que logo some, devido ao ninfoide me encarando. Soco, empurro, chuto. Saco sua espada e lhe causo cicatrizes feias. Suficientes, mas não mortais. Dois. Imobilizo o outro também, que pediu por cortes na barriga, ele ruge. Três. A direita, ouço Mare gritar de dor. Ela recebeu uma faca no ombro. Mas o curandeiro acude, e ela está sobre proteção de Maven. Não há o que me preocupar. Não há.

Sou interrompido por um empurrão. Muito forte. Um telec me arremessa, e caio na grama empoeirada. Isso lhe arranca gargalhadas. E não perdoo. Incendeio todo o perímetro, e não o poupo. Seu uniforme queima, e ele também. Desvio o olhar para outra parede de chamas que funde com a minha. Maven ri ao meu lado. Ele está mais poderoso do que lembrava. Rio também, não é sempre que eu e meu irmão lutamos juntos.

Olho para cima, e vejo nuvens negras se unindo. Ao fazê-lo, um raio roxo e branco cai. E com ele, dezenas de soldados. Mare permanece em pé, e sorri para nós.

Um oblívio explode a árvore ao meu lado, e logo mira suas mãos para mim. Antes que dê um passo, caí para frente. Suas costas e a cabeça trajam dezenas de facas. Ergo os olhos, e Evangeline está em minha frente, poucos metros de distância, ainda posicionada no ataque, com as mãos mirada. Fico boquiaberto e confuso. Ela ri.

Evangeline vai de encontro à Mare, e lhê entrega uma espada prata, com o cabo lilás. Mare pega, e não parece confusa. Ela esperava por isso. Em agradecimento, Mare sorri e murmura algo. E pela primeira vez, me sinto com amigos. Diferentes, claro. Mas fortes. Iremos lutar juntos, e como o futuro de Norta que somos, até podemos nos tornar, e tornar o país, uma grande potência imbatível. Norta já é grandiosa em armamentos bélicos, tropas e na arte da guerra, mas não somos impossíveis de sermos dominados.

Vou fortalecê-la. E todo o continente vai temer Norta, a Chama do Norte. Que se preparem, e me aguardem. Quando eu decidir, será para valer. E eu vou vencer. Analisando minha expressão, Maven pergunta.

- Força e poder? - É, ele me conhece. Sabe que os que estou pensando tem a ver com isso.

- Força e poder! - Rujo, assim como o restante dos soldados. As três palavras se tornam uma onda, e ganhamos ao som de nosso grito de guerra.

Força e poder.

Príncipe EsquecidoWhere stories live. Discover now