Capítulo XVII - Mare

515 45 8
                                    

Nunca tive muita afinidade com o rei Tiberias VI. Sei que era solitário. Havia sido abandonado pela única pessoa que amou, Coriane Jacos. Ela foi-se, mas deixou um pedacinho de si no mundo. Cal. Por isso Tiberias amava tanto seu filho guerreiro. Vê-lo dessa forma, estirado no chão, banhado no seu próprio sangue, me atormenta. Não por mim, mas pelos filhos que deixou. A linhagem Calore está se dissipando. Só resta ao reino, dois filhos do fogo. E cabe a mim e Evangeline fortalecê-la. Me belisco. Não posso ser egocêntrica, não agora. Fora que esse pensamentos me assustam.

Maven chora ao meu lado, tentando ser discreto. Cal aparenta cansaço. Ele lutou. Viu seu pai morrer na cela à frente, incapaz de impedir. Mas mesmo assim, lutou. E agora? O que será de nós? Com o show familiar que presenciamos minutos atrás, não sei se alguma das rainhas Merandus irá ceder o trono a Cal. Mesmo que lhe seja de direito. Demoramos a encarar o cadáver. Principalmente Maven. Os irmãos estão em estado de transe. E quando mais guardas se aproxima, sou obrigada a tomar a rédea. Não posso lhes tirar o momento.

Um sentinela, que estava fazendo ronda pelo corredor, nos vê. E antes que possa fazer qualquer tipo de contato com o rádio, desligo-o. O guarda fica encarando o aparelho, confuso. Não lhe foi informado quem eu sou. Aproveito a chance e lhe lanço rajadas elétrica. Ele cai, ainda com os olhos arregalados. Morto. O barulho desperta outros guardas. Consigo ouvir as vozes antes de nos alcançar. E são muitas.

- Maven, precisamos tirar Cal daqui. - Digo. Mas Maven quase não me escuta. Está em estado de choque. Novamente, assumo a ordem. - Cal, sabe como podemos abrir? - Questiono. Cal levanta o olhar do pai para mim. Cansado.

- As jaulas são controladas por magnetrons, como sempre. Mas também há um portão. - Diz, apontando o queixo para uma pequena passagem estreita, no canto da cela. - A chave está com o sentinela ninfoide. - Continua. Mas antes de reagir, me lembro de como fui trouxa. Para quê chave?

Retiro uma presilha do cabelo. Sua ponta traz um pequeno rubi, mas logo o arranco e estico o metal. Pressiono-o na fechadura. Procuro pela trava. Clic. O portão abre, rangendo horrivelmente. Cal se levanta, devagar e relutante. Não queria sair dali. Não queria abandonar o pai. Seus olhos dirigem-se a mim, em súplica. Entendo o recado. Mesmo não sendo de acordo, assinto. Desliso o metal sobre a fechadura da cela do rei morto. Clic. De novo. Cal entra, e Maven pisca várias vezes, liberando mais lágrimas. O corpo é pego. Cal o coloca por cima dos ombros. Isso pode atrasar nossa fuga, mas sei o valor sentimental que possui.

- Vamos. - Sibilo.

Corremos pelo corredor. Envio blecautes por onde passo. Cal já está ofegante. O peso que carrega certamente é muito, mas ele ignora a dor nos ombros. Assumo a frente, e tombo com outro sentinela. Estamos tão próximos que sinto sua respiração. Desliso a mão por seus ombros, liberando faíscas. O corpo cai. Já é o segundo de minha lista. Só hoje. Subimos as escadas e meu sentimento de claustrofobia evapora. Mais guardas correm até nós. Receberam o alerta. Maven libera um paredão de fogo, para afastar os guardas, mas nenhum ninfoide se assusta com fogo. As chamas morrem, em vão. Agora, Maven é quase afogado, com bolhas de água vindo em sua direção a todo momento. Recebo um chute na barriga. Forçador. E antes de lutar, recebo um no joelho, me derrubando de verdade. Atrás, Cal é expulso de seu lugar por meio de raízes. Verde. As raízes enlaçam suas canelas e recebe um jato convidativo de água. Entre respirações pesadas, Maven está caído. Sua pele quase azul, seus lábios transparentes. Ele treme. Está se afogando.

- Pare! - Grito. E como resposta, recebo um chute na boca. Bufo de raiva antes de bufar de dor. Cal lança labaredas em direção ao forçador, que cai de joelhos. Tento levantar, mas um soco atinge minha mandíbula. Rujo de dor, tão alto que poderia ser de um banshee. Minhas costelas estão quebradas, minha mandíbula também. Aproveito a deixa, e forço meus braços contra o forçador, eletrocutando-o. Ao meu lado, Maven cai. Estou quase matando o sentinela que me atacou, quando vejo um corpo vindo em minha direção. Um telec arremessou o cadáver de Tiberias VI em cima de mim! Tento me desvencilhar, mas o peso é maior. É assim que acabamos? Luto contra o morto, em vão. Cal ergue uma muralha de fogo com a força que lhe resta. Fraca. Mas me dá a chance perfeita.

Nessa hora, sinto ódio. Penso em todos os momentos raivosos. Desde o minuto em que cai no escudo elétrico, até a hora em que vi o rei morto. Grito. De ódio, de dor, de medo. Libero toda minha força. Ainda gritando, lanço uma onda de eletricidade pelo chão. Tão forte que arregalo os olhos, surpresa. Todos caem. Não consigo sequer poupar Maven ou Cal. As luzes no teto explodem, fazendo chover cacos de vidro. Sinto o motor do jato chiar, alegre pela dose generosa de energia. Isso me dá uma ideia.

Seguro no pé de um banco, e me puxo. Deixando o corpo do rei. A onda elétrica foi suficiente para deixar todos desacordados, alguns até mortos. Caminho pelo jato, e vejo muitos corpos caídos. Deviam ter sido convocados, e correram para resolver o problema. Mas acabaram se tornando um. Arrasto os cadáveres para fora do jato, jogando-os na pista. Corro até Cal, que ainda respira.

- Cal, acorde. - Grito. Ele levanta, num salto espantado. - Consegue pilotar? - Pergunto. Ele me olha, confuso. Deve estar se perguntando a loucura que pretendo fazer. Até eu quero saber.

- Sim. - Diz, cerrando a mandíbula. Maven, levantando devagar, quase cai de novo. Apoio-o em meu ombro direito, pois o esquerdo está quebrado. O rei morto é jogado novamente nos ombros de Cal. A cena quase me faz rir. Mas seguro-me, por respeito.

Guio até as escadas, que nos levam para o teto do avião. A brisa campesina me acolhe. Outros três pequenos jatos estão estacionados em cima da aeronave. Quase me esqueço que estamos em um porta-aviões, cujo é uma espécie de abutre, só que maior, e seu teto é uma pista para jatos menores pousarem. Corremos em direção ao primeiro. O jato é pequeno. Possui espaço apenas para a cabine, e mais quatro bancos. O rei morto é jogado sobre um, e Cal tem a delicadeza de lhe prender no cinto. Debruço Maven no banco de trás, e vou para a cabine.

- Como posso ajudar? - Digo, enquanto Cal quebra uma placa do jato, e puxa um emaranhado de fios, liberando espaço.

- Libere energia nesse painel. - Ordena. Faíscas correm por alguns fios e pelo painel. Abaixo de nós o motor ruge. Cal aperta muitos botões e move alavancas, com uma facilidade inexplicável. Pela janela, avisto as turbinas movendo-se, e a pista do porta-aviões se distanciando.

- Qual é o nosso destino? - Pergunto.

- Não vamos fugir, certo? - Ouço a voz de Maven atrás. - Vamos voltar lá, e lutar junto? - Questiona. Sei que não quer abandonar sua mãe, e nem sua tia. Família complicada. Cal me encara, esperando uma resposta, mas eu não tenho uma. Então, improviso. Mas não sei se é a decisão mais sensata.

- Vamos lutar.

Príncipe EsquecidoWhere stories live. Discover now