Epílogo

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Já passava das três da manhã quando a garota recolheu o último porta-retrato sobre a escrivaninha metálica. Ela olhou por alguns instantes para a criança sorridente na foto, ao lado do irmão mais novo; uma menina feliz e ignorante a eventos futuros a encarava de volta. A lembrança sobre aquele dia a atingiu forte, mas ela se obrigou a guardar o porta-retrato na mala, junto aos demais pertences.

Uma semana tinha se passado. Sete dias em que ela tentava, com muito afinco, esconder o que tinha se tornado. Não as habilidades sobrenaturais, – embora não estivesse nenhum pouco ansiosa por mostrar isso também – mas a falta daquilo que a tornava humana. Que a tornava semelhante a eles.

Vez ou outra, ela tinha a impressão de que Dave tinha plena consciência de sua situação, ou pelo menos suspeitava disso. E todas as vezes em que ele tentava abordar o assunto, ela se esquivava. Começava a divagar habilmente sobre férias, sobre futuras idas à praia, e até mesmo voltar a trabalhar – não como assassina, claro – para Kaellyn. E então a suspeita de Dave fora diminuindo gradativamente, dia após dia enquanto ela inventava planos de um futuro que não existiria.

A adolescente então esperou. Esperou o arrastar demorado de cada um dos dias que antecederia sua partida. E ele finalmente tinha chegado. 10 de junho. A data em questão era uma mera coincidência de sua existência cruel. Porque naquele mesmo dia, dezoito anos antes, uma menina nascia em algum lugar entre o Paraíso e o Inferno. Nascia sem saber que toda sua vida fora meticulosamente predestinada por terceiros, que as pessoas aprendera a amar sofreriam e que chegaria a hora em que todos aqueles sentimentos não passariam de uma vaga lembrança e ela partiria. Que ela partiria. Talvez não fosse mera coincidência então. Talvez até mesmo aquilo fora predestinado. Ela percebeu que não tinha controle sobre a própria vida e nunca o tivera.

Uma última vez, ela encarou seu reflexo no espelho de moldura branca; os olhos dourados incandescentes transmitiam todo o poder que espreitava a sua pele, mas nada além disso; o cabelo volumoso e escuro parecia ainda mais brilhante e cheio de vida e ela considerou cortar os fios; seu rosto ainda era o mesmo, no geral; aquela argola de prata ainda tinha espaço em seu nariz arrebitado e os lábios rosados ainda eram convidativos. Contudo, sua pele, que um dia fora tão pálida e sem graça estava mais brilhante e não do tipo esquisitamente brilhante, apenas mais bronzeada, contrastando elegantemente com as roupas pretas. Ela exalou. Seus amigos ainda insistiam em chamá-la de Scarlett, quando ela sabia que não era mais aquela garota. Então não poderia se dar ao luxo de receber felicitações em nome de alguém que tinha se perdido em algum lugar em seu âmago, uma semana antes. Seria desrespeitoso, até mesmo pra ela.

— Eles vão ficar bem sem você, coisinha imortal. — Ela sussurrou a si mesma e tirou do bolso da jaqueta a carta que tinha escrito dois dias antes.

A jovem sabia o que Naomi andara planejando a semana toda. Uma festa. Um dia de comemorações com pessoas que ela não saberia como tratar, não agora. Já era um esforço enorme tentar agir normalmente com Dave, Naomi, Joe e até mesmo Dakota – que passava a maior parte de seus dias entre eles agora. E ela não poderia lidar com mais, quem quer que fossem os convidados.

A carta escrita à mão, de envelope preto, fora cuidadosamente colocada sobre um dos travesseiros de pena que compunha a cama organizada. Mais uma vez ela suspirou. Tinha feito muito isso nos últimos dias, quando não sabia o que pensar e o que sentir a respeito de tudo. Ela não se permitiu olhar para trás uma última vez, antes de se esgueirar entre as sombras da noite para fora do quarto e fechar a porta.

No fim do corredor, ela encarou aquela porta simples, onde passara tantas horas de sua vida. Meu inferno particular, era como ela chamava o quarto cheio de armas e também lágrimas. Fora cuidadosa ao retirar todos os seus pertences do cômodo sorrateiramente ao longo da última semana, pois não poderia haver lacunas, nada que indicasse que um dia ela estivera ali, quando a hora chegasse.

Criaturas Celestiais - A Ascensão [CONCLUÍDO]Where stories live. Discover now