Capítulo 01: Inverness

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Olá, querida leitora

Então esse é o começo dessa jornada de duas partes. 

Faça uma ótima leitura!

***




Cheguei a Inverness após o almoço. A cidade estava úmida e o ar carregado de nuvens cinzas que pairavam acima como bexigas prontas para explodir. Aproveitei o longo dia de primavera para conhecer o emaranhado organizado de ruas e vielas com ar medieval, de construções de pedra, muralhas e castelos que compunham o cenário da minha primeira viagem desacompanhada. Eu estava ‒ talvez pela primeira vez ‒ por minha conta.

A pacata e simpática cidade fica na costa nordeste da Escócia, é considerada a capital das Highlands, onde o rio Ness encontra o mar Moray. Na minha lista de pontos turísticos do dia, estava a Catedral de Inverness, do século XIX, a igreja Old High St. Stephen's, do século XVIII, e o contemporâneo Inverness Museum and Art Gallery. Quando finalmente anoiteceu, tudo brilhava, as luzinhas nas casas e nos estabelecimentos mantinham a hospitalidade acessa em lâmpadas amarelas. Eu me encolhia com as mãos cerradas nos bolsos, meus ossos das pernas doíam de frio, mesmo assim era estranhamente aconchegante caminhar junto do rio Ness, que corria pintado pelas luzes coloridas da cidade. Eu o acompanhava ou seria ele me acompanhando?

Dando-me por vencida, humilhada por subestimar o clima escocês, gélida e pálida, retornei ao B&B, encontrando minha mala no quarto, junto de um bilhete de boas-vindas escrito à mão. A dona do local era uma fofa. Meu quarto, bastante confortável e aquecido, era equipado com uma cama grande, uma mesa de jantar redonda com duas cadeiras, e uma poltrona verde musgo próxima da janela, de onde se via toda a extensão da rua. Caminhei e me encostei no parapeito, observando a vida acontecer, as pessoas se movimentando, um carro passando sem pressa, e a noite plena atenuada pelas luzes fracas dos postes. Alguns minutos fitando o céu e a chuva tão anunciada caiu pesada, em ritmo musical. Abri um pouco o vidro da janela e o quarto se inundou com os sons dos pingos nas pedras da rua, e o tilintar na calha metálica alguns metros acima no telhado. Continuei apreciando a música da chuva, de olhos fechados, aguçando meus sentidos, me concentrando, me conectando... me reencontrando. Ouvindo todos os sons, a dança da chuva, identificando os cheiros na brisa aromática. Sentindo a temperatura da gota d'água que bateu no vidro e respingou no meu rosto... trilhando um caminho, como lágrimas.

E foi o ronco de uma barriga que lembrou de que eu não comia desde o almoço, e sem nada planejado nessa instância, pedir comida foi a solução da qual desfrutei enquanto colocava a minha leitura em dia e desacelerava meu cérebro. Duas horas mais tarde, rolando de um lado ao outro na cama, o corpo dolorido no esforço inútil de tentar dormir, resolvi procurar um bom lugar para beber. Fui instruída pelo recepcionista noturno do B&B a andar até o final da rua e virar à esquerda, onde caminhando mais alguns metros, encontraria um pub. Era tarde, mas não para esse estabelecimento desgarrado, cheio de almas sedentas por algo, nem que fosse apenas de um momento apreciando uma bebida. Segui pela viela deserta, a chuva cessara, mas as pedras ainda molhadas estavam meio escorregadias. O céu estampava um negro iluminado por estrelas, e o ar frio fazia meus lábios gelarem junto da ponta do meu nariz. Um frio cortante e peculiar o das Terras Altas, mesmo se tratando de uma estação amena.

A fachada do estabelecimento batizado Slàinte era rústico e sem vida. Um paredão de pedra tomado pelo marrom do lodo e o esverdeado rico dos líquens, que tinham seu crescimento interrompido apenas pelas três aberturas, duas janelas e uma porta no meio; tudo em madeira maciça, pesando uns trezentos quilos e com idade de pelo menos trezentos anos... Observei brevemente o interior quando a pesada porta se abriu e um freguês saiu cambaleante, descendo os dois degraus de uma vez.

Esses degraus são uma grande armadilha. ‒ Pensei antes de dar uma última soprada no ar e entrar no pub sem olhar para os lados. O interior estava quente, foi a primeira sensação que me ocorreu, a de querer tirar o casaco. Enquanto caminhava até o balcão, senti o peso dos olhares as minhas costas, eu não era a única mulher ali, tampouco a única turista, mas eu estava desacompanhada... Uma viajante solitária. O pensamento me fez querer uivar como uma loba por um momento.

— Whisky, por favor... duplo. ‒ E esse foi meu uivo, e minha voz soou decidida. O garçom me analisou alguns segundos, depois serviu a bebida sem mais observações veladas.

Bebi um longo gole do líquido sedoso, meus olhos lacrimejaram e os fechei apreciando enquanto era aquecida de dentro para fora. Senti o degelo das extremidades do meu corpo, meus dedos dos pés e das mãos, meus mamilos, minhas orelhas e meu nariz, que antes levemente adormecidos, agora pulsavam em resposta ao conforto rápido do álcool. Permaneci no bar por uma hora, e nesse tempo repeti o pedido de whisky. Eu me sentia livre, e acima disso, uma mulher novamente, uma mulher diferente. Para cada um dos anos anteriores, uma lição, um aprendizado. Aprender a viver por mim, por meus próprios desejos, meus anseios, meus medos...

No retorno, caminhando pela mesma rua, meu corpo parecia flutuar junto da minha sombra, e dei risada de tal estágio de entorpecimento. Eu me sentia duas, e na minha cabeça, uma respondia a outra.

Estou bêbada...

E com tesão.

Mas estou sozinha agora... Sou só eu, por mim.

Quando entrei no quarto, me estatelei na cama tentando me livrar dos sapatos e do casaco, antes de me entregar finalmente aos cobertores. Foi uma noite confusa, meu descanso não passou de um cochilo, um momento pendular entre o mundo real e o mundo dos sonhos. Os ruídos da casa estalando me despertaram repetidas vezes, eu não sonhava, mas fantasiava na tentativa de engatar no sonho; imagina mãos grandes me massageando, me tocando tão suavemente e me guiando em direção ao prazer do sono.

Acordei tarde e perdi o café da manhã. Quando abri a janela para ver como estava o dia, os aromas do almoço, que corriam soltos pelas ruas, adentraram o quarto e me fizeram enjoar um pouco. Estaria a bebida afetando meu estômago como Frank afirmava que aconteceria? ‒ Maldito. A vontade de vomitar me fez correr para o banheiro, mas nada aconteceu além da ducha quente castigando minhas costas. Com os cachos presos acima se soltando, me irritei e entrei por inteira debaixo d'água. Um banho completo, diria meu tio Lamb, se referindo ao ato de lavar-se da cabeça aos pés. Apreciei cada segundo do longo banho, saí com a pele bastante vermelha e queimando levemente, mas me sentindo revigorada.

Após vestir as roupas mais confortáveis que encontrei na mala, finalmente desci para a rua, me arrependendo de perder boa parte da manhã de um dia claro, com algumas nuvens amigáveis acima, e um sol ofuscado e frio. A paisagem verde ia dos tons médios aos escuros, numa miscelânea degradê tão extraordinária que parecia recém-pintada, lustrada talvez, acompanhada de belas flores nos jardins e beiras do rio. As calçadas movimentadas eram uma resposta ao clima propício, os ruídos dentro das casas revelavam a incansável rotina doméstica, e nos comércios, o reflexo da temporada turística.

Inverness era cheia de lojinhas, muitas delas com seu interior apinhado de lembranças em miniatura: ímãs, chaveiros, abridores de garrafa, porta-moedas... Reparei pela vitrine, uma criança dentro de uma loja de miudezas, seus olhos brilharam fitando os chaveiros de prata reluzindo pendurados, tilintando ao toque dos dedinhos compridos. Sorri ao me lembrar de memórias de infância, meu tio Lamb me levando para comprar chaveiros nas diferentes cidades que visitamos; mantemos toda a coleção bem guardada numa caixa. Entrei na loja e escolhi um chaveiro que marcaria Inverness como minha primeira viagem solo.

Viajar sozinho é descobrir o prazer da própria companhia. Mais tarde, caminhando lentamente após comer pouco e me entupir de líquidos, virei uma esquina qualquer e encontrei uma locadora de veículos, de onde saí dirigindo quase sem rumo, sem conter o sorriso fácil causado pela sensação de liberdade que me inundava.




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Além do tempo (parte I)Where stories live. Discover now