01: O breu que há em mim

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Me lembro de ter apenas seis anos quando meu pai foi transferido de Istanbul para Ancara. Com toda certeza eu adorava minha cidade natal, no entanto esta cidade conquistou meu coração em tão pouco tempo que já tinha me esquecido até da vida que levava no outro Estado, isto porque na casa ao lado morava a garota mais extraordinária que já conheci.

Yudis Karaçăi, minha única e melhor amiga.

A qual sempre se encontra sorrindo de uma ponta à outra, característica essa que acentua seu jeito extrovertido e altivo de ser. Muito contrariamente de mim, que por mais estranho que pareça tento ao máximo não aparecer, e meu humor tende a ir do péssimo ao desagradável.

Palavras da minha sábia irmã mais nova, de quem, para ser sincera, não pretendo falar muito no momento. Nada pessoal, eu só... Acho que não gosto muito de admitir que ela está 90% do tempo mais certa do que eu.

Abro a porta de casa com cuidado, nada surpresa por ser recebida logo na entrada pela áurea mórbida da sala escura. Procuro pelo interruptor na parede do corredor, uma busca que nunca me acostumo a fazer. Deslizo a mão para frente, tateio mais acima e volto a descer a mão pela superfície lisa até as pontas dos dedos tocarem no botão instalado ali para clarear o ambiente, tornando-o menos sombrio do que já é.

Durante o processo eu troco os calçados que usava pelos chinelos dispostos no canto lateral da porta e sigo para a cozinha sem dar muita atenção ao estado da sala de estar, ou então ao porquê de ninguém ter decido abrir as cortinas hoje. 

Me sirvo de um copo d'agua direito da torneira curvada para a pia. O post-it colado ali na bancada me dando vontade de revirar os olhos. Eu o pego, e o analiso sem muita vontade.

"Hoje é seu dia de lavar a louça, Igith. Bjs da mãe."

Quase sempre é a mesma coisa em nossa casa. Aparentemente arrumamos uma forma de nos comunicar sem precisar de uns encararem os outros. — Usando post-its quando precisamos dar uma informação importante a alguém.

É que de uns tempos para cá conseguimos tornar nossos horários incompatíveis, o que fortaleceu a não necessidade de trocarmos palavras sem objetivo plausível. Entende? Logo, nossos desencontros favorecem todas as partes, geralmente só precisamos nos ver durante a manhã antes de cada um ir cumprir seu horário e pela noite, onde todos — exceto Bursüm — sentamos a mesa e criamos vergonha na cara de tentar parecer uma família feliz.

E quando falo de tentar parecer uma família feliz me refiro ao fato de, sendo a minha família formada por um pai que raramente se encontra em casa e uma mãe que apenas se sente viva trabalhando freneticamente de modo a tentar esquecer a traição que teve anos atrás, tanto como de um irmão que vive em festas e treina de forma doentia para manter seu físico, sem esquecer da caçula da família diagnosticada com fobia social que fez do seu quarto uma caverna que apenas é bem recebida a única pessoa sã desse manicômio, a nossa avó. A dita conselheira a quem ninguém dá ouvidos.

Portanto, é fácil entender que de feliz nós só temos a aparência mesmo.

Deixo o copo ali na bancada de mármore, ajustando a alça da minha mochila sobre a camisa branca do uniforme da escola que estou usando desde cedo. Eu dobro o corredor criado entre as escadas que levam ao andar de cima e a parede com as portas do banheiro e escritório do meu pai. O atravesso seguindo até à porta adiante — a porta dos fundos. — Reforçada pela porta de tela seguida da de madeira.

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