05: Nem tudo está bem

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— Sua avó pediu que eu viesse chamar você. — O amigo de Ur diz para mim, me olhando de uma forma tão fixa que me incomoda.

Sério que vovó Yame decidiu fazer isso comigo?

— Por que você...  — eu travo minha fala, desistindo da ideia de reclamar dele ter vindo até aqui ao invés de Ur.  — Esquece. — murmuro e fecho a porta na cara dele.

Eu suspiro antes de usar meu capuz outra vez. Não gosto do que a presença desse garoto me causa, me faz sentir que o ar nunca é suficiente, o que me preocupa muito. Sei da aversão que acabei adquirindo com relação a presença masculina, entretanto quando se trata dele é estranho que o medo diminui e coisas estranhas se espalham pela minha pessoa.

Eu tenho de me controlar, não é hora de pensar besteiras.
Não é hora de viajar Igith.

Volto a abrir a porta e me deparo com a imagem do garoto dos olhos intensos parado do outro lado do corredor. Costas coladas à parede, os olhos fixos nos própios pés e as mãos ainda enfiadas nos bolsos da calça. Eu franzo o cenho, um pouco surpresa. 

Por que ele decidiu me esperar?

E como se ele tivesse escutado a minha pergunta interna, seu olhar se ergue e encontra o meu quando estou fechando a minha porta.
Não faço questão de trocar olhares por muito tempo, apenas o suficiente para vê-lo desencostar da parede e remover as mãos dos bolsos.
Sem dizer nada eu passo por ele, fazendo caminho em direção à cozinha.

Sei que ele vem a minha trás e acho um pouco incômodo o fato dele poder estar me observando neste intante. Eu trinco os dentes começando a ficar nervosa. E devia ficar aliviada ao descer o último degrau da escada, porém, com a visão que tenho dos meus pais sentados no sofá da sala vendo TV  e comentando coisa e outra sobre o que passa na tela, eu passo de nervosa para aborrecida num piscar de olhos.

Decido desviar o olhar do casal e me volto para minha esquerda, para a porta da cozinha. Onde dá para observar Ur auxiliando minha avó a preparar o jantar.
Eu encho uma bochecha de ar com a vontade que tenho de rir, mesmo que sem humor. A situação que nos encontramos declinaria a ser cômica caso não fosse tão trágica.

Qualquer um que nos visse deste jeito diria que esta família é muito linda, talvez. No entanto, como todo mundo deve saber, toda família tem algum porém, e a nossa não é muito diferente disso, apenas os possui de maneira incontável.

Eu chego perto da minha avó parada de frente à bancada ocupada de panelas antiaderentes e tigelas de porcelana usadas por ela e lhe dou um leve abraço pelas costas. Consigo vê-la sorrir quando beijo sua bochecha e roubo uma risadinha contida da mesma.

A verdade é que, dentre todos os demais membros da família Kefrām, vovó Yame é a única com quem eu tenho mais intimidade na casa.

— É preciso chamar você para o jantar todos os dias, Igith? — pergunta vovó Yame num tom calmo, tirando a panela do fogão quando me desvencilho dela.

Eu comprimo os meus lábios parada à alguns centímetros dela, mas não respondo a pergunta.
Minha avó sabe da minha condição com a comida. Apenas participo dessas refeições por obrigação do meu pai.

— Essa daí só sabe ficar trancada no quarto mesmo, você sabe vovó. — Ur se exprime sarcástico, me fazendo revirar os olhos.
Olha o sujo falando do mal lavado. Como se ele ficasse em casa tanto tempo assim.

Ur é o meu irmão mais velho por apenas um ano de diferença na idade. — Ao contrário de mim, ele tem os cabelos castanhos igual aos do nosso pai, tem os olhos amendoados e um físico que eu diria "perfeito" de tanto que ele treina. Sua estatura é um pouco maior em relação a minha, quase alcançando a do nosso pai.
É raro que falemos um com o outro, primeiro porque não sou de trocar palavras com as pessoas e segundo porque temos nossas diferenças.

Marcas do Passado [✓]On viuen les histories. Descobreix ara