016: Dor exposta

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Não conseguimos pegar no sono até às cinco e meia da manhã.

Às seis e pouco eu já estava desperta, Querin não se encontrava mais no quarto. Tinha um bilhete seu em cima do criado-mudo dizendo que foi comprar simit* em uma padaria próxima do condomínio, portanto para me facilitar ele tinha preparado água para o meu banho e deixado uma escova de dentes reserva em cima da pia; no finalzinho o garoto desenhou uma rosa minúscula a qual conseguiu roubar um leve sorriso meu antes que eu seguisse para o banheiro.

Não estava de fato me sentindo melhor, muito pelo contrário, durante o banho me veio como pancada o acontecimento da madrugada e tudo antes disso. Como consequência, chorei sozinha e junto com a água que deixei escorrer pelo ralo parte da tensão de tudo quanto aconteceu e que ainda iria acontecer.

Meus pais... Ainda tinha eles, as perguntas deles, os olhares. Céus! Tudo em mim começou a fervilhar de um jeito péssimo enquanto me vestia das mesmas roupas masculinas que eu usei ontem. As minhas estavam muito sujas. Meu corpo parecia que ia explodir depois da chuva de realidade que desabou sobre minha cabeça.

Eu havia surtado ontem.

Havia surtado e contado tudo para Querin.

Comecei a morder as unhas nervosamente ao som do destrancar da porta do quarto. Querin está de volta. O pensamento ronda minha mente sem cessar e então eu ando de um lado para o outro, um lado para o outro, ansiosa.
Ele se lembraria das minhas palavras agoniadas? Se lembraria do meu surto? Como vai agir comigo a partir de hoje depois do dia de ontem?

Meu Deus, eu não consigo controlar a respiração. Não consigo. Não consigo. Não consigo! Como diabos eu fui capaz de contar tudo para ele?
Respira Igith, você é capaz.

Um toque na porta me faz sobressaltar, depois uma voz suave:

— Igith, você está aí?

Não, eu não sou capaz. Eu sou uma garota apavorada.

Respiro. Passo a mão pelo rosto e as bochechas estão úmidas. Jesus. Me volto para o espelho. Minhas lágrimas descem calma e lentamente.

Outra batida na porta. Outro aperto no meu peito.

— Igith?

Eu sou rápida em limpar meu rosto e lavá-lo com um pouco de água, ajeitar o cabelo com os dedos e ajustar a roupa folgada no meu corpo antes de respirar fundo e responder.

— E-estou! Eu estou aqui... Só um segundo!

— Leve o tempo que precisar, fiquei apenas preocupado. — Sua voz está um pouco distante agora, como se ele tivesse se afastado. Menos mal.  — Comprei simit, e... — o garoto para no meio da frase, depois, ouço passos se direcionando até a porta novamente. — Igith, está tudo bem aí?

Eu mordo o lábio inferior com força. Nada está bem. Mas eu não posso ficar trancada no banheiro do amigo dele para sempre.
Meu Deus, o que eu faço?

— Está sim, estou... Estou arrumando o cabelo — falo baixo, muito baixo. — Me dê um segundo.

— Me desculpe por insistir — ele diz, mas não o ouço se afastar.

Faço um breve exercício de respiração. Inspirar e expirar. Tente não ter um ataque agora Igith. Inspirar e expirar.
Eu me aproximo da porta, envolvo a maçaneta com os dedos e posso ouvir meu coração bater forte dentro do meu peito quando enfim tomo coragem e puxo a porta para dentro, a abrindo.

E me arrependo inteiramente no minuto seguinte porque Querin está parado muito, muito perto de mim a ponto de não sobrar quase nenhum espaço para o ar circular. Eu esqueço como se respira direito e me afasto um passo para trás, assustada.

Marcas do Passado [✓]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora