Capítulo 4

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Anastácia Stelle

O som de passarinhos cantando em uma euforia típica das
colinas me acordou. Estiquei-me na cama como um gato preguiçoso
e me enrolei nas cobertas, relembrando a noite de ontem e minha
pequena fuga.
Sentia-me feliz pelas horas de agitação e coração na boca
pelas quais passei. Era como se tivessem injetado um pouco de
vida em minhas veias. Desde que parei de tomar os remédios, há
alguns meses, venho notando uma melhora significativa no meu
humor e disposição diários, e aquilo se refletia no misto de
intensidade que estava sentindo.
Levantei-me da cama, ainda sonolenta e com certo medo de
encontrar meu pai pelos corredores da casa. Já fazia três dias que
não o via. Só sabia que chegava muito tarde e saía muito cedo
devido às mudanças que ele estava fazendo na empresa e
imaginava que ele não estaria nem um pouco satisfeito depois da
minha pequena escapada de ontem.
Lavei o rosto no banheiro que ficava dentro do meu quarto,
ainda pensando no que diria a ele quando o momento chegasse. Fui
até meu closet e enfiei a mão no meio da confusão de pilhas de
roupa, ciente de que teria que arrumar tudo aquilo sozinha, já que
pedi para Ruth, a governanta da casa e terrorista torturadora de
almas nos horários livres, para manter todas as mãos existentes
naquele lugar bem longe do meu quarto. Agora a porta não tinha
mais tranca. De acordo com Ruth, aquela era uma forma de me
manter “segura”, junto com a garantia de que ninguém entraria ali
sem ser chamado.
Nos últimos meses minha paciência, que já era diminuta,
desapareceu de vez. Queria espaço e privacidade. E já que não

poderia ter a primeira opção, teria ao menos que recorrer à
segunda.
Minha rotina se resumia a me levantar, ter alguém
bisbilhotando meu quarto e a quantidade dos meus medicamentos
enquanto eu tentava engolir um café. Estudar, estudar e estudar
todo tipo de assunto relacionado à empresa do meu pai e os
armamentos que ela fornecia. Caminhar pelo jardim, ler um livro,
almoçar, passar o resto da tarde sendo seguida dentro da minha
própria casa pelos guarda-costas e, antes de dormir, mais um pouco
de remédios acompanhados de um sono profundo induzido e no dia
seguinte, a novela se repetia em um looping infinito, com pequenas
alterações, como, por exemplo, quando precisava ir até a empresa
do meu pai. Neste caso toda a corja de seguranças seguia no meu
encalço e geralmente quase não conseguia respirar.
De todas as vezes que precisamos sair juntos, só consegui
despistá-los duas vezes. Em uma delas, graças a falta de senso da
minha amiga Carla, fui pega tentando me esconder entre as peças
de carne de um açougue que ficava próximo à empresa do meu pai.
Um esconderijo mal-sucedido e que ainda me deixou fedendo à
carne crua por um bom tempo. Ao menos Carla foi criativa, não
podia negar.
Revirei o amontoado de sapatos que para variar também
estavam desorganizados e tentei pescar uma sandália baixa e
confortável que gostava muito. Sem querer, acabei pegando um dos
pés da minha sapatilha de ponta. A que mais usava nas aulas de
balé contemporâneo.
Por um momento fiquei ali, a encarando. Ela estava gasta
demais para continuar a ser usada. O tecido encardido não dava
sinais de que um dia ela foi rosa.
Torci os lábios, encarando aquele pé solitário. Não gostava
da sapatilha de ponta para dançar, também não era fã da professora
de balé. Gostava de dançar descalça e sentir a aspereza do chão
contra meus pés, ou do gramado macio e úmido, assim como
também gostava de inventar coreografias de expressões livres e
reproduzi-las. O que enfurecia a professora. Então, mesmo não
gostando da sapatilha, eu a usava. Magnólia também, porém, toda

vez que a professora ia embora, arrancávamos as sapatilhas e
dançávamos por horas a fio na academia da nossa casa.
Dançar...
A noite passada foi a primeira vez que consegui dançar em
três anos.
Encarei a sapatilha surrada, lembrando-me que por um
tempo aceitei toda essa rotina. Aceitei que me levassem de um lado
para o outro, decidindo minha vida, traçando meus caminhos e
permiti, mais uma vez, que me prendessem dentro daquela gaiola
de ouro que era conhecida como a “Casa da Colina”, a casa do
imperador do ramo de armamento, meu pai. A maior mansão da
região em que morávamos, com uma vista espetacular de um
penhasco onde uma mata criava um quadro vivo.
Sempre fui apaixonada por aquele lugar, mas agora... olhei
sobre o ombro em direção aos vários frascos de remédios sobre a
larga penteadeira cor de gelo do meu quarto. Agora eu daria tudo
que tinha para não passar nem mais uma noite ali. E por isso, eu
estava tomando as rédeas da minha vida. Uma hora ou outra meu
pai precisaria entender que eu não era mais sua garotinha, e que
apesar de temer o mundo lá fora depois da maldade que conheci,
eu ainda queria explorá-lo.
Prendi meus cabelos em um alto rabo de cavalo e conferi
minha aparência no espelho largo pendurado em frente à porta, com
hastes douradas e um pouco maior que eu. Observei a mulher do
reflexo como se não nos víssemos há muito tempo. Olheiras
enormes marcavam ambos os meus olhos e minha boca, antes
rosada, estava pálida, completamente sem cor. Meu humor, minha
energia, tudo foi completamente destruído nos últimos anos,
restava-me muito pouco da Jasmin do passado.
Pisquei os olhos com força e me afastei do espelho. Não
adiantaria nada ficar ali de qualquer forma. Quanto mais encarava
minha imagem refletida ali, menos me reconhecia.
— Onde foi que você se escondeu, Anastácia? — sussurrei de
costas para o espelho e uma batida sutil na porta me arrancou dos
meus devaneios. Enfiei uma camiseta pela cabeça de qualquer

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