Capítulo 6

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(Harry's POV)

O pôr-do-sol banhava com gentileza a faixa de asfalto em meio à grama, uma fria brisa de fim de tarde encontrando seu caminho por entre os galhos das árvores e fazendo as folhas silvarem timidamente.
Respirei fundo, absorvendo a paisagem solitária. O vento atingia meu rosto em golpes macios, entrando pela janela do carro como se tivesse medo de que eu o repelisse com minha indiferença. Meu coração batia forte, meu olhar perdido no horizonte deserto. Em pouco tempo, eu estaria de volta à vida real, de volta a todos os problemas dos quais tentei escapar pelas últimas duas semanas.
Eu não sabia se estava pronto para voltar. A cada vez que piscava, olhos verdes cheios de dúvida me encaravam no auge de sua inocência, mil perguntas colidindo em suas grandes íris.
A palavra pai parecia estrangeira, nem um pouco familiar para ambos, por mais contraditório que isso soasse. O abraço, apesar de apertado, não fora íntimo; o sorriso, por sua vez, compensara a falta de um dente com a perfeita materialização de um sonho realizado, expandindo seus horizontes como nada antes fizera.
O leve estrangulamento intensificou-se ao redor de meu pescoço, ainda que mal representasse ameaça à sólida sensação de tomar a atitude certa reinando em meu peito. Ali estava mais uma pessoa – ou um pequeno ser humano que mal podia esperar para que eu o ajudasse a se tornar uma – que esperava algo de mim. Pelos resquícios de integridade ainda presentes em mim, pedi para que aquele olhar esperançoso não fosse mais um dos muitos outros que manchei com decepção.
Eu não sabia se estava pronto para voltar. Mas eu precisava voltar.
Engoli em seco, apertando o volante e tentando me focar na estrada. Difícil. Minha mente divagava à medida em que me aproximava de minha última parada, minha última relação com o surreal, com o inexistente. Com o passado.
Me perguntei se ainda doeria. Fazia tantos anos... Por mais que o tempo já tivesse cumprido seu dever e se encarregado de amenizar a dor, a cicatriz emocional sempre existiria, impedindo-me de esquecê-la, mesmo que já desbotada.
Parei o carro rente à grama, levando comigo a singela rosa em meus dedos trêmulos ao caminhar por sobre o verde. Não olhei ao meu redor; eu já sabia que caminho seguir sem precisar me orientar.
Meus pés desaceleraram ao me aproximar do granito antigo. O nó em meu peito, que a anatomia chamava de coração, apertou-se; tudo estava acontecendo exatamente como sempre. Quis rir de mim mesmo por pensar que algo mudaria. 
Ajoelhei-me de frente à lápide, meus dedos abandonando a rosa diante dela e percorrendo a fria superfície onde letras em dourado resistiam ao tempo, persistentes em sua função de representar a dor ali enterrada.

Lucy Hayes
(17/02/1980-10/09/1993)
Amada filha

Minha garganta se fechou ao fitar a foto sobre os dizeres. Não ousei encará-la por mais que dez segundos, as lembranças fluindo livremente por todo o meu corpo e me causando arrepios.
Muito do que eu era podia ser explicado por elas. Eu me recordava de tudo, com tamanha intensidade que relembrá-las era como voltar no tempo. A culpa se enroscava ao redor de meu estômago como uma serpente, aniquilando-o em seu aperto e provocando náuseas. Em meio à tortura silenciosa sob a qual minha mente submetia meu corpo, fui capaz de pedir, mais uma vez, desejando mais do que tudo ouvir alguma resposta.

– Me desculpe.

Não seria diferente. O perdão nunca viria.
Respirei fundo ao fechar a porta do carro, minha última missão pendente antes de regressar à vida que eu planejava consertar cumprida. Esfreguei os olhos, afastando as incertezas que ainda os assombravam, e mantive-os baixos por alguns segundos. Um brilho prateado em meu pescoço atraiu minha atenção, e instintivamente meus dedos se fecharam ao redor do pequeno pingente sob minha blusa. O presente sempre encontrava uma maneira de se fazer notar.
Duas semanas. E enfim, seus olhos corroídos pelo desapontamento haviam perfurado a última barreira que protegia meus raros sonhos.
Afinal, não se pode sonhar se não se dorme, certo?
Relembrando como minha vida era poucos dias atrás, duvidei da teoria. Sonhos podiam sim acontecer mesmo de olhos abertos.
Pesadelos não eram exceção, aprendi mais tarde; a dor era igualmente ou talvez ainda mais real que a alegria.
Me perguntei se tudo havia sido um devaneio. Talvez se eu me esforçasse para despertar de meu transe, acordaria em minha cama, atrasado para dar aulas. Nos encontraríamos nos corredores por uma coincidência muito bem arquitetada, e eu lhe sopraria algumas palavras infames para me divertir com a irritação em seus olhos. Com alguma resposta inteligentíssima ardendo em meu rosto como um tapa, eu olharia por cima de meu ombro para vê-la fugir de mim, e gravaria sua imagem para me fazer companhia mais tarde, nas noites em que o sono me faltasse e não houvesse outro alguém para realizar a função de minha mão.
Sim... Tudo aquilo me parecia muito mais crível que a decepcionante versão que minha mente insistia em considerar verdadeira, e da qual eu já não podia mais fugir. Eu a havia conquistado; ela havia sido minha, porque realmente quisera ser. Pela primeira vez em muito tempo, eu sentia. Meu coração batia, meus olhos viam, minhas mãos tocavam. Mas sem que eu pudesse fazer qualquer coisa, ela havia me deixado. E então, eu deixei de sentir. Meu coração ainda batia, meus olhos ainda viam e minhas mãos ainda tocavam; porém, nada era como antes. Parecia não haver nada para ser bombeado a não ser o remorso, nada para ser visto a não ser o cinza, nada para ser tocado a não ser o frio.
Novamente, eu estava sozinho. Mas a solidão se mostrava muito mais hostil depois que me permiti conhecer a felicidade, como se guardasse rancor do tempo em que lhe fui desleal. Uma lição que eu aprendia pela segunda vez: não se entregue a ninguém, não deseje ninguém; uma vez feita a troca, corre-se o risco de, na pior das hipóteses, perder ambos.
Acontece que as piores hipóteses tinham um fraco por mim.
Demorei a perceber que havia voltado a dirigir, perdido em pensamentos; pouco mais de uma hora se passara, porque já estava em Londres. Felizmente, consegui completar o trajeto sem me envolver em acidentes ou infringir leis de trânsito, apesar de minha mente estar bem longe da estrada. Reforcei a atenção nos últimos minutos do caminho, dirigindo com toda a concentração que pude reunir, até estacionar na garagem de meu prédio.  
                 
Lar, doce lar.   

Biology IIWhere stories live. Discover now