Capítulo 11

2 1 0
                                    

Quase uma hora depois, finalmente desço do ônibus e corro rua abaixo para meu condomínio, evitando ao máximo balançar demais a sacola de doces e ignorando o ronco das motocicletas que passam.

Abro o portão metálico da portaria, cumprimento – ofegante – os porteiros do turno da noite e, como num passe de mágica, me sinto bem confortável.

Fico um minuto parada atrás da guarita, apreciando a noite. O ar fresco, o leve cheiro das plantas, as luzes que saem das janelas do prédio mais a frente, contrastando com o céu arroxeado.

Ando devagar pelo caminho de paralelepípedos cinza claro, aproveitando meu momento de silêncio. As folhas das arvores balançam discretamente com a brisa e o caminho é iluminado com postes de luz branca. ''Estou em casa''.

Alcanço o prédio, adentro no elevador, desço no quinto andar e paro em frente a porta 5C. Ouço o baixo barulho da televisão. ''Talvez minha mãe esteja dormindo no sofá''.

Abro a porta devagar, para não fazer barulho. Lorena está largada no sofá, assistindo à algum filme besteirol ou comédia romântica (filmes de terror, suspense ou ação são terminantemente proibidos depois das 18h30. Queremos evitar pesadelos a todo custo).

Ela vira-se para mim, deixando a lateral de seu cabelo raspado e um piercing na orelha a mostra. Rapadura levanta-se detrás do sofá e corre em minha direção. Ponho a sacola na mesa e me abaixo para fazer carinho nos pelos negros e brilhantes de minha cachorra.

- Quem é a pimpolha di mãe? Quem é? – fico repetindo, enquanto acaricio a barriga cinzenta de Rapadura, que abana a cauda feliz.

- Boa noite pra você também! – Lorena retruca, fuçando as sacolas – que caixas são estas?

- Doce – respondo, segurando a cabeça da cachorra e admirando seus olhos dourados e orelhas pontudas.

- Caramba! – ela diz, abrindo a segunda caixa – assaltou a loja, foi?

- Foram os que sobraram – me levanto – todo mundo levou um pouco pra casa.

- Um pouco... – Lorena dobra a sacola e dá uma olhada nas sobremesas confeitadas delicadamente – que bonitinhos!

- Estes três aqui – aponto para uma fatia de bolo, uma tortinha e dois cupcakes – foram os vencedores, mas... este aqui – aponto para uma tortinha de calda de pêssego com merengue – foi o que eu mais gostei.

Saio da sala e vou para a lavanderia, pegar minha toalha de banho. Escuto Lorena da sala: ''Pega um prato, uma faca e uma colher, por favor!''. Levo a toalha no ombro e os utensílios de cozinha na mão.

....................................................................

Depois do meu – mais que merecido – banho. Deito-me no sofá, com Rapadura no colo, esperando minha irmã decidir qual foi o que ela mais gostou.

Lorena está sentada à mesa, saboreando o bolo de rolo com goiabada que Olívia fez. Ela cortou todos os doces em quatro pedaços, para poder deixar também para meus pais.

Mudo de canal várias vezes, não achando nada de interessante. ''Desenho muito infantil... Filme pesadão... Programa sobre animais... Droga! É sobre aranhas!''. Desisto e desligo a TV.

- Decidiu? – pergunto, evitando ao máximo não me mexer.

- Então... Eu gostei muito desse bolo de rolo. Só que esse de chocolate com pimenta tá divino, e também tem esse que ganhou, o brownie de frutas vermelhas. Não sei... – ela tira uma pétala de maçã de outra sobremesa – esse tá bom, mas nem tanto.

Suspiro, entediada, e ajeito minha cabeça na almofada. O peso da minha cachorra é bem reconfortante, apesar de estar sentindo um pouco de dor nas costas por causa da posição. Abraço Rapadura e fecho os olhos.

''Estou numa rua tranquila, parada em frente à uma casa de tijolos cinza, com grandes janelas no térreo.

O céu está incrivelmente limpo e azul. Escuto as folhas farfalhando acima da minha cabeça e observo um senhor andando na rua. Consigo ouvir o que diz, mas não entendo nada. 'Outro idioma? Onde é que eu tô?'.

Uma simpática senhora, usando um suéter vermelho vivo o cumprimenta e entra na casa ao lado. Dois adolescentes passam, trajando uniforme que parece ser de internato: blazer e calça social. Conversam animadamente sobre alguma coisa, mas – por mais que eu me esforce – não entendo absolutamente nada do que dizem.

Eles passam, implicam um com o outro e seguem o seu caminho. Sinto um certo aperto no peito. De alguma forma, sinto saudades de estar aqui.

Por um tempo, nada mais passa na rua. Estou sentada no meio-fio, embaixo de uma nodosa árvore de folhas bem verdes. Observando a casa à frente, tem algo importante lá...

Então, entram em cena um garoto e uma garota, com uniformes parecidos com o dos dois adolescentes que passaram antes. A menina, poucos centímetros mais baixa que o rapaz e um pouco gordinha, tem um cabelo muito parecido com o meu quando eu estava no ensino médio.

O companheiro, alto, magrelo e de cabelos cacheados conta algo para ela, que responde animada. 'Conheço eles...'.

- Ei! – grito, para chamar a atenção deles.

A menina parece não ter ouvido. Está procurando alguma coisa em sua mochila.

Por outro lado, o garoto olha para mim. Os pelos da minha nuca se eriçam, como naquele dia em que vi Arthur. Primeiro, parece surpreso; depois, desconfiado.

- Bernardo! Sou eu! – mais uma vez o chamo, na esperança de que venha falar comigo.

Só que, para o meu desapontamento, Bernardo continua onde está, me olhando de um jeito frio. A menina finalmente mostra o rosto e meu coração pula uma batida.

Ela sou eu. Eu sou ela. Minha versão adolescente, Carolina.

- Lina! – aceno entusiasmada.

Carolina comenta algo com Bernardo, que apenas dá de ombros. Os dois andam em direção a porta. 'Ela não me viu?'.

Atravesso a rua e corro na direção deles. Quando tento tocar o ombro de Lina, minha mão atravessa seu corpo.

Estico o braço de novo e de novo e de novo, já ficando desesperada. 'Que que tá acontecendo?'.

- Bernardo! Me escuta!

O garoto hesita por um segundo, mas volta a andar.

- Eu sei que você tá me ouvindo!

Tento empurrá-lo, mas o atravesso e caio no chão. Com o coração a mil e já com lágrimas nos olhos, ultrapasso os dois e bloqueio a porta.

- Qual é? Eu sei que você tá me vendo! Fala comigo! – grito angustiada.

Carolina pega a chave, abre a porta e trespassa por mim, como se eu nem estivesse lá. Bernardo entra logo atrás dela, olha para mim, furioso, e murmura 'você não é mais bem-vinda aqui'.''

Clarice, que não é, LispectorWhere stories live. Discover now