O dia que eu tanto aguardava chegou.
A tempestade começou na madrugada. O vento uivava, o trovão rugia e a chuva castigava as janelas da casa.
Coloquei o meu ''Look para dias frios e chuvosos cuja temperatura não ultrapassa os 20ºC'': Botina e calças jeans preta, moletom amarelo-mostarda bem folgado e um pingente de água-marinha.
Saí de casa uma hora antes; me perguntei se o Paçoquinha estava quentinho na casa da moça da lojinha de ração; peguei o metrô lotado (e muito molhado, por sinal), até chegar no portão do campus.
Carregando a mochila a frente do corpo, vou descendo a rua. Seguro meu guarda-chuva com força para que ele não voe com o vento. Pesadas gotas colidem contra a lona.
Passo a catraca, cumprimento o Seu João e desço as escadarias com todo o cuidado do mundo.
Meus pés chapinam nas poças de água. As copas das árvores balançam, suas folhas farfalham e algumas até caem, rodopiando na ventania.
Antes de adentrar no prédio praticamente vazio, dou uma olhada no céu branco-perolado, inspiro o cheiro do ar úmido e fecho o guarda-chuva.
A luz branca ilumina o hall de entrada. Meus passos ecoam sob o piso linóleo, enquanto caminho até os elevadores.
Aperto o botão e espero. ''O cenário tá ok. O clima tá ok. Agora é contigo, Clarice''.
A porta de metal se arrasta com um ruído surdo. Entro no elevador e desço no sétimo andar. São 6:45.
A cafeteria ainda não abriu, o que é uma pena. O dia está perfeito para tomar chá de limão ou de gengibre com mel.
Ando pelo corredor mal iluminado, até chegar na ''sala de convivência'', que se resume em: balcões acoplados abaixo da janela, banquetas e uma mesa circular no meio do recinto.
Permaneço parada na entrada, com a mochila nas costas e a sombrinha na mão. Fecho os olhos e aguço minha audição.
As roldanas e cabos que sustentam o elevador chiam dentro do poço, à minha direita. Suas portas abrem, fecham e a máquina sobe um... Click... dois... Click... três. Abre. Fecha. Parou.
Vozes indistintas ecoam pela escada de emergência. Risadinhas e cumprimentos, creio eu.
Um trovão rugiu no céu.
Abro os olhos.
Ando lenta e silenciosamente até a quinta banqueta. Viro para o corredor mal iluminado. Ninguém.
Puxo o banco e me sento, pousando a mala na carteira ao lado e o guarda-chuva pendurado no encosto do banco.
Abro uma fresta da janela. O suficiente para que o ar circule e que as gotículas não molhem a bancada.
Ponho as mãos no colo e relaxo os ombros. Meus pés pairam a poucos centímetros do chão. Inspiro fundo.
O cheiro de produtos químicos impregna o ar timidamente, algo semelhante a erva doce e álcool, se espirala, flui através das escadas e se mistura com o aroma da chuva que irrompe da janela entreaberta.
Alguém sobe pelo elevador.
A luz do corredor acende e surge o som da porta gradeada da cafeteria sendo aberta. Tilintar de chaves. Cliques de interruptores ligados.
Reflexos frágeis aparecem na superfície vítrea. Um senhor e dois rapazes arrumam as cadeiras e mesas, para que os clientes possam ficar à vontade.
Volto a minha atenção ao mundo lá fora.
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Clarice, que não é, Lispector
RomanceClarice é uma universitária de personalidade excêntrica (palavra essa que, segundo ela, lembra russos com bigodes ao estilo Salvador Dalí). Sua vida deixa de ser comum quando conhece Arthur, um colega de classe que é idêntico a Bernardo, o personage...